Caetano, Luiz Guilherme: última palavra

Domingo após a segunda prova. Enem, 2024.

Rola um vídeo na internet em que o grande compositor e cantor Caetano Veloso resolve uma questão do Exame Nacional do Ensino Médio o ENEM em que ele mesmo fora citado.  Caetano não titubeia, escolhe a alternativa – e acerta. Poderia ter errado, como já aconteceu anteriormente, há uns dois anos. Eis então a pergunta de resposta óbvia: como pode o autor não saber a resposta correta sobre o texto que produziu? Resposta simples: o autor escreveu o texto, criou-o, produziu-o. O autor não o leu, de modo que a pergunta é feita para quem leu o texto; não para quem o escreveu.

Lembro-me de quando, há mais ou menos 35 anos, a UFES tornou obrigatória a leitura do romance A Nau Decapitada, de Luiz Guilherme Santos Neves. Sendo eu professor para alunos que querem acessar a universidade, preparei-lhes, como uma prova simulada, questões relativas à obra. Alguns acertaram; outro, não. Lembro-me também de mostrar as questões ao próprio autor, Luiz Guilherme que, ao tentar resolvê-las, não obteve êxito. Em bom vernáculo: errou-as. Eis mais uma vez o axioma: o autor não é leitor de si mesmo. Não possui a isenção necessária para, racionalmente, avaliar o texto.

Caetano, na verdade, avaliou uma crônica em que era citado – não um texto de sua lavra, criado e produzido por seu cérebro privilegiado, além da sensibilidade aguçada que possui ao escrever canções. O envolvimento emocional do autor com sua obra atrapalha-o, confunde-o. Tente imaginar um poeta, um escritor ou um compositor que, diante de sua criação, pergunta-se: o que eu quis dizer com isso? Ou, pior: como esse texto pode ser interpretado? Não é essa a função do artista.

De tropicalista inspirado, Caetano chega aos 70 abraçando contradições ...

Eis uma outra questão: quem tem a última palavra sobre um texto literário? Qual a interpretação tão correta quanto definitiva? Claro que interpretações pressupõem elementos que as justifiquem, mas a arte como um todo pode (e deve) possui inúmeras significações. Eis sua beleza e sua função: multiplicar-se em significados. Textos literários cuja interpretação não é variável correm o risco de não serem tão literários assim. Ou de serem mal escritos. Enfim, é um debate que merece atenção. Por enquanto, no meu caso, fico assim: torcendo para não precisar resolver uma questão sobre meus próprios livros.

Massaud & Machado

Discurso de recepção pelo Acadêmico Erwin Theodor RosenthalMassaud Moisés é figura obrigatória em qualquer curso de Letras, e merece deve, na verdade ser lido por professores, por estudantes e por quem se interessa por literatura. É um craque nas palavras, principalmente quando escreve sobre algum objeto definido: um escritor escolhido, uma obra de destaque, um gênero específico. É autor de livros seminais, como A Literatura Brasileira através dos textos, A Criação Literária e o essencialíssimo Dicionário de termos literários. Ao lado de Alfredo Bosi e Antônio Cândido, forma a tríade masculina da teoria literária brasileira.

Machado de Assis, bem, não há necessidade de que eu o apresente. O que realmente é necessário é mostrar quando essas duas figuras se encontram. Em Machado de Assis: Ficção e Utopia, um encontra o outro, e da maneira mais elegante possível. O adjetivo em itálico justifica-se, porque a linguagem de Massaud Moisés é de uma clareza tão absoluta que suas reflexões acerca do enormíssimo Machado tornam-se elegantes. É bom de se ler justamente por isso – além de, no meu caso, aprender um bocado.

Machado de Assis: Ficção e Utopia | Amazon.com.brOs ensaios contidos no livro não são inéditos. Foram publicados desde 1958 em revistas, suplementos literários muitos deles no Caderno de Sábado, do Jornal da Tarde, na década de 1990. Recomendo a leitura de todos os 14 ensaios, mas um deles – justamente o que intitula a coletânea é tão precioso quanto fundamental. Partindo de Brás Cubas, o notável professor traz uma ideia inédita: como o escritor-chave do Realismo brasileiro pode ser um utopista? Lá pelas tantas, ele nos diz: “Mirando-se no espelho do texto, contemplando os semelhantes transfigurados em personagens, o leitor dá-se conta da imperfeição do mundo e a um só tempo sente-se atraído pela promessa de um mundo melhor aqui na terra.” Genial.

