Landis, a diversão

Considero John Landis um craque. Falei isso há 40 e poucos anos, quando assisti a dois de seus filmes, em edições piratas para videocassete. Quais filmes? Clube dos cafajestes sobre o qual já escrevi e Os Irmãos Caras-de-pau (terrível título em português para o ótimo The Blues Brothers). Eis uma questão: comédias são vistas pelos intelectuais como filmes menores, que não provocam reflexões, que não nos trazem ferramentas para encarar a realidade, que não dinamitam nossas frágeis e provectas convicções. Já ouvi psicanalista dizer que o filme bom nos angustia.

Depois disso, procurei não perder qualquer filme no qual estivesse envolvido. Aliás, faço cá uma confissão: passei a valorizar a figura do diretor a partir de John Landis. Tudo bem, eu era um garoto de 20 anos, para quem o cinema era somente diversão. No caso de Landis, o verbo divertir é amplificado, levado ao extremo mas sempre contando uma ótima história. Afinal, não é disso que se faz o cinema? De boas histórias? John Landis aprecia homenagens: fã de Frank Capra, fez o ótimo Trocando as Bolas; entusiasta dos filmes de Lon Chaney, fez o divertido Um Lobisomem Americano em Londres. Sente-se um devedor dos grandes nomes do cinema — à frente ou não das câmeras.

John Landis: «Aujourd'hui, un tiers de mes films ne pourraient plus exister» – Libération

Landis veio do cinema independente, assim como vários grandes nomes do cinema. Não teve o status de um Coppola, de um Kubrick ou de um Scorsese — nem a popularidade e a influência de um Spielberg. Talvez porque tenha feito questão de ir por outro caminho, encarando o espectador como alguém que deixou o conforto do lar para, na sala escura, e por duas horas, refestelar-se com atuações divertidas e histórias bem armadas. Ok, antes que se ressalve: Landis fez Os Três Amigos e Oscar – minha filha quer casar. Neste último, a ousadia chegou ao limite: Stallone como gangster sem dar sopapos em ninguém. Pois é: não são bons filmes. Divertem pouco.

Escrevo sobre John Landis porque, zapeando como um desocupado diante da tevê, deparei-me com The Blues Brothers 2000. Sem o brilho do alucinado John Belushi, mas com um John Goodman inspiradíssimo, e uma ótima trilha sonora, o filme cumpre o que promete, que é justamente o mote desta postagem. Landis é, sim, um craque nas telas, mas muita gente só o conhece porque ele dirigiu o absurdamente famoso videoclipe Thriller, com Michael Jackson dançando e virando bicho. É divertido também — mas John Landis fez muito mais que isso. 

A água funda da Sra. Guimarães

Quem é a grande escritora brasileira? Rachel de Queiroz? Clarice, Conceição Evaristo? Cecília, Hilda Hilst, Lygia Fagundes, Nélida Piñon? Primeiramente, não se deve, sob hipótese alguma, comparar uma com a outra, embora o superlativo melhor já embuta, em seu ventre, a comparação. Tudo bem: vamos em frente. Entre tantas escritoras mencionadas neste parágrafo ou não , fico com Ruth Guimarães, autora do brilhante Água Funda. Mulher preta num mundo de homens brancos (o Modernismo brasileiro), rivalizou, em linguagem e tema, com o totem João Guimarães Rosa. Encarou o mineiro com potência.

Ruth Guimarães: a primeira escritora brasileira negra conhecida nacionalmente - Lab Dicas Jornalismo

Li Os filhos do Medo, que chegou a mim numa cópia xérox, pirata, nos anos 1980, quando apenas os iniciados – coisa que eu não era a conheciam. Um tempo depois, talvez uma década, assisti a uma palestra de Alfredo Bosi, na USP, sobre a chamada fase 3 do Modernismo brasileiro: e lá estava Ruth Guimarães, metonímica. Bem podia estar lá em pessoa (como disse o professor Bosi), já que, ainda viva, beirava os 70 anos. Foi enaltecida com justiça, e nessa palestra, ouvi pela primeira vez elogios à obra Água Funda, um romance marcado pelo realismo mágico, que fez a cabeça de uma geração antes da minha.

