Machado, Woody & as crianças francesas*

Imagine que um determinado livro, ao ser lido, tenha impactado seu leitor de forma tão impressionante que esse mesmo leitor passe a citá-lo quando lhe perguntam quais as obras de sua preferência. Isso é plenamente possível – eu diria até corriqueiro. Woody Allen, o cineasta norte-americano, confessou ao jornal inglês Guardian que Memórias Póstumas de Brás Cubas, do autor carioca Machado de Assis, foi um dos cinco livros que mais influenciaram sua carreira. Isso também é plenamente possível, já que a obra – o título traduzido, Epitaph of a Small Winner, é muito melhor – é tremendamente bem escrita e, para os moldes da provinciana literatura brasileira da época, de uma inventividade sem precedentes.

O que me causa espécie é o fato de Woody Allen, tão impressionado com o livro citado, não tenha buscado ler outras obras de Machado. Ou, por outra: não há registros de que ele tenha mencionado, por exemplo, Philosopher or Dog?, que é o título inglês do mais bem acabado livro de Machado de Assis, Quincas Borba. Eu me lembro de que, em meados dos anos 80, após ter lido Bem-vindo à Casa dos Macacos, de Kurt Vonnegut, Jr., numa daquelas edições mal traduzidas da Artenova, passei a garimpar, em sebos principalmente, livros desse autor com uma urgência que mal cabia no discurso, já que nem eu mesmo sabia exatamente por que se tornara necessário ler todos os seus livros. Hoje, compreendo que a busca por outros livros de um autor nada mais representa do que a manutenção de um diálogo que se estabeleceu na primeira leitura e que se deseja contínuo, arrastando-se por outras obras até que o leitor, por motivos que dizem respeito somente a ele, queira dar um fim a esse, digamos, bate-papo.

E por falar em diálogo, e também em Machado de Assis, tenho-me incomodado com uma questão, que certamente se liga a Mr. Allen. Simples: creio eu que o cineasta, já que afeito à palavra escrita, tenha-se relacionado com o texto machadiano de forma adulta – ou seja: leu-o com a maturidade necessária a uma compreensão que favorece não somente o leitor, mas também o texto. Em outras palavras: os livros do autor carioca – assim como acontece com vários outros autores – exigem daqueles que os leem um certo costume de boa leitura, uma apreensão criteriosa do texto literário, uma intimidade com textos que desafiem o leitor. Isso não retira, em absoluto, a possibilidade de ler tais textos como passatempo, hobby. Fiquei sabendo, há uns dois anos, que o texto machadiano Conto de Escola havia sido, numa tradução, adotado para crianças francesas de 8 a 10 anos de idade. 

Eis a questão: será que crianças nessa idade, mesmo que bem orientadas por professores tarimbados, têm condições de perceber o pessimismo irônico de Machado e, mais ainda, que a corrupção pode ser fruto circunstancial da infância? Refrescando a lembrança: o personagem central do conto – e também seu narrador – é um menino de nome Pilar, que aceita dinheiro de um colega para fazer-lhe um trabalho escolar, mas que, ao final, por circunstâncias alheias a sua vontade, acaba ficando sem o pagamento. Se possível fosse, o menino manteria consigo a quantia obtida com a venalidade. Não há esperanças para ele. O destino está traçado. Sem contar que a corrupção, no conto, tem um viés sensual que desafia qualquer professor a traduzi-lo para crianças – francesas ou não. 

Ler Machado de forma superficial é um pecado de escala estratosférica. Por outro lado, é sempre bom saber que um escritor de sua envergadura aproxima-se de leitores infantis. Desmistifica-se, então, a ideia de que a literatura brasileira do século XIX é inacessível à garotada. Mas o que pergunto é se a coisa funciona. Aquele sutil questionamento sobre moralidade, as nuances que proporcionam breves confusões ao leitor, as obliquidades, o camuflado deboche às instituições – haverá uma tradução francesa capaz de captar essa atmosfera? Pode até ser, mas crianças de 10 anos serão capazes de isso perceber? Se não, quem perde, de fato nessa história, é o texto.

*Publicado, originalmente, em A Gazeta (jornal local), em julho de 2011.