Massaud Moisés faz o que não havia sido feito: conecta Machado a Eça de Queiroz e a Proust (que viria depois); desmistifica a oposição entre os dois Machados: o romântico e o realista; apresenta a ideia de que o adultério de Capitu é algo secundário em Dom Casmurro. E por falar em Capitu, há um ensaio sensacional em que o professor conecta Minha Vida de Menina, de Helena Morley, publicado em 1942, com a heroína Maria Capitolina. É uma das melhores coisas do livro. Bem, se você nunca leu os textos críticos de Massaud Moisés, pode começar por esse. Além de traduzir o sempre necessário Machado de Assis, dá uma aula de como pensar literatura.

Em tempo: seu nome é pronunciado “Massaúde” e não “Massô”. Ele era descendente de libaneses; não de franceses.

Tom Jobim & Jon Bon Jovi

Um querido amigo, professor no RJ, contou-me, estupefato:

“Pedi a meus alunos, todos na faixa dos 16 anos, que me apontassem um grande sucesso de Tom Jobim. Os alunos entreolharam-se, e os olhares pareciam perguntar ‘Quem é Tom Jobim?’. Eis que uma menina, mais espertinha e contumaz usuária de celulares conectados ao mundo, perguntou: ‘É esse?’, e mostrou-me uma foto e subsequentes preciosas informações sobre Jon Bon Jovi.” Para quem não sabe, este, abaixo, é Antônio Carlos Jobim:

Biografia de Tom Jobim revela mágoa com sucesso

Sim, caros sexto e sétimo leitores, é sério. A despeito do distante parentesco afinal ambos os nomes possuam o, j e i, sem contar a nasalização após o fonema /o/ , o problema não é confundir o gênio com o pop star. O real problema reside em não fazer ideia de quem é Tom Jobim. Ou pior: sequer ter ouvido falar nele. Convivo com essa realidade e, ao contrário de lamentar e pensar em suicídio, tomo-a como combustível para continuar meu trabalho. Insisto no árduo (e muitas vezes infértil) ofício de levar a essa meninada no meu caso, pré-vestibulandos entre 17 e 20 anos informações sobre o que vale a pena. Ou, por outra: o que eu penso que vale a pena.

Jon Bon Jovi chega aos 60 anos! Saiba quais são seus maiores hits no Brasil! |

Claro que há exceções. Dia desses, surpreendi-me: uma aluna perguntou-me se eu conhecia a cantora Carmen McRae. Pensei imediatamente em pedir a Jorge Bergoglio que, sendo ele meu xará, rezasse uma missa no Vaticano. É uma pergunta que, dado o ambiente e o costume, chega às raias do milagre dos pães e dos peixes. Comemorei tanto que estou escrevendo sobre. Aproveitei e sugeri a ela que lesse uma postagem sobre a distintíssima e extraordinária cantora Carmen. AQUI, caso alguém, além da aluna, deseje ler.

Eis a questão: qual o papel de um professor? Entristecer-se e, sozinho, no silêncio da noite, embebedar-se? Crer-se cúmplice do desconhecimento e, então, ingerir a letal ricina, proteína encontrada exclusivamente no endosperma das sementes de mamona? Frustrar-se com a duvidosa opção dos alunos ou, sabendo dessa triste realidade, oportunizar que eles conheçam algo além do que é veiculado pela restrita web que frequentam? Creio que a opção em negrito seja a adequada. Vou em frente, sempre. Drummond tinha razão ao afirmar “Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã.” Sem heroísmos, mas cumprindo a tarefa.

Professores & Professoras em Vitrine

Em homenagem ao DIA DO PROFESSOR 15 de outubro , aí vão alguns vídeos do podcast Vitrine Literária com Francisco Grijó com professores e professoras ligados, cada um a seu modo, à literatura. Reitero meus agradecimentos a todos e a todas que, gentilmente, dialogaram com este que vos escreve. Agradeço também a quem assistiu aos bate-papos ou os ouviu, porque estão disponíveis, também, no Spotify. Em frente, então: é só clicar e assistir.

E se quiser deixar um comentário, será muitíssimo bem vindo!

