Miúcha, Heloísa, 80

Imagem relacionadaVocê já ouviu falar em Heloísa Maria Buarque de Holanda? Da família famosa, sem dúvidas. Tem pelo menos dois ilustríssimos, pai e filho: Sérgio e Francisco. A moça em questão é filha de um e irmã de outro – e atende pelo apelido de Miúcha. Sim, a mesma que foi casada com João Gilberto e que, a partir dessa união, deu à luz uma filha chamada Isabel, dita Bebel Gilberto, cantora. Seu tropismo para a música é algo óbvio e, justamente por isso, escrevo sobre ela que, hoje, dia 30, completa 80 anos. Alguns de seus discos (ou de suas participações em discos) são memoráveis. Um deles está AQUI, ao lado de Tom Jobim, querido amigo.

A bem da verdade, ela fez um outro disco com o maestro – não tão bem sucedido quanto o anterior, mas ainda assim melhor do que a maioria dos duetos que vieram depois desse. Miúcha é subestimada. Foi acusada de escalar montanhas nas costas do irmão e do ex-marido, ambos famosíssimos. Injustiça abissal. Tudo bem que a voz não tinha o alcance de uma Gal Costa, de uma Leny Andrade, de uma Elis, de uma Elizeth. Mas é uma voz afinada, charmosa, elegante e, se me permitem uma sinestesia, levíssima ao tato. Miúcha canta bem.

Miúcha teve uma grande vantagem: aqueles que a cercavam alimentaram seu repertório com o que havia de mais nutritivo: a MPB mais pura, o samba-canção mais refinado, a Bossa Nova reluzente. Fez o que quis, mesmo com a voz limitada. A foto acima, em companhia do citado Tom, e da dupla Toquinho-Vinícius, é o registro de um dos melhores discos de MPB ao vivo que conheço. Gravado ao vivo no legendário Canecão, casa carioca, reuniu os 4 amigos inseparáveis. No ano em que ela completa 80 anos, esse disco completa 40. Se você não conhece, AQUI está.

Resultado de imagem para disco miucha 1988Miúcha tem poucos discos solo. O melhor deles, disparado, é o de 1988, cujo título é seu próprio nome. O repertório? Do cubano Pablo Milanés (que canta com ela na faixa inicial) ao norte-americano Duke Ellington, passando por Guinga, Jards Macalé, Caetano Veloso, Paulo Cesar Pinheiro, Vinícius de Moraes e Mutinho. Em Saudosismo, de Caetano, a filha Bebel Gilberto inicia a carreira. Vale ouvir e reouvir essa cantora que, mesmo não pertencendo ao grupo seletíssimo de intérpretes brasileiras, tornou-se, com o tempo, uma voz essencial. O disco inteiro está AQUI. Soube que há um disco ao vivo dela, no Paço Imperial, uma relíquia que não conheço (ainda). De qualquer forma, já me bastam aqueles que possuo, e que ouvirei hoje, em homenagem a quem merece.

Parabéns, Heloísa!

Justiça? (uma provável continuação à postagem anterior)

Num certo sentido, esta postagem continua a anterior. Pois bem: mostrei a meus alunos, usando a internet – mais particularmente o Youtube -, o encontro entre Gilberto Gil (de novo) e Chico Buarque durante o evento musical Phono 73. Já escrevi sobre tal evento. Nesse encontro, os compositores, vítimas da censura, tentam entoar a emblemática canção Cálice, mas os microfones são desligados. Demonstração de força e truculência por parte de quem não dialogava. Enfim, não é exatamente sobre isso que quero falar. Poucos sabem que o compositor baiano divide com Chico os louros da criação dessa canção. E mais que isso: Gil compôs a melodia, o refrão e duas estrofes; a Chico coube o resto – ou seja, duas estrofes. Avaliando em termos quantitativos, Cálice pertence mais a Gil que ao trovador carioca. Sei que esse tipo de discussão é estéril, a nada leva, já que o mais importante é a obra etc, etc, mas não seria mais justo que isso ficasse claro a quem pudesse interessar?

Outro exemplo? Pixinguinha compôs a melodia de Rosa em 1917 – só a melodia. O texto, a letra, foi composto por Otávio de Souza, um suburbano mecânico do Méier, bairro carioca, de quem pouquíssima gente ouviu falar. Quase todos pensam que Rosa pertence unicamente a Pixinguinha – o que revela uma grande injustiça, principalmente porque se observa que, embora a melodia seja de uma inventividade impressionante, o texto chama a atenção por sua aura kitsch e inovadora – algo entre o parnaso e a pós-modernidade. É de uma deliciosa cafonice, um banquete verborrágico sensacional!

