Manara, Enard, palmadas

É antiga a discussão acerca do fato de quadrinhos serem ou não arte. Isso pouco importa; para mim faz pouca diferença. Leitor de Superman desde fins dos 1960, acompanho com interesse – que se renova a cada navegada na internet – o que aparece de novo e o que, mesmo mais antigo, permanece atual: Moebius, Alan Moore, Enki Bilal, Frank Miller, Milo Manara, a rapaziada o El Víbora e da Heavy Metal, Guido Crepax, Boris Valejo, Serpieri, Alex Raymond, Will Eisner et alli. Nesses tempos de poucos intervalos ociosos, reli A Arte da Palmada, criação conjunta de Milo Manara (traço) e Jean Pierre Enard (texto).

Manara já se consagrou: Gullivera e O Click são de fazer qualquer um boquiabrir-se. Suas mulheres, e principalmente a anatomia delas, são colírio até para os cegos. Comprei O Click na saudosa Don Quixote; Gullivera eu li nas páginas da Heavy Metal brasileira – infelizmente não mais reeditada. Mas, como interessado em palavras, atenho-me ao texto de Enard, escritor francês que morreu em 1987, aos 44 anos. É autor de um belo romance, Fragmentos do Amor, e de um livro de título no mínimo curioso: Um bom escritor é um escritor morto, que não li, mas quero ler.

Em A Arte da Palmada, que é literatura pornográfica de alta voltagem, uma mulher de nome Eva Lindt, cronista especializada em escândalos de celebridades, encontra um estranho homem – Donato Casanova – num vagão de trem. Esse homem traz consigo um caderninho verde, no qual conta suas aventuras sexuais regadas, principalmente, à arte de dar e levar palmadas. É um elogio ao corpo feminino, mesmo que pareça exatamente o contrário: afinal, em mulheres não se bate. A tal Eva é surpreendida por uma nova visão do sexo, o que a deixa estranhamente interessada no texto e no seu autor. Jean Pierre Enard sabe manejar as palavras. O texto (na tradução) é enxuto, por vezes metafórico, altamente irônico, vigorosamente debochado. Sei que em tempos politicamente corretos, é um risco elogiar um texto no qual se fala sobre violência contra a mulher – mesmo que tal violência seja permitida e estimulada pela vítima. Eis o autor:

As ilustrações de Milo Manara, entretanto, são o que existe de mais eroticamente saboroso nos quadrinhos – mais até que a heroína futurista Druuna de Paolo Serpieri, de quem falarei numa outra oportunidade. A propósito: de Manara já falei, aqui no blog. Sobre ele e outra mulher (avessa a qualquer tipo de violência): Brigitte Bardot. É só checar, voltar algumas semanas.

Quem é Miles Davis?

Assisti a Miles Ahead, o filme que Don Cheadle fez sobre Miles Davis. Descarte a possibilidade de ser uma película biográfica. Não é, definitivamente, embora se utilize de elementos da vida do trompetista. Soaria estranho não utilizar. A narrativa não é linear (como muitos solos de jazz), misturando alucinações, lembranças, possibilidades, registros reais. Miles merece um filme assim – pouco convencional, carregado de controvérsia, fúria, tensão. Miles Ahead é, principal e originalmente, o disco que o músico fez com Gil Evans em 1957, pleno de sopros (5 trompetes, 4 trombones, 3 french horn, 3 clarinetes, 1 sax alto, 1 tuba) + piano, contrabaixo, bateria, sem contar a condução e arranjos de Gil Evans. Miles vai de flugelhorn. Um discaço, uma revolução, um passo adiante. AQUI está, por inteiro, 60 anos depois.