Água funda | Amazon.com.brÁgua Funda é uma maravilha, um clássico, um livro para ser lido e relido. É a obra-prima. É o mundo caipira que se funde à linguagem musical: é o coloquial em namoro com o erudito. E isso tudo de forma a criar no leitor tanto a curiosidade pela trama quanto o embevecimento diante da forma de narrar. Há humor, angústia, tragédia, sexo, misticismo, fé, moralidade e dor. O que escapa a Ruth Guimarães? Nada. É um romance completo, se é que isso existe. Bem, se existe, eis aqui o exemplo.

Ruth Guimarães é chamada escritora afro-brasileira. Isso me soa resumitivo, embora necessário. Ela vai além, muito além do que representa a etnia, embora seja fundamental mostrar que uma mulher negra foi capaz de fazer grande literatura. Suas herdeiras, como Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro e Sueli Bispo, compreendem essa necessidade. Eu também assim como compreendo que esse espaço de escritora negra é uma conquista, mas não definitiva. É preciso continuar a produzir, e divulgar essa produção. E, se puder, ler Ruth Guimarães.

O poeta da violência, aos 100 anos

Se Sam Peckinpah estivesse vivo, teria feito cem anos ontem, 21 de fevereiro. É um dos grandes do cinema, a meu ver. Claro, claro: intelectual que se preza aprecia os cinema europeu, iraniano, paquistanês, e agora, o coreano. Eu ainda acho que o cinema norte-americano produziu o que de melhor houve entre 1940 e 1970. Não sou papalvo. É evidente que reconheço o valor de Antonioni, de Truffaut, de David Lean, de Saura, de Buñuel e de mais um batalhão de cineastas que ajudaram a moldar o século XX. Há, entretanto, os norte-americanos, tão demonizados pela intelligentsia, e vistos como vendilhões da sétima arte.

E Sam Peckinpah? Bem, esse senhor dirigiu 4 filmaços, para dizer o mínimo. Sob o domínio do medo, Meu ódio será tua herança, Os Implacáveis e Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia. Violento e brutal, o cineasta implementou uma marca fílmica muito pessoal, realista, abusando no bom sentido da sensação de angústia e claustrofobia a que os personagens eram submetidos. Irônico, apresentou ao espectador o mundo não como ele é, mas como ele é concebido pela falta de escrúpulo, pela ganância e enviando as boas intenções às favas pelo ódio que o ser humano nutre por outro. Embora Meu ódio será tua herança seja considerado sua obra-prima, gosto mais de Sob o domínio do medo.

Tesouros da Sétima Arte – “Sob o Domínio do Medo”, de Sam Peckinpah

Peckinpah foi, num certo sentido, um rebelde. Era neto de um cacique paiute talvez daí seu pendor para os faroestes. A mencionada violência não é, em momento algum, louvada: ela é apenas consequência (e muitas vezes reação) das relações humanas. Ok, há um certo exagero: banhos de sangue em Meu ódio será tua herança, a multiplicação de cadáveres em Alfredo Garcia, o estupro e a matança em Sob o domínio do medo. À época, causou furor, vômitos e protestos. Se comparada com os filmes de hoje, a violência é quase pueril. Eu disse quase.

Houve uma geração hoje, senhores de 80 anos que salvou Hollywood: Coppola, Cimino, Spielberg, De Palma, Lucas, Scorsese, Altman e, claro, Peckinpah. Quase todos sofreram nas mãos dos produtores, mas alguns sofreram mais. Pat Garret e Billy the Kid penou nas mãos de Gordon Carroll, o manda-chuva que tentava mostrar, em vão claro! , como Sam devia trabalhar. E olhe que Peckinpah, oriundo da tevê, era especialista em westerns! Conseguiu até fazer Bob Dylan atuar! O cinema norte-americano, hoje, tem lampejos de genialidade, mas vive certo marasmo mesmo gerando milhões nas bilheterias. Falta um Sam Peckinpah para chacoalhar a indústria.