 

Elvin Jones e a garotada

Arrepio-me quando ouço alguém afirmar que somente o que foi feito “em minha época” tem valor. É a balela dos maus saudosistas, dos serôdios inconformados – e muito frequentemente de pessoas que, sabe-se lá o motivo, repulsam as novidades. Já fiz isso, e talvez um mea culpa se faça necessário. Isso é papo para divã, para confessionário, não para este blogue nem para esta postagem, que é dedicada a um dos maiores bateristas do jazz: Elvin Jones.

Pois é: Mr. Jones tocou com gente tão importante quanto ele: o contrabaixista e orquestrador Charles Mingus, com os saxofonistas Sonny Rollins e Stan Getz, com Miles Davis e com os extraordinários pianistas Bill Evans e Bud Powell. E muito mais gente boa. Claro, claro: fez parte do mitológico quarteto de John Coltrane, no qual brilhou em My Favorite Things, Olé e A Love Supreme, e com quem gravou 20 discos. Clique nos títulos para ouvir o disco completo, mas preste atenção ao que Elvin Jones faz. Prestou? Pois é.

 

E eis que o propósito desta postagem se expõe: o disco Young Blood faz jus ao título. Elvin Jones, já consagrado, resolveu arregimentar novos talentos no jazz: o saxofonista Joshua Redman e Javon Jackson tinham, respectivamente, 31 anos e 26 anos; o trompetista Nicholas Payton, com 19 anos; e a exceção checa: George Mraz, aos 47 anos. Elvin Jones tinha, então, 64: era o idoso que atacava os couros como um adolescente inquieto, pleno de energia e inventividade. É só conferir especificamente em Ding-A-Ling-A-Ding, a faixa 4 do disco. É de cair de joelhos e rezar.

Juntar-se a sangue jovem funciona não somente como uma oxigenação no próprio trabalho, injetando ideias novas, concepções mais arrojadas e valores contemporâneos. Serve também para aprender, porque a juventude, mesmo em alguns casos sem a intenção, pode ensinar. Elvin Jones mostrou-se homem de coração aberto, capaz de abrir os portões a todos os que, também de coração aberto, baterem-lhe as portas. O disco inteiro você pode ouvir AQUI, com a devida atenção – sendo jovem ou não.

Cinema ou sardinha, Guillermo?

Guillermo Cabrera Infante y la censura

Escrevi sobre livros de Guillermo Cabrera Infante, um dos meus ídolos literários. Dois deles: Fumaça Pura e Mea Cuba, volumes cuja (re)leitura me enche de prazer e – se me permitem a pieguice – enchem meu coração de alegria. Cabrera Infante é fã de cinema, e o compreende de forma bastante singular, e essa singularidade é expressa em palavras que se transformam em crônicas bem humoradas, por vezes mordazes, que emitem luz sobre a arte que tanto aprecia a luminosidade. No início de 2023, adquiri os três volumes de artigos sobre filmes: Cinema ou sardinha. Em espanhol os volumes concentram-se num só.

Cinema ou sardinha - parte 2: Vias, bem vivas: Volume 2 | Amazon.com.brCabrera Infante tem aquilo que todo escritor deseja ter: maturidade irônica. E é justamente munido dessa ferramenta que ele escreve – parece conversar com o leitor, entre charutos e doses de bourbon – sobre Howard Hawks, Orson Welles, Hitchcock, Vincente Minnelli, sobre seus filmes e como eles conseguiram referenciar uma época e muitos costumes. Sim, o cinema é, claro, a grande personagem do livro, reverenciada por um autor que desde a infância se mostrou cinéfilo apaixonado, febril. O título, aliás, é uma grande brincadeira. Pode-se viver sem sardinha, mas não sem cinema.

As mulheres não estão ausentes: o volume 2, cuja capa ilustra a postagem, é marcado por crônicas que homenageiam Marilyn, Rita Hayworth, Anita Loos, Mae West, Barbara Stanwyck, Gloria Swanson, Ava Gardner. Até Sharon Stone e Melanie Griffith entraram no rol. E homens célebres como William Holden, Orson Welles, Fellini, Chaplin, Cary Grant e James Mason. É uma festa. E tudo isso escrito com a pena infantiana – ou seja, veloz, mordaz, sacana, trocadilhesca e tão literária que causa inveja: ao menos em mim. Vai causar inveja a você, também. Se você que lê aprecia cinema, não pode deixar de ler a trilogia.