A vida de Miles Davis – fatos, composições, feitos e controvérsias – está muito bem delineada em So What – The Life of Miles Davis, de John Szwed, professor e antropólogo de Yale. Quando o livro saiu, li-o avidamente, principalmente porque era apontado como um livro esclarecedor sobre a vida do músico: seu envolvimento político, os entreveros conjugais, as relações com os músicos, a pauleira contra produtores, o envolvimento com as drogas, a ligação com o boxe, o confronto com o racismo e muito mais. Muita coisa que havia sido dita sobre Miles, segundo o autor, era, naturalmente, envolta em dúvidas. Era necessário buscar o preenchimento de algumas lacunas e isso se traduzia num trabalho minucioso que ele propôs fazer – e fez.

O autor mesmo se convence de que a música de Miles associa-se diretamente ao que ele vivia; não se podiam separar os acontecimentos de sua vida e o que era produzido (e retratado) em harmonia e melodia. Afirma que as diferentes fases musicais de Miles são reflexo da forma como o artista levava a vida, uma constante revolução prática comportamental, que tinha como objetivo compreender a si mesmo como indivíduo e como músico. Faz comentários – nada breves – sobre a vida pessoal de Miles e não cita, num só momento, espancamentos ou qualquer outra forma de violência contra as mulheres, nem contra a musa do Existencialismo, Juliette Grecco, a não ser uma cusparada que Miles dirigiu a ela (e Miles confirma isso, numa entrevista) numa tarde parisiense. Era misógino, sem dúvidas, mas não há – segundo o autor, repito – comprovações sobre tal comportamento violento.

Ele mesmo questiona a veracidade de algumas afirmações sobre o trompetista. O livro também é muitíssimo interessante por trazer uma visão (às vezes desfavorável) alheia sobre o grande músico: James Baldwin, Norman Mailer, Jack Kerouac e alguns outros que escreveram sobre Miles. Numa das passagens do livro, John Szwed faz uma afirmação interessantíssima: “E daí? Miles Davis foi o som de seu trompete!” Se houver interesse: o livro saiu em 2003, pela Simon & Schuster, e tem quinhentas páginas. A Siciliano, soube eu, ia traduzir, mas recuou. É melhor esperar e rezar para que tomem coragem e traduzam. Em tempo: em 1991, a editora Campus lançou Miles Davis – a autobiografia. Até onde sei, está esgotadíssimo. Veja como estão cobrando caro por isso.

Tabaco, Literatura, Cabrera Infante

Nesses tempos antitabaco, apreciar o fumo equivale a privar com o Satã, porque fumantes, hoje, são vistos como energúmenos que precisam da urgente ajuda exorcista, dessas de algumas igrejas pentecostais, que povoam as madrugadas na tevê. O consumo de cigarros virou a grande praga do século, equivalente à Peste Negra, que matou os europeus há 600 anos. O consumidor de charutos, em contrapartida, parece obter certa indulgência social.

O motivo é, naturalmente, econômico – charutos bons custam caro –, mas deve-se observar também o fato de que se leva muito tempo para consumir uma unidade. Charutos comburem menos que cigarros, qualquer um sabe disso e, para o fumante ansioso, um charuto é algo contraproducente. Sem contar que sua fumaça não foi feita para ser tragada, e isso gera rebeldia pulmonar. Mas iniciei esse papo sobre tabaco porque li na Folha de S. Paulo, há alguns dias, uma pequena matéria sobre um escritor a quem admiro, assim como admiro o que ele escreveu: o romancista e cronista cubano Guillermo Cabrera Infante.

É bom que se saiba que Cuba não tem apenas açúcar, tabaco e boxeadores. Tem também boa literatura. Cabrera Infante era um apaixonado por cinema, sendo ele o responsável pela organização da Cinemateca de Cuba, em 1951, oito anos antes da revolução que levou Castro ao poder. Algum tempo depois, rompeu com o governo e exilou-se na Europa, onde ficou até morrer, em 2005. Mas o que Cabrera Infante tem a ver com tabaco? Simples: além de ser um grande apreciador de charutos, escreveu Fumaça Pura (Holy Smoke, originalmente), um livro tão saboroso quanto os cohibas que consumia diariamente.