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Postei sobre essas injustiças ao falar sobre Milton Nascimento, e de como as fundamentais participações textuais de Fernando Brant e Ronaldo Bastos foram eclipsadas pelo tempo. Milton, extraordinário intérprete e melodista inquestionável, acaba, por tabela, tornando-se também o letrista, mesmo sem ter posto sequer um fonema no processo. Mais ou menos a mesma coisa acontece com a parceria Chico/Gil, na consagrada Cálice. Assisti a uma entrevista com Milton, num talk show. O apresentador elogiou-lhe a sensibilidade com as palavras em Saudades dos Aviões da PanAir, cuja autoria é de Fernando Brant. Não teria sido justo Milton retificar o elogio, dirigindo-o a quem realmente merece?

Não sou beócio. Compreendo que a figura do cantor sobrepõe-se à do compositor – a não ser que ambos sejam a mesma pessoa. Quando não, o protagonismo natural é do crooner, do sujeito que, à frente, do grupo, solta a voz, dá a cara para os tapas. Mesmo assim, arriscando-se, deve sempre estar ciente de que sem a composição seu trabalho seria tão fértil quanto um prato de porcelana. Eu sou autor – não de canções, mas de histórias. Sei o quanto é importante o reconhecimento da autoria, embora meu amigo Arthur Barcelos* – comentarista inteligente e arguto deste blogue – afirme que a juventude não está nem aí para tal pormenor. Uma pena. Quem perde é o artista, sem o qual, evidentemente, a obra de arte não existiria.

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*Ver os comentários na postagem anterior.

Vinde a nós as criancinhas!

Em 1993, Maria Bethânia lançou um disco intitulado As Canções que Você fez pra Mim, com músicas da dupla Roberto Carlos & Erasmo. Estourou a banca, e oxigenou a carreira da cantora, que vinha de um fracasso comercial chamado Olho d’Água, editado um ano antes. Roberto Carlos, numa entrevista à época, agradeceu a Bethânia por ter sido “escolhido” por ela, e louvou sua generosidade, elogiou-a, fez apologias. Na verdade – penso eu – deveria ser o contrário: a cantora baiana deveria agradecer-lhe (e ela deve tê-lo feito). Tivesse ela escolhido repertório de outro artista, amargaria um possível novo fracasso. Mas Roberto Carlos é aposta certeira. Pergunte aos Titãs.

Mas por que estou falando isso? Já explico. Fui, há alguns anos, a um show gratuito de Gilberto Gil, de quem sou fã declarado. Gil abriu o evento com A Novidade, composição em parceria com Torquato Neto. A Novidade é uma pequena obra-prima em que se expõem os dois lados da moeda: a sereia que é bela mas é devorada pelos esfaimados. A metáfora e a antítese, lado a lado. E por falar em lado, algumas adolescentes, próximas a mim, uivaram de prazer quando a banda de Gil iniciou os primeiros acordes da composição. Reconheceram-na e afirmaram, entre si e entre gritinhos quase lascivos, que Gil estava cantando uma música dos Paralamas. Sim, do grupo Paralamas do Sucesso. A melodia pode ser, mas o texto é todo Gil.

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De início, indignei-me menos pelo equívoco (previsível) das mocinhas, mas muito mais por constatar o que para mim é a real antítese: pelo ponto de vista da garotada, ao gravar a canção, a banda Paralamas do Sucesso faz mais por Gil do que Gil pela banda. Sem a gravação, a maioria do público adolescente – em cuja playlist Gilberto Gil não deve constar – não teria acesso a alguns dos nomes fundamentais da música brasileira. Ou seja: Gilberto Gil deve agradecer aos Paralamas – e não o contrário. Mais ou menos o que Bethânia deveria ter feito com Roberto Carlos. (Será que passou pela cabeça raspada de Herbert Vianna agradecer a Gil por turbinar, com a gravação de A Novidade, seu pífio repertório? Duvido.)