Pedro: poeta & bispo

A segunda vez que ouvi falar de Dom Pedro Maria Casaldáliga foi ao ouvir, assim que veio ao mundo, em 1982, o disco Missa dos Quilombos, de Milton Nascimento. É um disco de rara beleza, de temática social e cristã, gravado na Igreja de Nossa Senhora dos Homens, em Minas Gerais. É, de fato, uma missa musical, estruturada para ser primordialmente ouvida. Mas não é sobre Milton que quero falar e sim sobre um dos parceiros (o outro é Pedro Tierra), o bispo católico nascido na Espanha era catalão e naturalizado brasileiro, defensor dos direitos humanos, taxado de comunista por invasores de terra, que o juraram de morte.

E quanto à primeira vez? Também com a participação de Milton, no encarte do disco Sentinela, de 1980: um dos melhores discos desse artista extraordinário. Mas repito: Milton, nesta postagem, é secundário. Em primo plano está o bispo, a figura ímpar, o ativista, para muitos o santo (epíteto que sempre descartou, sem qualquer falsa modéstia). Religioso e hábil com as palavras, um herdeiro de Vieira, célebre orador. Casaldáliga, humanista como o padre seiscentista, indignou-se com o tratamento aos povos nativos, originários – antigamente chamados de índios. Dedicou-se, de corpo, alma e palavras, a defendê-los. A eles e aos trabalhadores rurais, que carinhosamente o chamavam de Pedro. Ei-lo:

Evangelizou sem colonizar, porque sabia que eram termos excludentes. Foi um poeta social, para quem as palavras deveriam servir à liberdade, à justiça, à luta. É, nessa seara assim como Pe. Antônio Vieira, mais uma vez autor de Versos Adversos, dentre vários textos. Se quiser ler, AQUI você consegue. O prefácio é de um dos meus ídolos literários, o professor Alfredo Bosi. Para muitos, a religião, algo limitador, é incompatível com a arte elemento libertador. Não sei. Sem a religião, o que seria da obra de Bach, de Vivaldi, de Palestrina? Essa questão fica para depois.

VERSOS ADVERSOSSua poesia é contundente, ao mesmo tempo que lírica. O domínio da palavra é tão evidente quanto a fé que, edificada, alicerça sua visão de fraternidade, amor ao próximo, luta contra a desigualdade e em prol da paz entre os homens. Ele sabe, entretanto, que a paz é consequência do ânimo e da união. Sabia o que estava dizendo, e o dizia de forma simples, sem arroubos sentimentais ou arabescos verbais. Era um poeta em sua essência: vivo para quem metonimicamente o ler. Hoje, 16 de fevereiro, ele faria 97 anos. Ave, Pedro!

Augusto nasceu na época errada

Augusto Frederico Schmidt é poeta moderno, morto há 60 anos, num dia 9 de fevereiro. Nasceu na época errada, porque, enquanto modernista, participou do mesmo grupo em que Carlos Drummond, Cecília Meireles e Vinícius de Moraes reinaram quase absolutos. Só não foram absolutos porque Jorge de Lima e Murilo Mendes estavam lá, para incomodar. Pois é: como sobressair ou sequer ser notado quando seus pares são quem são? Sem contar que a poesia dessa época ainda sofria com a ascensão da chamada Prosa de 30, com Jorge Amado, Graciliano Ramos e Érico Verissimo fazendo grande literatura.

Augusto, entretanto, sobreviveu. Fez a poesia melancólica do Modernismo, próxima de Drummond, mas ainda mais intensa. Fez a poesia de quem via o amor como falta, tendo a saudade como consequência, e o sexo como ausência. Tinha muito de Romantismo e Simbolismo, mesmo modernista. Mário de Andrade criticava-o, porque não via modernidades em sua poesia, como se o elemento moderno fosse a base estética para a grande poesia da época. Augusto Frederico Schmidt, aos olhos de muitos modernistas, nasceu velho. Talentoso, mas serôdio.