É uma obra de 1985, mas só chegou por aqui vinte anos depois. Li-o aos poucos, na época. Para quem já leu Três Tristes Tigres ou Havana para um Infante Defunto, vai se surpreender porque a marca registrada do autor – os jogos linguísticos, os trocadilhos – aparece menos. Ele dá mais importância à opinião, além de fazer uma espécie de compêndio do fumo e dos fumantes através dos tempos, além de, claro, não se distanciar do cinema – que foi, em última análise, um grande difusor do fumacê. Ao final da edição, há um “índice de filmes citados” – o que dá uma amostra do que Cabrera Infante viu nas salas escuras. Um livro notável para quem gosta de ler e para quem gosta de fumar. Na capa da edição brasileira, o ator e comediante Groucho Marx olha para cima – possivelmente para as elipses feitas pela fumaça que se esvai.

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Phono 73: o que (ainda) há de melhor

Não sei se existe um festival, em terras brasileiras, que tenha sido mais representativo que o famoso Phono 73, realizado no Palácio de Convenções do Anhembi, em SP, nos dias 11, 12 e 13 de maio do referido ano. Quando digo mais representativo, claro que aludo ao fato de que, historicamente, essa reunião de grandes artistas influenciou gerações subsequentes, formou opiniões e apontou caminhos. A atual gravadora Universal chamava-se Phonogram, a multinacional holandesa que reunia grandes nomes da MPB, à época. Alguns eram mais conhecidos: Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Toquinho, Ronnie Von, Jair Rodrigues, Elis Regina, Vinicius de Moraes, Raul Seixas, Erasmo Carlos, Jorge Ben, Maria Bethânia, Wanderléa, Hermeto Paschoal e Wilson Simonal. Outros fariam história: Sérgio Sampaio, Luiz Melodia, Jorge Mautner e Odair José. Havia mais.

Imagem relacionadaNão se pode negar – nem se queria, acredito – que a tonalidade política do festival era clara. Em tempos de horror militar (no pós-apogeu do sangrento governo Médici), um aglomerado como esse não poderia ter outra denominação que não fosse reunião de comunistas. O diretor de marketing da empresa, Armando Pittigliani, sabia que tinha ouro nas mãos, mas reconhecia, naturalmente, o perigo explícito nesse tipo de evento. Uma de suas boas sacadas foi reunir todo o grupo numa grande fotografia em cujo pé se inscrevia: Só nos falta Roberto. É bom lembrar que Roberto Carlos recusou-se a participar – tinha seus motivos, e um deles era a aversão a contestações. O que, aliás, era o grande mote do festival. Uma contestação que ia da política à estética, passando pelo comportamento e pela linguagem.

Uma pena que o devedê dure tão pouco: mirrados 35 minutos, uma sobra do que foi o festival, mas, ainda assim, é o registro de imagens únicas, como as de Chico e Gil tentando entoar a emblemática canção Cálice, que só pôde ser gravada cinco anos depois, no famoso disco da samambaia, de Chico. Com os microfones cortados por ordens militares, Chico e Gil criam frases desconexas ao som da melodia. Outra imagem impressionante ficou por conta de Caetano Veloso: ao som de Asa Branca, ele dança como se estivesse possuído; depois se arremessa ao chão, grunhe e canta e geme.

Sérgio Sampaio, ao som de Eu quero é botar meu bloco na rua, simula um coito sexual com um parceiro imaginário. É um registro do que era a época: o desbunde que se misturava à atitude política. Gal canta Comadre Sebastiana; Toquinho, Vinícius e o copo entoam Meu pai Oxalá. Elis Regina foi vaiada – embora não se ouçam as vaias – por conta de ter, anteriormente, se apresentado nas Olimpíadas do Exército. Apesar disso, cantou Cabaré, de João Bosco e Aldir Blanc, e terminou ovacionada e perdoada por um público que reconhecia nela a maior cantora. O áudio digitalizado desse festival teve lançamento anterior: em 1997. As imagens, entretanto, não estavam disponíveis até 2005, quando foi lançada a caixa com os cedês e com o devedê. O título completo da obra é Phono 73 – O canto de um povo. Não sei se o povo teve algo a ver com aquilo, mas deveria ter tido.

