Os Olhos de Ansel Adams

Não sei se meus seis ou sete leitores já ouviram falar de Ansel Adams. Se gostam de fotografias, certamente sim. Por conta da Segunda Guerra, com medo de ataques aéreos que certamente vilipendiariam o patrimônio (natural ou não) norte-americano, o National Park Service convocou o fotógrafo, às pressas, para imortalizar tal patrimônio – algo que ele fez, em momentos interruptos, durante quase 3 anos. Muitas dessas fotos foram feitas nos parques nacionais Grand Canyon, Grand Teton, Kings Canyon, Mesa Verde, Rocky Mountain, Yellowstone, Yosemite, Carlsbad Caverns, Glacier, e Zion. Várias delas registraram Death Valley, Saguaro, e Canyon de Chelly National Monuments.

Snake River, Wyoming, 1941

St. Mary’s Lake, Glacier National Park, Montana, 1942

Going-to-the-Sun Mountain, Glacier National Park, Montana, 1942

Ansel Adams é um patrimônio norte-americano. Foi capaz de ver a riqueza natural de seu país como nenhum outro fotógrafo de sua época, observando a beleza de forma macrocósmica, exuberante, absoluta e, claro, registrando-a quase paradoxalmente – ou seja: em preto-e-branco, dispensando um dos elementos que o ambiente mais usa para embelezar-se: as cores. A fotografia, para Adams, é arte pura e, enquanto arte, precisa da sensibilidade do artista para ser veiculada. Caso contrário, é apenas registro, sem a função poética que apenas os grandes fotógrafos conseguem veicular.

Canyon de Chelly, Arizona, 1941

Kiersage Pinacles, King River Canyon, California

 Mount Moran, Teton National Park, Wyoming, 1941

Grand Canyon National Park, Arizona, 1942

Se você gostou e quer ver mais, é só clicar AQUI. Neste link será possível visualizar não somente o patrimônio natural, mas também as construções dos índios pueblos, feitas à base de pedra, adobe e outros materiais. Ansel Adams retratou-os de ângulos muito específicos, justamente para realçar a particularidade arquitetônica de um povo que ficou apenas na lembrança. Vale dar uma checada.

 

 

Fala! #1: Juan José Arreola

“‘Diverti-me como uma louca!’, disse Mona Lisa com sua voz de falsete, e diante dela, reverenciosos, os imbecis se extasiaram num coro de rãs boquiabertas. Seu riso dominava os salões do palácio como o jorro solitário duma fonte insensata. (Aquela noite em que as águas da amargura me penetraram até os ossos.) ‘Diverti-me como uma louca!’ Eu assistia à reunião como representante do espírito e a cada momento recebia parabéns, apertos de mão, oferecimentos de caviar e cigarros, previa a exibição das minhas credenciais. (Na verdade eu tinha ido somente para ver a Mona Lisa). ‘Que é que você está pintando agora?’ Os monstros de brocardo e pedraria pervagavam no aquário de fumaça, de mirto venenoso e gorjeios. Cego de raiva e fazendo com que minhas lanternas de fósforos brilhassem na sombra, pensei atrair Mona Lisa para as grandes profundidades. Mas ela só sabia morder anzóis superficiais (…)”

Cocktail Party, Juan José Arreola

 

Tommy, The Who

No próximo 13 de julho comemora-se o Dia Mundial do Rock, algo estabelecido há 32 anos. Ótimo. A relevância do rock é inequívoca, embora muita gente – incluindo eu – acredite que seja música adolescente feita para adolescentes. O rock não se estabelece na alma adulta – ou seja, não conheço adultos que, em sua maturidade, tenham ouvido o gênero pela primeira vez e tenham absorvido sua estética e seu propósito. Pode ser que algum de meus seis ou sete leitores conheça. O rock nos pega lá na adolescência, quando estamos mais suscetíveis à rebeldia, ao estardalhaço, à contestação. Embora não seja meu gênero de preferência, tenho apreço por alguns artistas e, evidentemente, por algumas bandas. Elvis Presley, Joe Cocker, Jimi Hendrix, Allman Brothers e The Who estão no panteão, no primeiríssimo time. Claro, claro: a subjetividade estabelecendo as normas desta postagem.