1. HERON MIRANDA, professor de Física e escritor.

2. LILIAN MENENGUCI, professora e escritora.

3. ORLANDO LOPES, professor e poeta

4. ANAXIMANDRO AMORIM, professor, poeta e escritor

5. RICARDO SALVALAIO e SAMIRA FREITAS, professores

6. FRANCISCO AURÉLIO RIBEIRO, professor e escritor

7. BERNADETTE LYRA, professora e escritora

8. SAULO RIBEIRO, professor, escritor e editor

9. THAÍS HELENA, professora e escritora

10. PAULO SODRÉ, professor e escritor

11. MARCELA AMARAL e PAULO SCARDUA, professores

12. CAMILA DALVI, professora e escritora

13. FERNANDO ACHIAMÉ, professor, poeta e escritor

14. JERRY TONONI, professor

15. RENATA BOMFIM, escritora e professora.

16. INÊS AGUIAR DOS SANTOS NEVES, escritora e professora

O melhor do Jazz #12: os livros

Livros sobre jazz há aos montes ainda bem! Embora se diga que é um assunto que interessa a poucos, eu discordo. A maioria que diz não apreciar o jazz na verdade não o conhece. Ou pode ter sido mal apresentada a ele. Os cinco livros selecionados são, todos, traduzidos para o português. Dois deles foram escritos em nossa língua. Evidentemente e eu teimo em repetir , a lista é subjetiva, e composta somente por livros que eu tenha lido. Ou seja: é lista restrita, consumida por quem não é músico, mas por alguém que gostaria de ser.

Veja os detalhes da imagem relacionada. O JAZZ: DO RAG AO ROCK - Berendt, Joachim E.Joachim-Ernest Berendt era um incansável jornalista apaixonado por jazz. Organizou vários festivais do gênero, incluindo um dos melhores em todos os tempos: o Berliner Jazztage. Nesse livro, O Jazz do rag ao rock, há uma análise arguta – embora resumida – de cada um dos subgêneros do jazz. Os grandes instrumentistas, os arranjadores essenciais, as inesquecíveis formações e o mais importante: a história do jazz contada por que era um obcecado. Ao final, como um apêndice, há uma discografia selecionada que serve como guia necessário a quem ouve ou quer ouvir jazz.

Resumo - Kind of Blue - Recentes - 1O lendário quinteto de Miles Davis era um sexteto quando um dos maiores discos da história do jazz foi concebido. Kind of Blue: a história da obra-prima de Miles Davis, escrito pelo crítico e estudioso do jazz Ashley Kahn, narra, com clareza, os antecedentes e os consequentes da criação modal de um dos maiores gênios do jazz. Das fofocas aos registros oficiais, da natureza de cada um dos envolvidos no processo de concepção do disco. Mais sobre o livro: AQUI.

Capa do livroUm dos primeiros livros que li sobre o assunto foi escrito por Luiz Orlando Carneiro: Obras-primas do Jazz, que saiu pela Zahar e, 1986. Livro de didatismo inquestionável e percepção sensível sobre os grandes nomes do gênero. Um glossário, ao final do livro, com o objetivo de familiarizar o leitor com o vocabulário jazzístico, é um dos pontos altos – sem contar, claro, a abordagem crítica de um dos grandes conhecedores brasileiros do jazz.

Jazz Panorama – Wikipédia, a enciclopédia livreJorge Guinle era uma figura. Playboy riquíssimo, frequentador do jet set internacional, cicerone das estrelas de Hollywood, e apaixonado por jazz. Bem, o livro foi publicado há 70 anos daí estar desatualizado. À parte esse pormenor, Jorge Guinle era dono de uma coleção de discos invejável, e resolveu, por conta e risco, escrever sobre jazz. Bem, teve ele a vantagem de escrever sobre muitos a quem ele conhecia pessoalmente: Gillespie, Getz, Bill Evans e Roy Eldridge eram seus amigos. Um livro ótimo, com relevantes análises de quem conhecia muito o elemento. Jazz Panorama é um título adequado, e evidentemente subjetivo.