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AQUI você assiste ao que existe de registro desse grande encontro.

AQUI e AQUI você ouve o disco duplo.

Quando o Vento Sopra

Um dos frequentadores do Ipsis Litteris disse que o blogue precisava de mais animação. Posso concordar com isso. Então, lá vai: no início dos anos 1990, quando eu dirigia – em companhia de meu amigo Talmon Jr. – um sebo fincado no coração da Ufes, num anexo da primeira versão do Cine Metrópolis, chegou-me às mãos uma fita VHS cujo título era When the Wind Blows, de um tal Jimmy Murakami, de quem eu nunca tinha ouvido falar. A cópia era ruim e sem legendas, mas a história, atualíssima, é de impressionar, principalmente porque os desenhos, de aparente ingenuidade, carregam uma força dramática intensa, mesmo que representem o modo de vida tranquilo de um casal inglês da área rural, cujo filho, já crescido, não vive com ele.

É um desenho pacifista – contrário a qualquer manifestação armamentista nuclear, além de ser uma história de amor, mais especificamente quando os efeitos da radioatividade começam a ser percebidos nos corpos dos personagens centrais. A forma como o casal lida com o horror atômico é simplista: pensam que as guerras são inevitáveis – daí, é melhor ficar em casa e assistir a elas. Eis a questão: expostos à radiação, experimentam o próprio declínio anatômico. Vão morrendo aos poucos, um diante do outro, e nada podem fazer – e isso inclui em não se desesperarem. É um filme pra lá de inquietante, perturbador.

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Há um momento do filme em que, diante da terra devastada, a personagem feminina central, Hilda, preocupa-se com as possíveis visitas que poderiam chegar e encontrar a bagunça que a casa se tornou. A ingenuidade das personagens é o trunfo maior da história. É ela que, personificada, torna-se o antídoto para o horror e para a desgraça. A esperança de que o governo – no filme, como uma entidade quase sacrossanta – chegue a tempo de socorrê-los (como se isso fosse possível) é algo que não chega a ser patético (como querem alguns). É de uma tristeza dolorosa, amargurada, sem saída. O roteirista, Raymond Briggs – ele também autor do livro em que a animação se baseia -, acerta em cheio. O que pode ser feito contra o poder?

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When The Wind Blows é uma produção inglesa de 1986. A trilha sonora traz Roger Waters, do Pink Floyd, e David Bowie – ambos promovendo a discussão sobre que futuro nos espera. Não deixe de assistir, se puder. AQUI o filme completo.

Tropicalismo, 50: dois livros

Cinquenta anos de Tropicalismo. Não é para qualquer um – ainda mais se considerando que ele morre e renasce na mesma rapidez, mesmo sem nunca ter entrado em decomposição. O que isso quer dizer? Simples: por mais que digam que o movimento morreu, em essência ele se manteve vivo e pulsante. Sim, muita gente recusa essa ideia – e isso inclui, em alguns momentos de proposital desatino, o próprio Caetano Veloso, um dos pais do movimento. Dois livros, dentre muitos sobre o assunto, merecem um destaque mais que especial. Um deles, divertidíssimo e ao mesmo tempo esclarecedor, é Marginália – Arte e Cultura na Idade da Pedrada, de Marisa Alvarez Lima, jornalista que privou com os tropicalistas e escreveu artigos para revistas como O Cruzeiro e A Cigarra.

O que há de sensacional e saboroso no livro não é a representatividade teórica do movimento, mas a visão dos envolvidos no processo. O ideal de ingenuidade, aliado a uma poderosa criatividade antropofágica, faz do livro um documento único. Artigos sobre Ligia Pappe, Helio Oiticica, Maria Bethânia, Jorge Guinle Filho, Antonio Dias, cenas (orais e fotográficas) do casamento de Caetano Veloso e Dedé Gadelha, entrevistas com Gilberto Gil, Jean-Pierre Léaud, opiniões sobre os parangolés de Oiticica e muito mais. Muito mais mesmo. Quase 180 páginas de frescor, um certo saudosismo, e uma grande oportunidade de a meninada de agora, que pensa que os rappers são os bam-bam-bans, entender o que realmente é transgressão. Um livro essencial. Um tanto incômodo de manusear por conta de suas dimensões, mas isso é detalhe.