Para homenagear este dia tão importante, trago AQUI o documentário The Who: Sensation: the story of the who’s tommy. Sim, em minúsculas, mesmo sendo o álbum em questão uma das obras-primas do rock em qualquer época. Para quem é fã, é um documento e tanto. É a chance de compreender por que algumas canções do disco nasceram desta ou daquela forma. Tenho todas as versões possíveis de Tommy: a orquestrada, a trilha do filme, o álbum original de estúdio e a releitura da peça da Broadway. Pergunto-me quase sempre: será que existiu algum baterista mais técnico e mais nevrálgico do que Keith Moon? Algum baixista de rock rivaliza com John Entwistle? E quanto às inventividades textuais e musicais de Pete Townshend? Sinceramente? Não vejo nada que se assemelhe. Sim, repito: é apenas uma opinião.

Ouvi Tommy pela primeira vez em 1976, quando veio a público a trilha do filme – ao qual assisti, no finado Cine Paz, no mesmo ano. Eu tinha quatorze anos, e não entendi a profundidade messiânica da personagem, nem os delírios e exageros de Ken Russell, o diretor. Mas a música ficou naquele adolescente que dava os primeiros passos no rock, ouvindo Dark Side of The Moon e The Six wives of Henry VIII, de Rick Wakeman, discos emprestados de um querido primo três anos mais velho. Ah, sim, como esquecer a beleza fulminante de Ann-Magret, mãe da personagem central, o menino cego, surdo e mudo Tommy? Mas o que interessa aqui é o álbum. Tommy é uma ópera-rock: a primeira que existiu enquanto conceito e prática. A grandiosidade operística está lá, marcada pela eletrificação dos instrumentos e pela abordagem dramática.

A tendência de um documentário como esse é ser elogioso, condescendente. Não é o caso. Pormenores da vida pessoal de Townshend – principalmente a infância, tortuosa, vítima de abusos – são expostos de tal sorte que torna-se possível compreender por que alguns temas foram direcionados a John Entwistle, co-autor quando o chefão se sentia emocionalmente incapacitado. Há histórias saborosas, irônicas, tristes, sobre algumas das canções. É só checar – assim como não se pode perder a fala de Keith Moon a alguns segundos do fim. Justo ele, que só aparece falando no início e no fim do documentário. Assista ao filme: as palavras, aqui, são um tanto desnecessárias.

Kurt Vonnegut, o humanista

Leio que Unstuck in Time, documentário de Robert Weide sobre a vida e a obra de Kurt Vonnegut, está em fase de pós-produção. Vonnegut é um dos meus ídolos literários, uma de minhas obsessões no que se refere à criação, às palavras. Lembro-me de caçar seus livros como aves rarae em sebos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Isso logo após ter conseguido, como que por milagre, edições mal traduzidas – feitas pela antiga Artenova, quem se lembra? – compradas na antiga Livraria Capixaba, sita à Nestor Gomes. Foram bons tempos, em que se podia garimpar obras de autores pouco conhecidos sem ser bombardeado por best-sellers destinados ao público adolescente. Hoje a internet ajuda muito.