Li há poucas semanas alguns poemas de Mar Desconhecido, seu livro publicado no início dos anos 1940. É poesia confessional, um tanto adolescente, que não agrada a ouvidos e olhos de quem desemboca como eu num João Cabral ou, mais tarde, num Roberto Piva. Os versos livres se misturam à métrica; os versos brancos estão lado a lado com rimas bem postas, intencionais é claro! É um sonetista de primeira linha, herdeiro de Guilherme de Almeida e, antes, de Alphonsus de Guimarães. Descambou para a poesia cristã, assim como fizeram os já citados Murilo Mendes e Jorge de Lima, mas aí perdeu a mão. Fez uma poesia careta e sem brilho.

Augusto Schmidt e o Galo Branco

Há certo erotismo, um tanto contido talvez pela expressividade cristã de seus poemas. Mesmo assim, a figura feminina é desejo e é morte, elementos teoricamente díspares, mas nem tanto, porque os psicanalistas fazem dessa dicotomia uma festa. Augusto Frederico Schmidt tem seu valor, e tal valor seria mais celebrado se tivesse feito poesia 40 anos antes, quando Cruz e Sousa conflitava com Bilac et caterva. Teria sido um bom companheiro para uma poesia que, no mundo, foi poderosa, e no Brasil teve vida curta. No fundo, Augusto era um simbolista no corpo de um moderno. Ainda assim, os compêndios literários mencionam-no com a devida e merecida frequência. Eis uma palinha de Elegia:

                                     Tua beleza incendiará os navios no mar. / Tua beleza incendiará as florestas.

                                     Tua beleza tem um gosto de morte. / Tua beleza tem uma tristeza de aurora.

                                     Tua beleza é uma beleza de escrava. / Nasceste para as grandes horas de glória,

                                     E o teu corpo nos levará ao desespero (…)

Jazz doméstico: Afonso Abreu Trio

Deixando as férias para trás: estamos de volta, com plural de modéstia e tudo o mais.

Iniciando 2025 com música. Escrever sobre amigos é sempre perigoso, já que o afeto mete o bedelho onde não deve. Mesmo assim, deve-se tentar. Ouvi e reouvi um disco que completará, em outubro, 25 anos: o tal jubileu de prata, seja lá o que isso queira dizer. O disco em questão é Palco Iluminado, de um trio de jazz capitaneado por Afonso Abreu, contrabaixista de primeira, na estrada há 60 anos. Os outros componentes do trio: o pianista Pedro Alcântara e o baterista, tão longevo quanto Afonso, Marco Antônio Grijó. Sim, é meu parente. O disco em questão foi gravado ao vivo, no Teatro Carlos Gomes, centro de Vitória, em 2000. O título é adequado. Eis a capa:

Grijó e Afonso entendem-se há 50 anos: uma parceria quer se iniciou no coração da década de 60 século passado e estendeu-se até os dias atuais, mesmo que sem a frequência de antes. Fizeram, e ainda são capazes de fazer, um um de primeiríssima, suingado, pulsante, absurdamente ajustado. Esse ajuste se deve também à presença do pianista, que mostra o caminho por onde todos devem ir. Pedro Alcântara exsuda talento: os dedos parecem multiplicar-se diante de Steinway e seus filhos. É o trio perfeito, a música perfeita.

Há pelo menos 3 performances antológicas: All Blues, de Miles Davis; Autumn Leaves, do húngaro Joseph Kosma, e O Morro não tem vez, da dupla Jobim-Vinicius. Marco Antônio Grijó, um tanto contido porque o repertório assim exigia, é a cozinha de luxo, sublinhando significativamente o que Pedro e Afonso dialogam entre si. A sempre difícil brubeckiana In Your own sweet way é um dos pontos altos do show, com o pianista alternando entre o fraseado lírico e a base percussiva. É uma beleza.