O outro, mais analítico, mais acadêmico e tão fundamental quanto o de Marisa Alvarez, é TropicáliaUma revolução na cultura brasileira, cujo organizador é Carlos Basualdo, curador da exposição homônima e internacionalmente itinerante montada pelo Museu de Artes Contemporâneas de Chicago. O livro não se resume à música ou a textos. As artes plásticas, o cinema, o teatro, o design gráfico, a arquitetura e a moda são temas explorados porque, num certo sentido, foram influenciados pela estética tropicalista que, por si, já é uma releitura do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, em 1928. Assim como tal manifesto, o Tropicalismo encara criticamente a realidade cultural brasileira.

É um livro abrangente: textos da professora Flora Süssekind, da ensaísta (e também professora) Ivana Bentes, do pesquisador Celso Favaretto, do antropólogo e pesquisador musical Hermano Vianna, muitas fotografias, muito registro de época, boas discussões acerca da influência do movimento no que se pode chamar de cultura brasileira. Um trabalho de fôlego, com opiniões de gente indiretamente envolvida no Tropicalismo, como Augusto de Campos, Augusto Boal e Glauber Rocha. Se quiser saber sobre o que se fez, dentro e fora do movimento, é bom ler esse livro. É o máximo em informação, embora se dê pouca atenção à história cronológica do que se fez, à época. Para isso, recomendo um livro de 20 anos, completos agora: Tropicália – A História de uma Revolução Musical, de Carlos Callado. Vale a pena também.

Continuo ouvindo os tropicalistas. Mantenho, em vinil, todos os discos que adquiri no início dos anos 1980, quando o movimento tinha deixado de sê-lo fazia uma década. Continuo consumindo o rock dos Mutantes, continuo firme e reverente a Caetano, Gil e Gal. Sempre que posso revisito os arranjos sobrenaturais de Rogério Duprat e leio os textos jornalísticos e poéticos de Torquato Neto. De Tom Zé sempre desconfiei, mas isso é outro papo. Eis os principais responsáveis por esse senhor de 50 anos, tão vivo quanto uma criança, pronta para viver muito mais tempo:

O Melhor do Jazz #3: vocais

Esta senhora é a peça chave da Santíssima Trindade do jazz vocal. É a maior cantora do gênero, na opinião deste que escreve. E este é seu melhor disco – dos 58 que possuo. São 38 faixas de vários compositores – priorizando, evidentemente, canções que Ellington compôs ou, com sua orquestra, executou. Destaque para Caravan, Take The A Train, Perdido e Sophisticated Lady. Mas há muito mais. O alcance sonoro + a dicção imaculada + o suingue inimitável + a noção de tempo + a afinação perfeita são ingredientes que Ella Fitzgerald parece ter trazido do berço. É um disco para ser ouvido e reouvido, sempre. AQUI você ouve Perdido.

Resultado de imagem para johnny hartman john coltraneNinguém canta Lush Life melhor do que Johnny Hartman. Nem Sarah Vaughan. Nem Ella Fitzgerald, Sinatra ou Sammy Davis. Ninguém. Nessa composição de Billy Strayhorn, Johnny é o campeão. Emoção em primeira linha, levando em seu bojo um talento inequívoco para apressar a melodia (evitando vibratos desnecessários) e ajustá-la ao saxofone sempre espetacular de John Coltrane. Aliás, é o único disco de Coltrane em que há vocais. Não conheço outro. O disco traz 6 faixas que, num certo sentido, comunicam-se – seja pela melodia, seja pelo tema. Atenção especial à citada Lush Life, a Autumm Serenade. E a My One and Only Love, que você ouve AQUI. Espetacular.