Cinema Ou Sardinha - Parte 1 Pompas Fúnebres - SBSE para quem torce o nariz para o cinema americano, há diversão fora do eixo: Guillermo Cabrera Infante escreve sobre Almodóvar, Fritz Lang, Kiarostami, Kurosawa. Escreve sobre grandes diretores e, claro, grandes filmes feitos por eles, sobre filmes B, sobre o faroeste, os filmes em preto e branco e por aí vai. Tudo sob a ótica de um erudito que sabe ser popular – e vice-versa. Li vários livros sobre cinema – da crônica ao romance, passando por biografias e análises fílmicas -, mas nada me divertiu tanto quanto, diante da erudição e do conhecimento de Cabrera Infante, perceber que o cinema sobrevive e para sempre viverá. Vale ler para crer.

 

Os Mamíferos revisitados

Inovar só tem relevância se a inovação tiver real valor. Falei o óbvio. Experimentalismos no vácuo valem quase nada – exceto, talvez, para seu autor, que imagina ter descoberto a importância do oxigênio. Sei que, após 1922 – quando Joyce decepou de vez o romance moderno -, não se fez nada de novo em literatura. Retomar, reinventar, reciclar: três verbos cujo prefixo expressa que o ineditismo passou longe. Por que falo isso, entretanto? Vou explicar. Em 2016 lancei um livro biográfico intitulado Os Mamíferos – crônica biográfica de uma banda insular. 337 páginas contando a história de 3 artistas e de seus entornos.

TBT: o início do rock no ES e a história da banda Os Mamíferos, nas décadas de 60 e 70A capa está aí, ao lado. Nela, os componentes do time: Mário Ruy (guitarra), Afonso Abreu (líder e contrabaixo) e Marco Antônio Grijó (bateria). Um trio, na verdade – que, em muitos casos, acrescia-se de um vocalista tão talentoso quanto polêmico: Aprígio Lyrio. Falei em inovação, no primeiro parágrafo. Fui específico ao afirmar que nada é novo em literatura. E na música? Creio que esse vaticínio se repita, mas é preciso levantar, no caso dOs Mamíferos, algumas bolas. Duas delas são inquestionáveis porque se baseiam na cronologia. Vou explicar também.

Caetano Veloso e Gilberto Gil são pilares da música popular brasileira. Ao lado de Chico Buarque, formam a Santíssima Trindade da MPB. A dupla baiana criou o Tropicalismo, estética que retomou a Antropofagia de Oswald de Andrade e passou a valorizar o Brasil conectando-o ao resto do mundo. Um dos elementos do movimento foi a fusão de gêneros, ritmos, melodias. Pois é: foram louvados a partir de 1967, quando tudo começou. E não é que Os Mamíferos, esse trio capixaba, já havia feito isso quase dois anos antes?

Filme sobre Os Mamíferos terá sessão especial e gratuita na Serra - Século Diário

Quer mais? Miles Davis oficializou o fusion através de um disco extraordinário cujo título é Bitches Brew, em 1969. Nele, o essencial jazzista estabeleceu a união entre o jazz e o rock, criando um mundo novo para os ouvintes de ambos os gêneros. Sim, sim. Os Mamíferos já faziam isso, afinal o trio, antes de se dedicar ao rock, já nadava pela maré do jazz há muito tempo. Para eles, a fusão foi natural. Falo sobre isso no livro, embora evite polêmicas. Elas são desnecessárias, principalmente quando o mais importante na música – e na arte! – é seu conteúdo, é aquilo que ele provoca em quem o consome. Saravá, Mamíferos!

*A foto, de 1969, mostra Mário Ruy (à esquerda, na guitarra); Marco Antônio Grijó (bateria) e Afonso Abreu, no baixo elétrico. Som de primeiríssima. Seria bom se vc tivesse ouvido, Miles!

Filmes (re)vistos #10: Fahrenheit 451, 1966

Fahrenheit 451 (Filme), Trailer, Sinopse e Curiosidades - Cinema10De volta.