Afonso e Grijó foram mamíferos. O que isso quer dizer? AQUI você entenderá. AQUI também. O entendimento mútuo proporcionou uma adequação musical como pouco se vê, por aqui. Pedro adequou-se: foi o amálgama perfeito para que esse disco pudesse vir à superfície, de forma a apresentar a quem não (re)conhece o jazz feito no ES. Não um jazz com características específicas música não é moqueca! , mas a execução exemplar do gênero que foi levado a limites que realmente impressionam. Sim, e o palco se ilumina, porque o trio é jazz, é luz e é som. Aproveite.

De lambugem: All Blues em outra ocasião.

Música & MPB: livros essenciais

Coração Americano - Bastidores do álbum Clube da Esquina | Amazon.com.brNatal, época de presentear: música & livros + história da MPB. Ganhei da consorte, por bom comportamento, dois ótimos e essenciais livros sobre a música brasileira. Um deles sobre determinado disco no caso, Clube da Esquina, de Milton Nascimento. Coração Americano Bastidores do álbum Clube da Esquina, organizado pela produtora cultural Andrea Estanislau. Com textos escritos pela rapaziada que participou de toda a confecção do disco os irmãos Lô e Márcio Borges, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Toninho Horta e Tavito , o livro tem um trabalho gráfico de primeiríssima: papel Couché, fotos inéditas e diagramação que foge ao trivial.

Sempre há um porém: faltou um texto escrito pelo gênio do grupo, Milton Nascimento, embora haja uma entrevista dele concedida ao parceiro Fernando Brant. Depoimentos de Beto Guedes, Wagner Tiso (orquestração) e Alaíde Costa (na participação de uma das faixas) apresentam visões particulares de como foi trabalhar com e em grupo. Sim, sim, tenha certeza: é um livro fundamental para quem quer conhecer o processo de criação de um dos mais importantes discos da história da MPB.

Livro Para Seguir Minha Jornada Chico Buarque Regina Zappa | MercadoLivreOutro livro: Para seguir minha jornada Chico Buarque, escrito pela jornalista Regina Zappa, que já havia escrito uma pequena biografia do compositor para a série Perfis do Rio, editado pela Relume Dumará e publicado em 1999. Neste livro, editado pela Nova Fronteira, a jornalista vai além muito além. Num trabalho de pesquisa que abrange da infância até os 80 anos do mais importante artista da MPB, a jornalista vai fundo na história de vida e de música do meu xará. Se não é o livro definitivo, chega perto.

Do primeiro contato com a música, a infância na Itália, a opção por deixar de lado a arquitetura, as parcerias, as participações nos festivais, os primeiros discos, a censura, o casamento, as filhas, os grandes discos na década de 1970, a dramaturgia, a narrativa (do conto Ulisses até os romances consagrados de hoje) tudo isso é levado a medidas extremas de informação. Sem contar as fotos que, até onde sei, não haviam sido publicadas em livro. É outro trabalho gráfico esplêndido. Se você não conhece a fundo a obra de Chico Buarque, vai se encantar com o livro. Se conhece, vai se surpreender por perceber que há muito a aprender.

Milton Nascimento e Chico Buarque: Primeiro de Maio - Vermelho

O melhor do jazz #13: contrabaixistas

Quem é o melhor contrabaixista do jazz? Não faço a mínima ideia. Posso, claro, enumerar os meus preferidos, aqueles que, nesses 45 anos ouvindo jazz, mais me agradaram aos ouvidos. Creio que Charles Mingus seja uma unanimidade, um ícone jazzístico que superou a restritiva condição de contrabaixista. Além de band leader, foi um grande orquestrador, um arranjador de primeiríssima e um ótimo pianista. Penso que é o primeiro da lista, com justiça. E o disco em questão, Pithecantropus Erectus, de onde saiu a faixa homônima, se não é sua obra-prima, chega perto.

Ray Brown aparentemente tocou com todos os grandes nomes do jazz. Ao menos com quem importa: Duke Ellington, Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Bud Powell e Oscar Peterson. Dono e senhor de um estilo plural, foi um sideman de luxo, e um solista absolutamente perfeito. Gosto de todos os discos de que participou todos os que conheço, evidentemente. Há um, em especial, Black Orpheus que é, de fato, Manhã de Carnaval, de Luis Bonfá , cuja faixa-título pode ser ouvida e vista abaixo. Na bateria, George Fludas, o grande baterista de Chicago.