Take Five with Carmen McRae - Album cover Carmen McRae não é tão badalada quanto Ella, Sarah Vaughan e Billie Holiday – mas não deve nada a nenhuma das três. É uma cantora extraordinária, de timbre preciso e afinação segura. E faz com a voz o que quiser – inclusive acompanhar Dave Brubeck no Basin Street East, de Nova Iorque, sem a presença do saxofonista Paul Desmond. Ou seja: é um disco em que piano e voz dialogam, enquanto o baixo de Eugene Wright e a bateria de Joe Morello fazem a cozinha. Uma beleza. Faixas como In Your Own Sweet Way, Ode to a Cowboy, It’s a Raggy Waltz  e Travellin’ Blues são daquelas que ficam para sempre. Ouça Oh So Blue AQUI.

Sarah Vaughan é a mais completa cantora de jazz. Clifford Brown, para muitos, é o melhor trompetista do gênero – ultrapassando Miles, Armstrong e Gillespie. Agora junte os dois, e você ouvirá um dos melhores – senão o melhor! – discos dessa sensacional cantora. E um timaço para acompanhá-la. Além de Brown, Paul Quinichette (sax tenor), Roy Haynes (bateria) e Herbie Mann (flauta). E alguns outros, menos citados, mas que não comprometem o resultado – magnífico, aliás. Ouvir Sarah Vaughan cantando Lullaby of Birdland, Embraceable You e April in Paris é uma experiência sensorial única. Ainda mais sob a tutela sonora de Clifford Brown. Ouça, AQUI, o disco completo.

https://st.jetsetrecords.net/product/thumbnail/d/a/4/da426cd0975f3209530a5049b86f16ff/raw.jpgCerta vez me perguntaram quem era o maior de todos os cantores. Sinatra, falei. Eram os anos 1980 e trinta e tantos anos depois, mantenho a fleuma: Frank Sinatra, meu xará, é o maior cantor popular do século que passou. E Count Basie? Foi o dono e senhor de uma das melhores orquestras de jazz que existiram. Só isso. Quer mais? Tem gravações com Sarah Vaughan, Sammy Davis, Bing Crosby e Tony Bennett. Mas esse disco Sinatra-Basie é o que há de melhor, para mim. Destaque para Pennies from Heaven, que você ouve AQUI, e Learning the Blues, AQUI.

Mulheres #2: Romy Schneider, 79

Meu querido amigo Sebastião Lyrio, que não é leitor deste blogue – de nenhum blogue, até onde sei -, publicou, em 1982, um volume de contos intitulado Tigres de Papel, obra financiada pela FCAA, ligada à UFES. É um bom livro, carregado de música, cinema, ironia, literatura. Um dos contos, autobiográfico, tem o título O Dia em que Romy Schneider Morreu. É um texto em que personagens masculinos sentem-se derrotados com a morte da musa. Algo previsível? Pode ser, mas a maneira como o narrador expõe a dor (traduzida em bebedeira) é tão nostálgica quanto divertida.

Romy Schneider merece louvores literários – ou histórias em que sua beleza seja reverenciada. É a Áustria em seu esplendor sem música. Neste dia 23, setembro corrente, completaria 79 anos. Não estaria bela e refulgente quanto as fotos abaixo, mas provavelmente manteria acesa a imagem que tivemos dela. O uso do verbo no plural é justo: também tomei algumas cervejas, triste, no que hoje é chamada de Rua da Lama, próximo à universidade federal. Eu, Sebastião Lyrio, e tantos outros que, cada um a seu modo, resolveram homenageá-la. Trinta e cinco anos depois, volto à ativa.

