Em janeiro de 1956, Francis Wolff, executivo da mitológica gravadora Blue Note, conheceu Reid Miles, um artista comercial fã de música clássica. A empatia foi imediata e, após uns drinques e uma proposta financeira bastante razoável, Reid se tornou o designer das capas da gravadora – algo que durou 11 longos anos. Alfred Lion, fundador da Blue Note, e Francis Wolff , fotógrafo, diziam o que queriam numa capa e deixavam que Miles desse vida visual ao que imaginavam (incluindo aí as fotografias do próprio Wolff). O resultado foi um sem-número de magníficas capas que se tornaram, além da excelente música que ilustravam, um caso à parte. Se você tem uns dólares para gastar, pode comprar The Cover Art of Blue Note, uma coleção, em dois volumes, do que Reid Miles produziu. São quase 400 capas. Se você não tem esses dólares, aproveite esta postagem e estes exemplos abaixo:
Reid Miles tinha pedigree: passou pelo Chouinard Art Institute de Los Angeles., onde desenvolveu técnicas de design tão inovadoras quanto ricas em significado. No começo dos anos 1950, foi contratado pela revista Esquire, e a partir de então Francis Wolff resolveu contratá-lo pára desenvolver as capas dos lps de 12 polegadas. Deu no que deu: as capas da Blue Note são o que de melhor existe na cover art jazzística. Eu arriscaria dizer que são as melhores capas de qualquer gênero, mas há quem discorde disso.
Eis aí um problema que o cedê não resolve. Pode até purificar a música, mas não consegue fazer justiça às capas. As dimensões reduzidas impedem que se vislumbre a genialidade de Reid Miles em sua amplitude. Nem tudo, todavia, está perdido: nos últimos anos, muito desse material foi reeditado em vinil – em seu formato clássico e original, o que permite à garotada interessada em jazz aproveitar toda a beleza da arte produzida por Reid Miles e por seus seguidores. Sim, eles existem. Mas isso é papo para depois.
Críticos de cinema não gostam muito de comédias, embora reconheçam que Quanto mais Quente Melhor, de Billy Wilder, seja um dos grandes filmes já feitos. Como não sou crítico, eu gosto – e muito. E mais ainda dos filmes de John Landis, quando este se propõe fazer rir sem sequer passar perto dos recursos do slapstick, ou pastelão. John Landis fez, só para início de conversa, Os Irmãos Cara-de-Pau (The Blues Brothers, 1980) e Clube dos Cafajestes (National Lampoon’s Animal House, 1978). Poderia se aposentar com a certeza de dever cumprido. Ambos são protagonizados por John Belushi, o ator iconoclasta e anárquico que aporrinhava todo diretor com quem trabalhava. Com Landis, John Belushi comportou-se porque tinha um rival: o próprio Landis.
Escolho um para rever e comentar: Clube dos Cafajestes parece ser uma comédia para adolescentes – e é. Mas não para adolescentes que ouvem Jota Quest e passam horas e horas nas academias e de joelhos rezando para Youtubers sem graça e sem cérebro. Se você é um deles, esqueça. Tem de ouvir o Velvet Underground e gostar de dormir até tarde.
O filme é sacana, despudorado, politicamente incorreto, debochado e esmaga sob o chinelo a própria adolescência que se preocupa em ser exemplo para a família. Daí se perceber que no filme ninguém presta – nem os estudantes certinhos que, em sua maioria, são rancorosos e egoístas. Belushi fala pouco – suas gags são físicas, seja no corpo, seja no rosto de sobrancelhas móveis como lagartixas. Donald Sutherland – um professor de literatura chatíssimo que fuma baseados diários – está impagável. A Festa da Toga – no fim da postagem, como aperitivo –, em que ninguém é de ninguém, é um dos grandes pontos altos de um filme feito para as alturas. Mas o bacana na película é o clima de guerra entre as fraternidades – o que já é uma contradição em termos. De um lado, os ajustados Ômegas; de outro, aqueles para quem eu torço: os Deltas. É o fraque contra o farrapo, e, no final, o farrapo sai ganhando – e, para sedimentar a vitória, destrói o desfile oficial da cidade.