Ainda na faculdade, ganhei, de um amigo querido, Jazz das raízes ao rock, cuja autora é Lillian Erlich. Bem, o título original é muito mais bacana: What Jazz Is All About. Enfim, o problema de tradução é grave. Por exemplo, traduz-se o disco Live at Village Vanguard, de Coltrane, como Ao vivo na Vila Vanguarda, mas tudo bem. A despeito disso, é um livro delicioso, cheio de informações básicas (para quem não tem intimidade com o jazz) e preciosas (para quem tem). São 12 capítulos que expõem a evolução do gênero, bem como suas mudanças de caminho. O capítulo sobre o be-bop, sob o título de Bird e Diz lideram o movimento é absolutamente sensacional.

Um p.s. necessário: compositores, instrumentistas, arranjadores, trios, quartetos, quintetos, orquestras e gravadoras que tenham surgido depois de 1990 não são contemplados nos livros desta lista. É o senão desta postagem se é que não há outros.

Fala! #10: Henry L. Mencken

“Se os escritores pudessem trabalhar em fábricas grandes e bem ventiladas, como os fabricantes de charutos ou cuecas, cercados de colegas e trocando mexericos profissionais, sua labuta seria imensamente mais leve. Mas é essencial ao seu ofício que desempenhem suas tediosas e vexatórias operações a cappella, o que faz com que os horrores da solidão se somem às suas outras fragilidades. Um escritor trabalhando está, contínua e inescapavelmente, na presença de si mesmo. Não há nada para entretê-lo ou consolá-lo. Toda vez que um pensamento vadio o invade, pega-o instantaneamente pela orelha, e toda vez que uma câimbra desce a sua perna, sacode-o como a mordida de um tigre.”

Henry Louis Mencken, A Mencken Chrestomathy

Mulheres #11: Catherine Deneuve

Em 1995, o incomparável Joe Cocker contracenou com Catherine Deneuve – também incomparável – no clipe N’oubliez Jamais. Se quiser checar, está AQUI. Estava, à época, com 52 anos e sua beleza continuava tão intacta quanto luminosa. Num país de belas atrizes francesas Bardot, Adjani, Ardant e tantas outras , Catherine Deneuve leva vantagem: foi bonita a vida inteira, independentemente do tempo, do clima, das oportunidades, dos casamentos etc. Foi, não. Ainda é, mesmo aos 80 anos. O tempo, implacável com qualquer ser humano, foi obrigado a desacelerar com ela.

Claro, claro: as fotos nesta postagem foram escolhidas com o objetivo de explorar sua beleza refulgente, os cabelos alourados, o rosto simétrico de olhos expressivos que tanto encantaram cineastas como Buñuel, Lars Von Trier, Chabrol, Truffaut ou Manoel de Oliveira. Aliás, até onde se sabe, era a atriz preferida desses 5 diretores citados. Chabrol, por exemplo, afirmava que Catherine Deneuve era a melhor atriz do mundo. Sim, falava de atuação em cena, algo que encantava a todos. Buñuel perdia a voz ao conversar com ela. Quando conseguia falar, afirmava que ela era a melhor coisa que a França produziu. E olhe que ele era fã dos queijos Cancoillotte e Munster.

Vi Catherine Deneuve pela primeira vez contracenando com David Bowie em Fome de Viver, de Tony Scott. É bonita de doer. Estava com quase 40 anos e mantinha a beleza com que chegara à juventude um pouco mais reluzente porque madura. O filme é ótimo e ela, como a vampira Miriam Blaylock, está magnífica. Consegue apagar a beleza sensual de Susan Sarandon, ao contracenarem. David Bowie, então, desaparece. Abaixo, a vampira, cheia de fome e solidária ao amante que envelhece. Não será difícil encontrar outro parceiro.

Fome de Viver" é marco fashion do terror dos anos 80 - Harper's Bazaar » Moda, beleza e estilo de vida em um só site

Catherine Deneuve contradisse o axioma de que a mais alta beleza está na juventude. Estava mais bonita como a personagem Gabi, de 8 Mulheres, quando contava com 60 anos, do que em Os Guarda-chuvas do Amor, em que faz a chatinha Geneviève, com apenas 20 anos. Claro, claro: é uma percepção individual, subjetiva. Há mulheres que adquirem mais beleza com a maturidade, tornam-se mais sensuais, apresentam um componente indecifrável e indefinido que boquiabrem todos aqueles que, diante delas, prostram-se. É o caso de Catherine Deneuve.