Qualquer estudante secundarista já estudou escalas termométricas: Celsius, Kelvin, Reaumur, Rankine e, claro, aquela que possui o nome mais charmoso, Fahrenheit. Esse nome alemão pertence a Daniel Gabriel, físico teuto-polonês que inventou o termômetro de mercúrio e que adorava spaghetti. Na escala Fahrenheit, o papel combure a 451 graus – daí o título. Um filmaço, dirigido pelo meu xará, François Truffaut, e com a presença luminosíssima da bela Julie Christie.

Revi o filme porque queria apresentá-lo a um amigo que havia lido o livro – homônimo, de Ray Bradbury – no qual o filme se baseou. A película é uma declaração de amor aos livros: a mais potente, precisa e poética forma de dizer aos livros o quanto eles importam. E como seria o mundo sem eles? Eis a questão: o que seria deste planeta sem Shakespeare, Cervantes, Dante, Camões? E olhe que cito somente gente ligada à literatura, porque sem a Arte em geral e Filosofia, estaríamos de 4, no bosque, uivando para a lua.

Num futuro distópico, os livros representam o perigo, afinal versam sobre o conhecimento, sobre a informação. Não são eles os grandes inimigos do totalitarismo? Devem ser extirpados, destruídos como se fossem uma lepra social. Em se tratando de um Brasil recente – e considerando as proporções óbvias -, passamos por isso. Artistas, neste país, durante quatro anos, foram os vagabundos, os inomináveis párias contrários à pátria amada. Enfim, isso é papo para outra postagem.

VIVER É PERIGOSO: FAHRENHEIT 451

Truffaut foi feliz. Conseguiu imprimir no celuloide a força poética do romance de Bradbury. Conseguiu contar uma história cheia de suspense, amor, erotismo, aventura. Criou um cenário fotográfico nebuloso, tenso, corroborando a ideia de que algumas ações representam perigo tão imediato quanto fatal. Ler é crime, e criminosos devem ser punidos e educados a abominar a fonte de onde vêm as ideias. É um filmaço, uma ode à memória literária. E a propósito: esta aí embaixo é Julie Christie, de quem falei. Bonitinha, não?

Джули Кристи (Julie Christie) - актриса - фильмография - голливудские актрисы - Кино-Театр.Ру

Beethoven, Bach: 2 livros

Beethoven: Solomon, Maynard: 9780028724607: Amazon.com: BooksMais livros, mais música.

Maynard Solomon é um craque, um ás. Escreve para quem conhece o assunto com profundidade; escreve para quem é leigo e se interessa por aquilo que ele fala: música clássica. Conheço poucos com essa habilidade, porque ambos – o conhecedor e o ignorante interessado -, para ele, têm a mesma importância, já que se nutrem da mesma matéria, cada um a seu modo. E de qual matéria eu falo? De Ludwig van Beethoven, um dos mais importantes nomes da música em qualquer época. Para muitos, o maior. 

Acabei de ler a biografia do grande homem escrita por Solomon. É um assombro. Um trabalho cirúrgico sobre a amplidão de uma obra sem limites: as influências, a vaidade, a surdez, a bajulação, a saúde débil. O Beethoven despótico, o incompreendido, o arrogante. O Beethoven absolutamente genial que, quando queria, era incomparável, senhor absoluto do elemento musical. Claro: há um capítulo sobre o tema amoroso e, evidentemente, a Amada Imortal dá o ar da graça. Há também os relatos absolutamente saborosos das circunstâncias que levaram o gênio a compor determinadas peças musicais. É de não querer parar de ler.

I48 variações sobre Bach | Amazon.com.brniciei, neste mesmo dia em que escrevo este texto, a releitura de 48 variações sobre Bach, de Franz Rueb. Li-o quando veio a público, há 21 anos. É biografia estilosa, diferente de tudo o que já li (ou reli), traduzido numa narrativa incomum. Rueb é suíço, dedica-se à música desde a adolescência e ele mesmo sabia que ouvir Bach aos dezoito anos é diferente de ouvi-lo 40 anos depois. Essa é a premissa: Bach varia, modifica-se para melhor, sempre. E essa variação estende-se à própria concepção do Kantor.