Vamos lá: nos últimos 50 anos, o primeiro time de compositores da MPB é composto por Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Francis Hime, Paulinho da Viola, a dupla Toquinho & Vinícius e Antonio Carlos Jobim e Belchior. Aos olhos de boa parte da juventude – que já ouviu falar deles mas que não consome sua música -, são considerados a ala geriátrica da canção brasileira. Não frequentam a agenda da MTV nem dividem palco com Faustão, Raul Gil, Hebe Camargo, Sergio Groisman, Luciano Huck ou Gugu Liberato. Em bom vernáculo: são enaltecidos por aquela faixa etária na qual a indústria fonográfica menos investe: o mercado adulto.

Conquistar consumidores adolescentes – que lotam shows e se preocupam pouco com a qualidade musical do produto que consomem – é uma das metas fundamentais da indústria do disco. Quem pode discordar? Olhe (e ouça) em volta e você verá (e ouvirá) que o investimento nessa faixa de mercado é absurdamente superior àquilo que se investe em qualquer outro grupo social. Perfeitamente compreensível: shows oferecidos à garotada são muito mais fáceis de se produzir, e a audiência é garantida. Só por curiosidade, busquei na web a música Vamos Fugir, de Gilberto Gil, que foi gravada pela banda pop Skank. A versão de Gil (das muitas que há) tem, até o momento em que escrevo, 46 mil visualizações. É esta AQUI. A do Skank bate sem dó: 5,5 milhões de visualizações. Pode não significar muito, mas é um sintoma, e é bom que Gil agradeça também ao Skank, porque a gurizada vai perceber, logo abaixo do título da composição, que Samuel Rosa nada tem a ver com a letra. Ou estou sendo otimista demais e a garotada nem se preocupa com autorias?

Mulheres #3: Nastassja Kinski

Nastassja Aglaia Nakszynski começou no cinema aos 13 anos, pelas lentes de Win Wenders, em The Wrong Move, um road movie de 1975 que trazia a presença luminosa de outra alemã, Hanna Schygulla, no papel feminino principal. Aos treze Nastassja já possuía a impressionante beleza que transformaria o atormentado Roman Polanski, três anos depois, num boquiaberto apaixonado, e seria justamente ele o responsável por apresentá-la ao mundo, dando-lhe o papel principal no belo filme Tess, de 1979.

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Depois: foi garota do circo (O Fundo do Coração) e esposa de Robert Schumann (Sinfonia da Primavera), tornou-se pantera numa relação incestuosa com o irmão Malcolm McDowell (A Marca da Pantera), foi refugiada iugoslava cujo marido era impotente (Os Amantes de Maria), envolveu-se com o agente antiterror Nureyev (Exposed), foi mulher do maestro Dudley Moore (Infielmente Tua), desfilou como uma sílfide por estações portuárias (A Lua na Sarjeta) e voltou, loura, stripper e mãe, para os olhos de Wenders (Paris, Texas) – tudo isso em 3 míseros anos. Tudo bem, tudo bem, alguns filmes são menores, reconheço, mas Os Amantes de Maria, O Fundo do Coração e A Marca da Pantera merecem menção especial.

A atriz deixou sua marca no imaginário masculino nos anos 80, principalmente por aparecer nua ao lado de Marcello Mastroianni dois anos antes, em Tentação Proibida, de Alberto Lattuada, um dos grandes nomes do Neorrealismo italiano. Foi o primeiro filme que vi, estrelado por ela. Pude ver suas curvas também em A Marca da Pantera – refilmagem de Sangue de Pantera, de Jacques Tourneur -, filme que fez dela uma celebridade e, mesmo assim, num determinado momento de sua carreira, ela isolou-se, deixando Hollywood a ver navios, órfã de uma acachapante beleza europeia que não tinha rivais em sua época. Voltaria mais tarde, casada com o produtor egípcio Ibrahim Moussa, com quem teve dois filhos e que fez uma ponta no filme Harem, estrelado por ela, em 1985. Um filme menor, em que ela faz uma belezura raptada por Ben Kingsley, um sheik árabe.

Os anos 1980 foram bons para Nastassja Kinski, mas não a década seguinte, quando ela resolveu percorrer os caminhos dos filmes de ação e protagonizou bombas como Velocidade Terminal e Crackerjack – Resgate Suicida. Outro sortudo que a teve como esposa foi o produtor musical e trompetista Quincy Jones, com quem teve uma filha. E por falar em paternidade, Nastassja é filha do lendário ator Klaus Kinski, um desajustado que publicou sua autobiografia – Kinski Uncut -, na qual insinua ter tido relações incestuosas com ela. O rompimento entre eles foi definitivo, a ponto de ela, em 1991, não ter comparecido ao funeral do pai.