Se tivesse de enumerar 3 grandes atrizes francesas, daquelas que seguram a personagem do início ao fim, eu diria Catherine Deneuve, Simone Signoret e Anouk Aimée. Sim, há outras mas eu mesmo, por vontade própria, limitei o número. As 3 são artistas de ponta, capazes de vestir qualquer personagem com a verossimilhança necessária. Catherine mais: faça o teste assistindo a A Bela da Tarde, Tristana e A sereia do Mississipi. Se procurar, encontrará todos esses filmes disponíveis na web ou em canais fechados. Aproveite, antes que retirem do ar. Corra!

Músicos pintores #4: Dorival Caymmi

Acho Dorival Caymmi chato de doer. Não somente ele, mas a família inteira: Danilo, Dori e Nana entram na dança. Evidentemente, falo da música, do que eles produzem. Acho realmente entediante ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, não somente reconheço a importância musical dos 4 (o patriarca, mais), como chego a desconfiar que cometo um grande pecado ao achá-los chatos. Pode ser, mas, por enquanto, concordo comigo mesmo. Por outro lado, Dorival, o chefão familiar, pintava bem à beça. Era um craque, sua pintura era tão contundente quanto de aparente simplicidade. Observe isto:

Sem título - Dorival Caymmi - Dorival Caymi

Não há título, não há olhos, não há feições. Apenas o movimento da família em busca de algo – que provavelmente não será alcançado. O traço é aparentemente simples, sem rasuras, mãe grávida, pai pescador, crianças em fila. Eu, dentro de limitações críticas sobre pintura, acho um quadro genial. O primitivismo foi muito além; a simplicidade obteve algo lírico, pela citada leveza, e ao mesmo tempo narrativo. Há uma história sendo contada, que continuará num próximo capítulo. Caymmi foi certeiro.

O Nordeste é um tema de cem anos. Ou mais, se considerar que Alencar escreveu O Sertanejo mesmo sem nunca ter pisado o sertão. Virou tema literário, de fato, com o pessoal de 1930: Zé Lins, Graciliano, Raquel, Zé Américo. E, claro, seu irmão de armas: Jorge Amado. Caymmi fez, na pintura e na música, o que Jorge fez nos enredos: uma Bahia cheia de graça, beleza natural, sensualidade, gente simpática e solidária, misticismo e religiosidade. A cultura baiana e nordestina, como um todo é seu tema quase único.

Bahia: candomblé, pescadores, percussão cuja origem é africanidade , natureza, mar. Que elementos são mais necessários que esses, perguntou certa vez o próprio Caymmi. Não se sabe se o assunto é restrito pela próprias limitações do artista ou se o universo que ele reconhecia lhe bastava. Não interessa: o resultado é tão simples quanto original. Mais ou menos como sua música – só não é pintura aborrecida, chata (a meu ver, repito!). Ao contrário: é vivaz, alegre. Abaixo, o artista em ação, e diante de si personagens caros à Bahia. Caros a ele também.

 Caymmi com pincéis e telas: Rubem Braga dizia que ele foi o único a captar seu jeito de ser em uma pintura Foto: / Divulgação

Chico, o mensageiro

O extraordinário Art Blakey é, para muitos apreciadores do jazz, o melhor baterista do gênero. Eu prefiro Louis Hayes e Max Roach, mas não é isso que interessa. Um dos grandes feitos de Mr. Blakey foi ter levado o jazz a quem não o conhecia — ou, ao menos, a quem não tinha informações suficientes sobre o que era aquela música. Criou os Jazz Messengers em 1955, com o auxílio luxuoso do não menos extraordinário Horace Silver, pianista de primeira.

Mas não é sobre o jazz que quero falar — e sim sobre o mensageiro. Ou seja, aquele que leva a informação e a dissemina. Vou explicar direito. Em 2024, ano corrente, Chico Buarque de Holanda completou 80 anos. Homenagens em redes sociais, tevês, jornais impressos ou não. Depoimentos de amigos, de críticos, de produtores musicais e de irmãos de armas. Por falar em irmãos, a família manifestou-se: como não admirar seu mais ilustre membro? É minha vez de agradecer. E falo com tranquilidade: obrigado, mensageiro! Vou explicar direito mais uma vez.

