Adeus a Leny

Ouvi Leny Andrade pela primeira vez aos 25 anos, quando alguém – não me lembro quem – afirmou que ela cantava melhor que Carmen McRae, a qual eu ouvia com devoção, reverência. Indignado com a possível blasfêmia, e com a intenção inequívoca de contestar a afirmação, fui, com cautela, ouvir Estamos Aí, um elepê que a Odeon havia lançado em 1968, no qual havia duas canções de Marcos Valle, A Resposta e Banzo. Marcos Valle é uma fera desconhecida das gerações que enaltecem padres cantores, rappers, funkeiros, cantores sertanejos e que tais. Havia também gemas cristalinas como Deixa o morro cantar e Esqueça não, ambas de Tito Madi, e Razão de Viver, de Eumir Deodato e Paulo Sérgio Valle. Um discão!

Após a audição – cautelosa, repito -, fiquei em dúvida quanto à comparação com Mrs. McRae, mas cheguei à certeza de que Leny Andrade não lhe era inferior. No fim e ao cabo, para que comparar? Desde então saí garimpando discos de Leny – o que era difícil de encontrar até o advento do cedê, que trouxe, finamente, alguns de seus mais interessantes trabalhos, dos quais destaco Embraceable You, clássico dos irmãos Gershwin, em que brilham maravilhas como Stella by Starlight, Night and Day, The Shadow of your smile, The Man I Love, Misty e Autumn Leaves. É um disco de jazz, executado por uma das suas maiores intérpretes. Tenho vários outros discos dela: todos ótimos.

O vozeirão cantava tudo (em notas certas): do samba-canção à MPB; do blues à valsa, passando pelo jazz, pela balada, pelos ritmos latinos. Não conheço faixa em que ela tenha cantado rock, mas, caso o fizesse, colocaria muita gente no bolso. Leny Andrade fez fusion: jazz, Bossa Nova e samba tradicional andaram de mãos dadas, numa ciranda criativa e à base de improvisos: o que caracteriza a arte da voz. Ir de um lado a outro, de uma ponta à outra, mantendo-se firme e autêntica. Consagrada internacionalmente, respeitada por quem a ouviu, é a cantora brasileira mais reverenciada.

Leny morreu hoje, dia 24 de julho. Dependia de amigos (quase todos artistas reverentes) para tratamento de saúde. Nos últimos dois anos, fizeram-se lives de cantores e compositores, via YouTube, com o objetivo de fazer dinheiro para financiar sua terapêutica e os medicamentos. Sua música, contudo, fica para sempre para aqueles que amam o jazz e a música brasileira. Para mim, é, ao lado de Elizeth Cardoso e Elis Regina, a maior cantora brasileira. Ouvindo bem de perto, Leny Andrade supera as duas. Mais uma vez, entretanto: para que comparar, não?

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Francisco Grijó

Francisco Grijó, capixaba, escritor, professor de Literatura Brasileira. Pai de 4 filhas.

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