Há o Bach religioso, luterano; há o Bach iluminista, algébrico, pensador. Franz Rueb analisa os dois de forma descontraída, com linguagem acessível – um tanto distinta daquela de Solomon – e simples. As Variações Goldberg, mote para o livro, são, originalmente, um exercício para teclado: repetições necessárias com sutis modificações. O livro é isso. Bach, único, torna-se variável em vida, obra, realizações, sentimentos, pessoas. Nada mais óbvio, nada mais inventivo. Vale a leitura.

Alejo Carpentier: música & letras

Alejo Carpentier - Portal da LiteraturaFiquei alguns anos me preparando para escrever sobre aquele que considero o maior escritor latino-americano: o cubano Alejo Carpentier. Bem, afirmar que ele é o maior é juízo de valor e, portanto, subjetivo. Um querido amigo disse que ser o maior num país que produziu Lezama Lima e Cabrera Infante não é fácil. Concordo: mantenho a afirmação, entretanto. Carpentier tem a elegância e a erudição necessárias aos grandes escritores – sem deixar, claro, que tais elementos o afastem de leitores menos exigentes, mas que apreciam a arte literária. Antes que me apedrejem: escritores inteligentes escrevem para leitores inteligentes.

Fiz referência a ele ao escrever sobre Antonio Vivaldi, numa postagem recente. Concerto Barroco é uma obra-prima, que se aproxima de uma outra, intitulada A Sagração da Primavera, dois livros que nascem da música e vivem por ela. Isso sem contar El Acoso, que ganhou tradução como O Cerco, e que versa sobre política e, claro, música. Alejo Carpentier era um sujeito de muitas caras (no ótimo sentido): era jornalista apaixonado por arquitetura, música e pintura. Lia partituras e versava sobre pintores expressionistas com propriedade.

E era um escritor extraordinário, cujo barroquismo da linguagem pode parecer, de imediato, difícil (e um tanto fastidioso). Seus livros (li alguns) não me assombraram inicialmente – com exceção para o citado Concerto Barroco -, e me obrigaram, não sem paciência, a esperar os enredos ganharem ritmo. Aconteceu com A Sagração da Primavera, uma história de amor entre um cubano revolucionário e uma bailarina russa. Aconteceu com O Cerco, narrativa curta cuja base é a Eroica, terceira sinfonia de Beethoven.

Carpentier escreveu La Musica en Cuba. Não conheço a obra, mas imagino que sua pesquisa deva ter a profundidade necessária ao esclarecimento pleno dessa específica arte. Em O Músico em mim, um retrato extraordinário da relação entre o romancista e a música, Alejo Carpentier expõe seu conhecimento vastíssimo sobre a música clássica do século passado, mas isso é papo para uma outra postagem. Fique com A Sagração da Primavera, com Concerto Barroco e com O Cerco. Ou, ao menos, um deles.

Elvis e Cocker: preteridos

A curiosidade – dizem! – mata gatos. Curioso que sou, fui à web em busca de informações acerca dos grandes cantores do rock. Em outras palavras: tenho meus preferidos e, num certo sentido, senti-me no direito de comparar meu gosto pessoal com predileções de gente que não conheço. Evidentemente há concordâncias. Quem, numa lista de 10 cantores de rock, deixaria de fora Freddie Mercury, Robert Plant e Tina Turner? Observando listas pela internet – Billboard, Rolling Stones etc -, surpreendi-me com duas ausências que, inclusive, entrariam no meu top 5.

A primeira defecção chama-se Elvis Presley, o maior cantor do rock – apenas para mim, pelo jeito. Ok, para os fãs mais alterados também. A segunda ausência tem o nome de Joe Cocker que – mais uma vez minha visão pessoal – só perde para Elvis, e olhe lá! O que me causou espécie foi que nenhuma lista, a considerar os veículos mais “respeitados”, sequer mencionou esses dois senhores. E olhe que a lista da Billboard traz 50 nomes! Das duas uma: ou não entendo nada de música, mais especificamente de rock e de quem os canta, ou eles são um rebanho de amnésicos cujas audições são, para dizer o mínimo, duvidosas.