Em dezembro de 1978 eu era um rapaz de 16 anos que ouvia rock (obrigações adolescentes), disco music (influência da época) e as big bands norte-americanas, das quais meu pai era fã. Nesse mesmo dezembro, Chico Buarque — de quem eu apenas ouvira falar — lançou o disco Chico Buarque, o famoso disco da samambaia, em cujos sulcos brilhavam Cálice, Até o Fim, Trocando em Miúdos, Tanto Mar, a tristíssima Pedaço de Mim, a censurada Apesar de Você e outras. No outro ano, em seus primórdios — últimos dias de janeiro —, coloquei o disco na vitrola e a epifania veio à tona. Sim, foi um momento epifânico, revelador. A ponto de eu ignorar, quatro anos depois, a música de minha geração, o BRock.

Mantive-me na MPB, ao contrário da maioria dos amigos, que foram na onda de Paralamas, Titãs, Plebe Rude, Legião Urbana, Camisa de Vênus e mais algumas tantas. Para mim, uma estrofe de Chico valia mais do que tudo o que Renato Russo e Herbert Vianna escreveram. Ainda vale. E o mensageiro? Bem, Chico me levou a Caetano, a Gil e a Vinícius, de imediato. Depois, a Edu Lobo, a Toquinho, a Francis Hime, ao MPB4 e aos sambistas da velha guarda. Merece medalha, merece homenagem, merece agradecimento. Sem Chico Buarque, eu estaria ouvindo o quê? Dinho Ouro Preto? Humberto Gessinger? Valeu, Xará, pelo livramento!

Maldição, Seinfeld, Larry David

Dizia-se que a Maldição de Seinfeld era implacável, até que Julia Louis-Dreyfus estrelou Veep e foi um sucesso absoluto. Se você não faz ideia do que estou falando, aí vai: Seinfeld foi um fenômeno da TV: uma sitcom que revolucionou a linguagem do humor, apresentou quatro personagens inesquecíveis que, por serem inesquecíveis, caíram na armadilha da personagem única. Ou seja: os atores não conseguiam encarnar outras personagens porque estavam inexoravelmente presos àquelas que fizeram deles figuras icônicas. Durante alguns anos amargaram ora fracassos, ora tentativas frustradas de ir adiante. Como eu disse, Julia Louis-Dreyfus quebrou a corrente.

A sitcom baixou as cortinas no apogeu. Conta-se que Jerry Seinfeld recusou uma proposta de 110 milhões de dólares para continuar o trabalho. Fez bem. Não quis experimentar a decadência que significa perder a audiência e ser lembrado justamente pela última impressão. Estão todos milionários. Julia um pouco mais, já que é herdeira de Gérard Louis-Dreyfus, o bilionário francês do setor de energia. E ficou mais rica ainda ao protagonizar o ótimo Veep, em que interpreta a vice-presidente dos EUA. Jerry Seinfeld, o chefão, saiu interpretando a si mesmo em várias oportunidades, fez animação e criou um ótimo esquete sobre carros, café e humoristas: AQUI.

Seinfeld (TV Series 1989–1998) - IMDb

Jason Alexander e Michael Richards tiveram também sua parte na maldição. Jason acabou fazendo aparições especiais – e provavelmente se divertindo nisso em filmes, séries e comerciais de tevê, mas não emplacou um grande sucesso. Richards experimentou a fúria justificada da opinião pública ao mostrar que, a depender do estímulo, muita gente se mostra racista. Deu-se mal, mas continua na memória coletiva como o alucinado Cosmo Kramer, detentor do título de melhor personagem de sitcom já criado.

Reapareceram, os 4, em Curb Your Enthusiasm ou Segura a Onda, no Brasil , escrito e estrelado pelo co-autor de Seinfeld, Larry David. Consta que a personagem George Costanza baseia-se nele, Larry. Segura a Onda é bom, cheio de referências a Seinfeld e a seus personagens. Larry David é um tanto previsível em sua escrotidão, chatice e intolerância. Judeu, debocha dos seus; calvo, debocha deles também. É inteligente, milionário e faz o papel de si mesmo. A série fica melhor ainda quando entram em ação outros comediantes, como Richard Lewis, Jeff Garlin, J. B. Smoove, Bob Einstein e a ótima Susie Essman. Vira festa e sem maldições.

Curb Your Enthusiasm' Season 12 Review: Old Reliable and Never Better | Arts | The Harvard Crimson

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