Esqueçam Freud, Mozart, Mendel, Schubert, Wittgenstein, Haydn. O maior patrimônio pessoal da Áustria é Romy Schneider. Claro que estou exagerando, mas não vejo por que ignorá-la como ilustre, parelha com esses senhores citados. Foi uma atriz versátil – de Sissi, a imperatriz adolescente a Manuela, a jovem lésbica de Senhoritas em Uniforme. Sua beleza chegava antes de qualquer protesto que pudesse desqualificar suas performances. Suavizava os rancores, amenizava as posturas raivosas. E Romy ia além da beleza: era uma senhora atriz! Duvida que esta belezura embaixo seja capaz de atuar bem? Então assista a A Piscina, de Jacques Deray, e Morte ao Vivo, de Bertrand Tavernier, um de seus últimos papeis.

A maturidade trágica de Romy Schneider – morte do filho, depressão, suicídio do ex-marido – não impediu que ela continuasse a fazer filmes, mas sensibilizou-a sobremaneira, dificultando seu relacionamento com colegas, diretores e produtores. Morreu aos 43 anos, no apogeu de sua beleza e de sua sensualidade. Nada mais justo que seja a primeira da série Mulheres, que o Ipsis Litteris apresentará com orgulho. É só esperar. E enquanto espera, aprecie as fotos.

A fascinating exhibition on Romy schneider in Paris - French Glimpses

 

Le mystère Romy Schneider : l'actrice et la femme en 5 moments - Actus Ciné  - AlloCiné

 

O Jazz agoniza em La La Land?

Assisti – finalmente! – ao filme La La Land, na tevê, canal fechado. É dos bons. Boa música, boas interpretações, boa história – e três declarações de amor: ao jazz, ao cinema e a Los Angeles. Não é difícil apreciar a película, mesmo para aqueles que abominam musicais e os consideram nostalgia geriátrica. Um desfecho razoavelmente imprevisível: o amor se concretiza, mas muito mais no plano da lembrança e do que poderia ter sido do que na realidade palpável. É bem armado. Cinema é a tal matéria: o olhar dos protagonistas ao fim da história, tudo o que foi sem ter verdadeiramente acontecido.

Mas não é exatamente sobre a trama ou interpretações que quero falar. O que me chamou a atenção no filme, além dos elementos óbvios, foi um diálogo entre o personagem masculino central, um pianista de jazz (fã de Monk e de Bud Powell), e o líder de uma banda que considera o jazz tão moribundo quanto uma modinha medieval. Eu sou fã de jazz, todos sabem. Todos os que me conhecem, claro. Consumo-o há mais de trinta anos e a grande maioria dos meus discos permeia esse gênero, sejam os grandes instrumentistas, os grandes intérpretes, as formações mais significativas, as composições mais emblemáticas. O diálogo entre os personagens trouxe à superfície uma discussão que há muito se faz: o jazz está morto ou apenas agoniza?

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Vamos aos fatos. A música como um todo é um diálogo. Precisa de um emissor e de um receptor – ela, a música, é o código. Sozinha, sem alguém para emiti-la ou recebê-la, é tão estéril quanto desnecessária. Há quem produza jazz, hoje – mas quem ouve, de fato? Difícil dizer, mas creio que a grande falha está em apresentar o jazz como algo que ele não é: elitizado, para poucos, para iniciados, blablablá. O jazz é música popular, e como tal deve ser encarada. A questão gira em torno de um ponto fundamental: não é música para se dançar e, por conseguinte, seu consumo se destina a uma fatia mais madura do público ouvinte. Exatamente isto: ouvinte.

Quem, entre 15 e 20 anos, dedica-se a consumir música apreciando o desempenho de um artista em seu instrumento? As generalizações são, grosso modo, estúpidas, mas ouso dizer que praticamente ninguém nessa faixa etária dispõe-se a frequentar ambientes onde a música executada não permita gritinhos, pulos, balanços. O jazz é uma vítima dessa cultura. Para sobreviver, precisa tornar-se acid jazz e, a partir de então, gozar do prestígio com a meninada. É disso que fala a personagem Keith, interpretada pelo músico John Legend, ele mesmo um cantor pop. O jazz, segundo ele, está morto. Precisa ressurgir de outra forma, precisa vestir uma nova roupa. Eu ainda penso o contrário.

 

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