Clube dos Cafajestes não pode passar na Sessão da Tarde. Há cenas consideradas desaconselháveis para menores – por isso ele é reprisado, de vez em quando, nesses corujões da Globo, durante as madrugadas insones. Não está na Netflix. Se estiver, não consegui achar. Se você dorme até tarde, é porque fica acordado durante toda a noite. Ou faça como eu: tenha o filme em casa, em blu-ray, recém comprado – é muito melhor. A propósito: se você não sabe quem é John Belushi, apresento-lhe:
AQUI, um aperitivo.
“Assim que eu contar a elas que estamos chegando vão começar a conversar, a pintar-se, lembram do seu ofício, estão ficando mais feias e velhas, fazem cara de mocinha, baixam os olhos para examinar as mãos. São três e não demorei quinze dias. Barthé tem mais do que merece, ele e toda a cidade, embora talvez riam ao vê-las e continuem rindo durante dias ou semanas. Já não têm quinze anos e estão vestidas de jeito a esfriar o ânimo de um fauno. Mas são gente, são boas, são alegres e sabem trabalhar.“
Junta-Cadáveres
O melhor quarteto de jazz é, na verdade, um quinteto. É opinião pessoal e a mantenho há quantos anos? Uns 30. O quinteto de Miles Davis (com John Coltrane, Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones). Alguns dos discos são obras primas, daquelas obrigatórias em qualquer lista. A classificação, entretanto, nesta postagem, relaciona-se a quartetos, não necessariamente à formação sax, piano, bateria, contrabaixo. Pode haver variações.
A Love Supreme é das melhores coisas que o jazz produziu. É o máximo de John Coltrane, tanto espiritual e comercial quanto artístico. É seu ponto culminante, um olhar para si mesmo tendo Deus como guia. Não, não é obra gospel. É uma jornada musical de 33 minutos com a melhor formação possível em quarteto: McCoy Tyner, piano; Jimmy Garrison, contrabaixo; Elvin Jones, bateria. Todos eles magistrais, literalmente mestres em seus instrumentos. Um disco notável, dividido em quatro partes que, juntas, formam um totem musical: Acknowledgement, Resolution, Pursuance e Psalm. AQUI, o disco completo.
Tenor Madness é o único disco em que Sonny Rollins e John Coltrane se encontram – e mesmo assim em apenas uma faixa – a que dá título ao disco. Consta que Rollins havia contratado a sessão rítmica de Coltrane para o disco (Garland, Chambers e Joe Jones) e, já no estúdio, soube que o amigo havia ficado no carro, dormindo. Mandou chamá-lo e, sem que houvessem ensaiado, gravaram a faixa-título. Verdade ou não, é o que se conta – e tenho certeza de que é uma situação plenamente possível. O disco é um espetáculo, em especial Tenor Madness, com 12 minutos, e Paul’s Pal, uma homenagem de Rollins a Chambers. AQUI o disco inteirinho. E o mais interessante: você pode ouvir o mais bem acabado casamento entre harmonia (Coltrane) e melodia (Rollins).
Quando listei os meus preferidos discos ao vivo, sofri por deixar European Concert, do Modern Jazz Quartet, de fora. É um disco sublime, em que John Lewis, o pianista mais elegante do jazz e líder do grupo, está inspiradíssimo. O contrabaixo (Percy Heath), o vibrafone (Milt Jackson) e a bateria (Connie Kay) não ficam atrás. É, dos que conheço, o melhor disco desse escrete. Os diálogos entre vibrafone e piano – os contrapontos harmônicos de Lewis são sensacionais! – são coisas para serem ouvidas no Céu, quando minha hora chegar. Destaque para Django (clássico do grupo), ‘Round Midnight, I Remember Clifford e I’ll Remember April. Uma beleza. Aliás, 15. AQUI você comprova o que digo.
Dave Brubeck é um patrimônio do jazz. E seu quarteto também, mesmo que tenha havido variações em seus personagens. A formação básica, fundamental, traz Paul Desmond, no sax alto; Joe Morello, na bateria, e Gene Wright, no contrabaixo. Todos geniais. Agora ponha esses senhores para tocar a música do maior de todos os compositores norte-americanos, Cole Porter. Tudo bem: são apenas oito faixas, o que é um pecado deixar de lado ao menos 20 composições importantes desse gênio da música. Por outro lado, estão presentes Love For Sale, Night and Day, What is This Thing Called Love, I Get a Kick Out of You e Just One of Those Things. Não, não é pouco. Dave Brubeck é um dos principais pianistas do jazz. Paul Desmond é o mais cool dos saxofonistas. Para muita gente, Joe Morello é um deus. E Gene Wright é uma fera domada apenas pelo piano do mestre. AQUI, esse discaço.