Joe Cocker: Ein Rückblick zum Todestag des Sängers

Tudo bem: não haveria rock sem Chuck Berry. Convenhamos, porém: sem Elvis, o gênero não teria a amplitude que teve. Sem contar que Elvis deu ao rock um apelo sexual que ele não tinha. Ele, o rock, bem entendido. Um branco com voz de preto, unindo universos que se distanciavam, fazendo caucasianos reverenciarem o blues, fazendo os pretos apreciarem o country. Elvis foi além da música, essa é a verdade. Isso sem falar na voz poderosíssima, na sensualidade inequívoca, no suinge incomparável e na capacidade de cantar baladas, valsas, canções de natal, blues e gospel com a mesmíssima competência.

Salió el trailer de "Elvis", biopic del Rey del rock and roll • Canal C

Quanto a Joe Cocker, bem, há, no rock, cantor mais visceral? Mais dramaticamente sedutor, capaz de transformar canções modestas em espetáculos de voz e trejeitos? Seu vocal parecia ter saído de cavernas escuras, parecia ter atravessado oceanos de lava e sofrimento, até desembocar numa explosão de beleza, sensualidade e vigor. Não conheci – leia-se ouvir – nenhum outro cantor que provocasse tamanha pressão sobre o ouvinte. Sim, claro: é opinião, assim como é a opinião de quem cria uma lista e deixa de fora esses dois monumentos vocais. Elvis Presley e Joe Cocker merecem, talvez, uma lista só para eles.

Músicos pintores #2: Ron Wood

“Se Miles Davis pode, por que não você, Ronnie?”, perguntou, certa vez, Charlie Watts, o célebre baterista dos Rolling Stones. Segundo a lenda, a frase foi proferida quando o guitarrista Ron Wood, entre a oitava e a nona dose de uísque, afirmou que não somente apreciava Van Gogh como sentia que tinha talento para fazer, numa tela, o mesmo que o genial holandês fez. Bem, o C₂H₆O fez a autoestima do guitarrista ir à estratosfera – o que não chega, para muitos, a ser uma vantagem. Eu, de minha parte, aprecio os quadros do stoned. O Keith abaixo é uma beleza:

 Ronnie Wood is looking to earn a bit of extra cash by selling portraits of his fellow Rolling Stones bandmates

A partir de então, Ron Wood frequentou a Ealing Art College, levando a sério a arte de pintar. Percebendo o óbvio, que as cenas de rock são plásticas per si, o guitarrista dedicou-se a imprimir, em cores e pinceladas, o que havia de mais emblemático – e por que não acrobático? – nas performances não somente dos Stones, mas de outros músicos que lhe chamavam a atenção. É o caso de Jimi Hendrix, abaixo, cuja essência parece bem capturada. A pose de beatitude, de reflexão cósmica está lá, nos olhos fechados e lábios cerrados. Quer mais? AQUI você vê Jeff Beck e Eric Clapton, pela mão de Ron.

Alguns poucos críticos levam a sério quando o guitarrista sai do palco e substitui um instrumento por outro. A maioria diverte-se com as estripulias pictóricas que Ron Wood apresenta ao público – e isso inclui uma quantidade enormíssima de obras que vão da arte figurativa ao abstracionismo, passando por esculturas, line drawings, imagens naturais e representações de animais. AQUI, por exemplo, seu gorila. Para Ron, a arte é terapêutica: “Não há melhor terapia do que iniciar um quadro e conseguir terminá-lo.”

Critics tell Ronnie Wood to stick to music ahead of exhibition | Ronnie Wood | The Guardian

A crítica Louisa Buck disse  que “somente o ego de uma estrela do rock seria capaz de achar interessante colocar a si mesmo e a própria banda num quadro que representa a devastação de Guernica”. Tem razão, claro, em criticar a possível heresia em relação ao mestre espanhol, mas não é este um dos propósitos da arte: transgredir, subverter a ordem estabelecida? Para ela, Ron Wood deveria manter nas mãos uma guitarra, e não pincéis. Um outro crítico, Oliver Basciano, afirmou que “a arte deve possuir uma dose de ousadia, mas aí já é demais.” Talvez esteja certo, talvez não.

Rolling Stones Guitarist Ronnie Wood Is Also an Artist—But His Amateur Paintings Can't Get No Satisfaction From Critics

A quem interessar possa: AQUI, uma palinha.

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