Minto se disser que li todos os seus livros. Faltam-me dois: Happy Birthday, Wanda June, comédia escrita em 1971, e Canary in a Cathouse, livro de contos escrito 10 anos antes. Os outros? Ao todo 31, lidos e relidos (ao menos alguns) com o mesmo prazer de uma primeira vez, com o mesmo pasmo e satisfação diante de um parágrafo ou página que eu levaria algumas encarnações para conseguir escrever. Sempre achei Vonnegut necessário, essencial, principalmente àqueles que apreciam o humanismo expresso em palavras, sem qualquer blefe aparente, sem a demagogia fácil, que pode brotar por diversas razões – todas elas escusas. Vonnegut foi um humanista dentro e fora das páginas: praticou o respeito pelo semelhante, embora o cineasta Robert Weide tenha revelado facetas cruéis de um escritor que, sendo humanista, ainda é humano. Era também ateu, membro de uma organização como a AHA, a Associação Humanista Americana, cujo lema é Bondade sem um deus. É sério.

Muitos de seus livros trazem a marca humanista, sejam eles marcados por um desbragado senso de humor, sejam eles estruturados a partir de uma ironia dolorosa diante da realidade. Uma ironia que não faz rir, ao menos não na frente dos outros. É provável que seu humanismo tenha se consolidado a partir de duas experiências: ter sido soldado durante a Segunda Guerra e ter adotado os três sobrinhos, filhos da irmã e cunhado falecidos no mesmo ano. O próprio Vonnegut afirmava que as experiências pessoais são a melhor matéria literária. Seus textos podem – e devem – ser lidos baseados na crença de que o ser humano, por pior que seja, ainda vale a pena.

Pode até ser que você, sexto ou sétimo leitor, não me pergunte, mas vou citar os livros de Vonnegut de que mais gosto. Vale para preencher a postagem, assim como vale para um possível curioso que leve a sério o que digo. Leia Almoço dos Campeões, Bem Vindo à Casa dos MacacosBode Vermelho, Cama de GatoGalápagos e, claro, Matadouro 5. São clássicos, embora eu considere clássica praticamente toda a obra desse senhor. Todos esses livros citados podem ser encontrados em traduções satisfatórias, mas se você lê na língua de Vonnegut a coisa fica melhor, tenha certeza. Aliás, não é só o documentário que abriu a postagem que revela o namoro entre Vonnegut e o cinema. Matadouro 5 e Almoço dos Campeões vieram às telas. Há muitos outros, os quais não vi. Gostaria de ter visto o filme baseado em seu romance Pastelão – ou Solitário Nunca Mais (tradução). Jerry Lewis trabalha nele.

Kurt Vonnegut morreu há dez anos, de complicações cerebrais por conta de uma queda. Estava com 84 anos. Alguns de seus livros, publicados postumamente, são a prova de que ele viverá para sempre – ao menos para quem aprecia literatura de verdade.

 

 

Art & os Mensageiros

Alguém já disse que escrever sobre música é como dançar sobre arquitetura. A frase é boa, mas limita a arte a um sentido específico – o que é, grosso modo, uma inequívoca injustiça. Nos primórdios do Ipsis, escrevi muito sobre jazz, meu gênero preferido, meu prazer obrigatório. Claro: aprecio a emepebê, o rock, o blues, o samba. Chego a reconhecer que a música clássica é o que de melhor há nessa arte, mas nada me toca tanto, musicalmente (e sem trocadilhos), como o jazz. Conversando certa vez com um amigo, disse-me ele que quem gosta de jazz é intelectual. Isso não é verdade. Intelectual apenas diz que gosta, e afirma isso entre goles de gim, marlboro entre os dedos, meio-sorriso treinado.

A ilustração à esquerda refere-se ao primeiro cedê de jazz que comprei, em 1992. Art Blakey é um dos gigantes da bateria – em qualquer gênero. Só não digo que é o melhor porque comparações, embora divertidas, têm origem em subjetividades questionáveis. Esse papo fica para depois. Art Blakey chefia os mensageiros do jazz, grupo que se propõe justamente ao epíteto que possui: levam o jazz aonde ele não está, e chegar para ficar. Neste disco, Freddie Hubbard (trompete), Wayne Shorter (sax tenor), Curtis Fuller (trombone), Cedar Walton (piano) e Reggie Workman (contrabaixo) levam ao extremo o que se chama virtuosismo. Talvez seja essa a melhor formação do grupo. E olhe que em outros tempos, Horace Silver, Hank Mobley, Johnny Griffin, Lee Morgan, Wynton Marsalis e Bobby Timmons (só para citar alguns, mais conhecidos) compuseram a trupe.