Miles Davis responde como líder de dois enormíssimos quintetos do jazz. O primeiro traz como contrabaixista o gigante Paul Chambers; o segundo apresenta um dos maiores do jazz: Ron Carter. Fã de música brasileira, tocou com Antônio Carlos Jobim, Luiz Bonfá, Robertinho Silva e Hermeto Paschoal, sem contar que lançou um discaço chamado Orfeu. No quinteto de Miles, mostrava a que vinha: dono de um senso de ritmo de de suingue inigualáveis no jazz, Mr. Carter fazia na cozinha o que fazia na sala de jantar ou seja, como líder. É um dos maiores. Abaixo, com seu quarteto, no Festival Internacional de Jazz de San Javier, na Espanha. Ouça tudo; em particular de 2:45 a 4:15.

Imagine um contrabaixista que foi considerado como o melhor de todos por músicos como Paul Quinichette, Sonny Stitt e Lee Morgan. Imagine um músico que não se intimidou ao tocar junto a Miles Davis, John Coltrane e Bill Evans, no quinteto que trouxe ao mundo Kind of Blue. Pois esse sujeito existe e se chama Paul Chambers, a quem se deveu uma revolução no instrumento, com um senso de ritmo até então nunca visto. Assim como Jimmy Blanton, seu ídolo e contrabaixista de Duke Ellington, Paul Chambers passou a não depender mais do baterista para atuar. Fez história. Abaixo, um solo em On Green Dolphin Street, acompanhando (e usando o arco) o pianista Wynton Kelly.

Da primeira vez que ouvi The Shape of Jazz to come, do saxofonista Ornette Coleman, fiquei impressionado com o contrabaixista, Charlie Haden. Sem um piano que criasse a “liga” para os outros músicos, ficou por conta das cordas fazerem seu trabalho. Haden é um craque. Seu trabalho ao lado de Art Pepper é igualmente excelente, e mais maduro, mais profissional. E, com Jan Garbarek, no sax, e o brasileiro Egberto Gismonti, ao piano e ao violão, criou uma das grandes performances em Montreal. Acompanhe, abaixo, a partir de 6:29. Aliás, veja tudo.

Castro, Jobim: textos curtos demais

Volto a Antônio Carlos Jobim e também a Ruy Castro. Já escrevi sobre os dois, aqui, neste blogue que poucos leem. Há alguns anos imaginei que meus leitores fossem seis ou sete. Hoje já solto fogos quando alguém aparece por estas cercanias. Desabafos à parte, vamos a Tom & Ruy. Acabo de ler O Ouvidor do Brasil 99 vezes Tom Jobim, do jornalista-escritor-biógrafo-imortal Ruy Castro. Li de uma tacada: 220 páginas com 99 crônicas – todas elas curtas – que versam sobre o maestro. Falei errado: nem todas versam. Algumas apenas citam. Lendo a introdução, o cronista foi sincero: “Em alguns [textos] a presença de tom poderá parecer de passagem.” É verdade.

Tom Jobim é realmente um craque. Uso o presente do indicativo porque obra e autor, aqui, mostram-se confundidos, metonímicos: sua obra não morre, de modo que o criador mantém-se entre os vivos. Ruy Castro também é craque, e já mostrou isso escrevendo sobre Bossa Nova, sobre Garrincha, Nelson Rodrigues, Carmen Miranda. Escreveu sobre Ipanema, sobre o samba-canção e sobre alguns selecionados artistas do século XX. Escreveu sobre filmes, sobre música e sobre literatura. É homem de repertório farto.