Chico Hamilton e Carson Smith são duas figuras conhecidas no mundo do jazz. O primeiro é um baterista de primeira; o baixista, competente e sério, é daqueles profissionais com quem todos apreciariam tocar. Pois esses dois + o sax barítono Gerry Mulligan e o trompetista Chet Baker, criaram um quarteto (sem piano) que está entre as grandes formações do jazz. As gravações de The Lady is a Tramp, Moonlight in Vermont e My Funny Valentine são definitivas. Mulligan é o melhor em seu instrumento. Chet é Chet – e ponto.
Gosto de rever filmes, assim como aprecio reler livros, ouvir a mesma faixa do disco repetidas vezes etc. Comentei, há algumas postagens, sobre Quino, o extraordinário cartunista argentino. Também escrevi sobre Milo Manara. Em outras palavras, também admiro os quadrinhos e, no caso deste texto específico, admiro quando os quadrinhos se ligam ao cinema. Não, nada de Marvel ou DC, embora não chegue a desgostar de algumas películas que trazem Batman, X-Men, Superman & O Justiceiro. Como você poderá perceber, vou ao outro extremo para falar de um filme que considero dos melhores que vi nos últimos anos, e que revejo tanto quanto possível: American Splendor, que aqui no Brasil ganhou o título de Anti-herói Americano, criação conjunta dos diretores Robert Pulcini e Shari Springer Berman.
É bom saber: American Splendor é uma revista, um comic book que se fundamenta exclusivamente em fatos quotidianos, na cidade de Cleveland, Ohio. Os autores dessa revista-crônica são o legendário e maldito Robert Crumb e um tal Harvey Pekar, o anti-herói protagonista da película, um judeu depressivo unha-de-fome e amante do jazz que trabalha como arquivista – e por isso é frustrado. Não gosta do que faz e foi abandonado pela esposa que, ao deixar o lar em que viviam, disse não aguentar a vida plebeia. Resolve criar uma revista a partir de um fato solitário: ao organizar arquivos de óbitos, vê-se diante da ficha de um homem que trabalhara durante toda a vida num emprego como o dele. A partir de então, resolve criar uma revista, que se torna famosa e vende como chicletes, mas Pekar continua na mesma, até envolver-se com uma mulher tão esquisita quanto ele, que vê em todos os seres humanos sintomas neuróticos.
Só essa premissa, a meu ver, já valeria uma checada no filme, mas há mais: Harvey Pekar, com a fama, chega a sentar-se por algumas vezes na cadeira diante de David Letterman (sim, o do talk-show que o Jô Soares copiava) – até que os dois se desentendem e esse é o ponto alto do filme. Hilário e o mesmo tempo triste. Tudo isso realmente aconteceu. Pekar existe de verdade – e aparece no filme ao lado do ator que o interpreta, Paul Giamatti. Dessa forma, o filme desemboca na metalinguagem, bem arrumada, irônica, mordaz, por vezes muito engraçada. Giamatti é da safra daqueles atores que se sustentam pela força dramática apenas, e não pela estampa – aliás, ele é feio como um olho roxo e suas caretas expressam sua dor e seu desprezo pelo mundo que, reciprocamente, também o despreza.
O filme se constrói em película e em desenho, como se um fosse continuidade do outro – aliás, é exatamente isso o quem acontece. A técnica vem dos quadrinhos, o enquadramento flui como num gibi no qual não existem páginas viradas. Sempre se volta a elas, pois assim funcionam as boas histórias. Tudo bem: o leitor dirá que isso não é novidade. Não é mesmo. Caso o que importasse aqui, nesta postagem, fosse trazer algo novo a quem quer que leia, qual o propósito de rever um filme? Paradoxalmente, quanto mais o revejo, mais elementos novos observo. Talvez seja esse o real esplendor.
AQUI você vê um trailer do filme.
Está certo: será a última postagem do ano falando sobre meu xará, Chico Buarque. Calo-me por todo o 2018, depois. A não ser, claro, que eu mude de ideia. Na verdade, esta postagem é uma lista, cuja origem se situa num comentário do meu amigo e comentarista inteligente e assíduo do blogue, Lucas Lessa. A proposta dele foi discutir que seria o melhor parceiro de Chico. Eu vou além, e faço uma lista das minhas 15 canções favoritas, com as datas de publicação dos álbuns em que se inserem. Em outras palavras, mudei a proposta radicalmente – o que não significa que eu não possa retornar à sugestão de Lucas.