The 'Class Presidents' Of Art Blakey's Jazz Messengers : A Blog Supreme : NPR

Não sei se você, que lê, assistiu ao filme Whiplash, de Damien Chazelle. Se não, deveria ter visto. É um filme sobre jazz e sobre os limites de um jazzista em formação. Ok, é cheio de imprecisões, concordo, mas isso é secundário. No filme o tema Caravan, que dá nome ao disco em questão, é o mote para que um baterista compreenda que a execução musical sempre pode ser mais acurada, melhor. Aliás, a prova ficcional disso está no filme. Quer a prova real? É só ouvir o disco para perceber que não há limites para Art Blakey. Se puder ouvir essa gravação, tente manter o queixo no lugar a partir de 8:25, quando um solo de pouco mais de um minuto vem à tona, mas parece ter horas.

Caravan é um tema feito a quatro mãos: o trombonista portorriquenho Juan Tizol encontrou a genialidade do pianista Duke Ellington, possivelmente o maior compositor do jazz. Caravan é um clássico. No filme de Chazelle, o protagonista, um baterista de talento enormíssimo, tem como ídolo um outro gigante do instrumento: Buddy Rich. Sinceramente? Prefiro Art Blakey, que, além de ser um músico de primeira, é também um mensageiro. O Jazz, com maiúsculas mesmo, deve a ele.

De volta, mais uma vez

Pois é: o Ipsis Litteris está de volta, após alguns anos desativado, não por vontade de seu chefe e gestor, mas por conta e risco de um hacker que, sabe-se lá por quê, resolveu vilipendiar meu quintal. Não vou lamentar mais. De lá para cá o Ipsis Litteris não se modificou muito. Continua a veicular a opinião pessoal de seu dono – no caso, eu – sobre cinema, literatura, música, quadrinhos, fotografia, arte em geral. É muito assunto: uma vastidão que, se bem articulada, tornará este blogue um local cujo acesso será satisfatório para ambas as partes. É o que eu espero.

Nunca desconsiderei uma verdade: o maior patrimônio de um blogue é a qualidade dos comentários sobre ele (ou sobre a postagem). Sempre tive isso em alta conta. Sem trocadilhos, foram quase 12 mil comentários em 7 anos de vida útil – o que equivale a mais de 1.700 comentários/ano. Isso é muito em se tratando de um blogue que não versa sobre maquiagem, alimentação low carb, ginástica localizada, vídeos adolescentes ou hip hop. Gosto dos comentários. Aprendo com eles, principalmente quando, honestos, propõem-se a colaborar para que a informação não descambe para a banalidade, para as inequívocas bobagens. Nestes quatro anos em que estive distante do Ipsis, publiquei dois livros, que se tornam brindes aqui, nO Pensador Selvagem. São eles Todas Elas, Agora (volume de contos) e Os Mamíferos – crônica biográfica de uma banda insular (biografia). Ei-los em capa:

  

Em breve estarão nas mãos (e nos olhos) dos leitores. Escrever continua a ser um ato de amor – e de sobrevivência. Mas é preciso divertir, evidentemente. Um dos motivos que levam o Ipsis Litteris a essa ressurreição é a poderosa aliança entre amor, entretenimento e sobrevivência. Não, não me perguntem como consigo aliar tais substantivos, como os torno íntimos, quase xifópagos. Não sei explicar, mas talvez a literatura, per si, saiba. Perguntemos a ela. Espero que ao menos aqueles que conheceram os bons tempos do Ipsis Litteris estejam felizes com sua volta. Eu estou – e espero continuar.

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