Em O Ouvidor do Brasil há um problema que não se encontra em nenhum outro livro de Ruy Castro (talvez em Ela é Carioca, mas isso merece uma postagem única). O texto curto não lhe faz bem. Ele é bom quando tem tempo para escrever, quando mergulha fundo naquilo que elegeu como assunto e como obsessão. É preciso, para esse mergulho, muito fôlego e ele tem isso de sobra. E quando é obrigado a vir à tona, para respirar e tomar sol? Os textos, publicados entre 2007 e 2023, na Folha de São Paulo, obrigaram-no a sintetizar algo que não merecia síntese. Pode ser que muitos tenham apreciado sua capacidade de falar muito com poucas palavras. Eu, não.

Ao final de boa parte das pequenas crônicas, fiquei com aquela sensação de que o autor teria feito um trabalho muito melhor caso tivesse mais duas páginas apenas duas, não mais que isso. A linguagem de Ruy Castro se mantém clara, irônica, bem armada, por vezes mordaz. É sua vantagem e nosso privilégio. Limitá-la (e tenho certeza de que a responsabilidade é do veículo, a Folha) é um pecado. Mesmo assim, merece ser lido afinal, quantas oportunidades temos de ver um craque falar do outro?

Jethro Tull revisitado (um prelúdio para Mick Abrahams)

Album Art Exchange - Stand Up by Jethro Tull - Album Cover ArtSe alguém perguntar a quem gosta realmente de rock qual a grande banda progressiva, é possível que se ouçam nomes como Yes, Pink Floyd, King Crimson e Genesis. São essas, evidentemente, e com justiça, as mais conhecidas, mais famosas. Rock progressivo é coisa de europeu, flerta com o jazz, com a música erudita, usa e abusa de sintetizadores, teclados, algumas letras são longas, os arranjos são complexos. É a parte adulta do rock: não é, em sua essência, feito para dançar nem  para servir de música de fundo. É som para se ouvir mesmo. Mas por que falo de rock? Porque acabei de ouvir Stand Up, o segundo álbum da ótima banda Jethro Tull. Está AQUI, caso queira ouvir.

Eu conheci o Jethro Tull em meados dos anos 1980, quando ouvi Thick as a brick por acidente, na casa de um amigo. Não dei muita bola, mas fiquei curioso para dizer o mínimo quando soube que o mesmo artista, no caso Ian Anderson, líder da banda, dava conta da flauta, do acordeão, do trompete, do saxofone e do violino. E ainda cantava, com uma voz que, se não tinha muito alcance, era marcante, singular. Apreciei e, algum tempo depois, ouvi This Was, o primeiro disco da banda. Se já apontava como destaque no rock progressivo, ainda havia uma vantagem: o guitarrista Mick Abrahams, que só tocou com o grupo neste disco. Consta que, por não viajar de avião, optou por deixar a rapaziada a ver navios.

A versão oficial é outra: diferenças criativas com Ian Anderson. Ok, então. O disco que ilustra a postagem, e que acabei de ouvir, é de 1969 segundo álbum , e Mick, sem alçar voo, deu lugar a Martin Barre, outra fera nas cordas, além de cuidar de muitos arranjos de canções. Há quem diga que foi o par perfeito para o líder da banda. Pode ser, mas eu ainda fico com Mick Abrahams; confesso, todavia, que Mr. Barre deu conta do recado. Ouça o disco e você perceberá isso. Há uma outra questão, que, a meu ver, valoriza o álbum: Ian Anderson, e ele mesmo afirma isso, bebeu na fonte jazzística de Ornette Coleman, de Charlie Parker e do alucinadamente criativo Rahsaan Roland Kirk.

Cinco Músicas para Conhecer: Jethro Tull sem flauta

Claro que ao ouvir o disco, mesmo en passant, qualquer um que aprecie a música vai perceber o quanto há de folk nas faixas. Jon Renbourn, do Pentagle, Bert Jansch e, claro, Bob Dylan são influências evidentes. Um tempo depois, já em fins dos anos 1990, comprei um cedê intitulado At Last, da banda de Mick Abrahams, meu guitar hero que, claro, será assunto de uma postagem só dele. Por enquanto, o Stand UP, do Jethro Tull, dá as cartas. Aprecie sem moderar-se.

1 2 3 29
Page 1 of 29