Eu disse – e tenho dito! – na postagem anterior que a fase mais criativa de Chico se deu entre 1971 e 1979. Em bom vernáculo: de Construção a Ópera do Malandro. Nove anos de produção soberba, sublime, incomparável. Já ouvi muita besteira acerca dessa época tão produtiva. Uma delas, a mais frequente, é que o compositor foi genial porque o regime militar proporcionou isso, censurando-o e obrigando-o a criar subterfúgios para burlar a tesoura. Chico Buarque não foi genial por conta do regime militar, mas apesar dele. Mas isso é outro papo. Eis a lista (pessoal, subjetiva, questionável), com os links, para quem quiser conferir. É só clicar e, em seguida, congratular-me ou rir das escolhas. Em tempo: como sou homem de palavras, a base de minha escolha é o trabalho com a linguagem. Em tempo, de novo: há algumas canções que extrapolam 1979.
Eu poderia enumerar outras 15, todas no mesmo nível das que listei. Ou tantas outras, deixadas de lado por uma limitação que eu mesmo impus. No fundo, essa coisa de lista é meio chata, impertinente, mas serve ao menos para divertir. Certo, xará?
Você consegue imaginar Cleópatra, Xuxa, Lilian Helmann e Chita – a macaca do Tarzã – juntas, no mesmo espaço? Difícil, não? Na verdade, impossível, porque Chita não era macaca – mas macaco. Sim, era macho, mas quem se importa? Aliás, a bem da verdade, quem ainda se lembra desse ménage Tarzã/Jane/Chita? E quem ousaria reunir João Gilberto, Gay Talese, o papagaio Zé Carioca, Bezerra da Silva e o casal Pepeu Gomes e Baby Consuelo (hoje, Baby do Brasil)? Há uma resposta para as 3 perguntas e ela se configura num livro e no seu autor: Trêfego e peralta, do jornalista Ruy Castro, livro cujo subtítulo é 50 textos deliciosamente incorretos.
O número 50 é intencional: corresponde a 50 anos de vida jornalística, dedicada a escrever de forma tão clara quanto irônica, marcada por um vasto cabedal informativo cuja exposição não é hermética nem sugere pedantismo. Está certo: Ruy Castro não escreve para qualquer um. É inteligente e seu texto merece ser lido com inteligência. Se você, leitor, compreende o referencial utilizado, ótimo. Seus temas são variados: comportamento, cultura, quotidiano, política, arte (música, literatura, cinema) e por aí vai. O subtítulo é um fio de esperança, un plat de résistance. Em tempos sombrios de correção política, carregados de tirania, nada melhor que uma reunião de textos que dinamita o bom comportamento.
Li de uma tacada. Os textos são saborosos e tal sabor se mantém há muito tempo. A organizadora, Heloísa Seixas, casada com o autor, organizou os papeis – os vários artigos sobre assuntos também vários, desde quando o autor deu os primeiros passos no ofício. Fez o mesmo com Tempestade de Ritmos (sobre jazz e música popular) e Um Filme é para Sempre (sobre cinema), ambos de 2007. Ruy Castro, como se sabe, consolidou-se como biógrafo. Seu texto, com dois pés no new journalism de Lillian Ross, Norman Mailer e Tom Wolfe, é ágil, certeiro e, no caso deste livro – ainda bem! -, pulsando incorreções políticas. As entrevistas com Ibrahim Sued e com Millor Fernandes são antológicas. Os textos (quase ensaios) sobre o Pato Donald, sobre o Solar da Fossa, sobre o Tropicalismo e sobre os felinos no cinema são de admirar.
O que li dele? Chega de Saudade, A Onda que se ergueu no Mar (ambos sobre a Bossa Nova), Saudades do Século Vinte (minibiografias sobre figuras essenciais, ótimo), as biografias de Garrincha e de Nelson Rodrigues – com a qual colaborei, mesmo que timidamente -, o delicioso Ela é Carioca – sobre Ipanema -, os citados Tempestade de Ritmos e Um Filme é para Sempre, e este livro, que sustenta a postagem. Não é muita coisa, eu sei, mas o suficiente para atestar que Ruy Castro está entre os melhores em sua especialidade. Se não é o melhor, ao menos é o mais trêfego e o mais peralta.