A foto acima, de Richard Avedon, mostra Nastassja Kinski em sua imagem mais famosa – uma Eva moderna, muito mais bela que a concubina de Adão. Era o ano de 1981 e ela mal acabara de fazer 20 anos, estava no apogeu da beleza, no ponto máximo da sensualidade. Está ali para ser vista, admirada, contemplada. É toda sua, leitor!

Vendo (do verbo ver) um musical

Agora me diga: além de ser uma comédia de primeiríssima, que outro filme pode reunir três dos maiores cantores norte-americanos – Frank SinatraBing Crosby e Sammy Davis, Jr. -, e ainda, de quebra, apresentar a voz firme de Dean Martin, o charme cínico de Peter Falk e a beleza exuberante de Barbara Rush? Pois se você apostou em Onze Homens e um Segredo, clássico de 1960, errou,  porque Mr. Crosby não estava nele, e a mocinha do filme é a deliciosa Angie Dickinson – que ainda perde para Barbara por alguns corpos de distância. O filme em questão é Robin Hood de Chicago, uma comédia musical dirigida por Gordon Douglas, feita há 53 anos. Mas porque ressuscitá-la? Primeiro porque revi ontem, domingo pós-Enem, no canal pago TCM. E também – principalmente – pelos motivos apresentados no início da postagem.

Eu gosto de musicais, essa invenção dos ianques, que representam uma era, um determinado momento estético em que tudo parecia dar certo, da música à coreografia, passando pelos cenários e pelos temas – quase sempre encharcados de uma ingenuidade sedutora, alegre. As produções grandiosas, as orquestrações e arranjos afinados, a excelência das canções – cujos compositores (ao menos  maioria) estão entre o que há de melhor na música popular do século passado – e, claro, a combinação de tudo isso aliada a histórias que não são esquecidas facilmente. E, para finalizar: musicais me proporcionaram conhecer Cyd Charisse. Quem é? Esta AQUI, num outro musical que não se encaixa na postagem.

À parte o fato de que três membros do temido Rat Pack – o quarteto formado pelos hedonistas Sinatra, Sammy Davis, Dean Martin + Peter Lawford -, o filme sobrevive por duas razões: é uma comédia atemporal, embora seu ambiente sejam os norte-americanos anos 30, e a história intertextualiza com uma das imortais lendas da literatura: o mito de Robin Hood e seu bando. Esses dois motivos já valeriam o ingresso. Mas há duas passagens que constam de qualquer lista de grandes cenas do cinema cômico: numa delas, AQUISammy Davis, Jr. canta e dança e sapateia o tema Bang Bang. Numa OUTRA, os já citados senhores simulam um culto religioso no qual excomungam o energúmeno álcool. A música se chama Mr. Booze.  Se tiver tempo, deixe rolar e assista. Antológicas!

Escrevi, há poucas semanas, sobre La La Land, musical oscarizado, homenagem ao jazz. Não sei se o sucesso do filme criará uma onda que fará brotar novos filmes do gênero. Não creio. A meninada não aprecia muito. Quer ação, fantasia, heróis da Marvel. Eu, um tanto resignado, volto no tempo por conta desses canais de tevê, que enchem meu coração de alegria e me torna um romântico temporário. Por isso fico imaginando um musical com os quatro grandes mencionados + Tony Bennett, Nat King Cole, Johnny Hartman e Louis Armstrong. Um show e tanto, com o qual ficaria difícil rivalizar. Faltou alguém? Ah, sim, Elvis Presley. Bons sonhos, então, Grijó!

Bill Evans, Tóquio, Buenos Aires

Cá estou, de volta, após 8 dias de descanso. Retorno falando de um assunto de preferência: o jazz. Assisti, anteontem, na tevê fechada, a um documentário sobre Bill Evans. O narrador, cujo rosto não aparece (nem o nome nos créditos), afirmou que o pianista de New Jersey resume o jazz. Confesso que, ao escrever sobre os grandes discos de jazz ao vivo –, senti-me tentado a escrever sobre um outro disco deste extraordinário pianista. O documentário considera-o o maior do gênero. Evito esse tipo de superlatividade porque, a meu ver, ela é sempre arriscada. E também, claro, porque não me sinto capaz de, com a exatidão de um crítico musical – ou de um músico, seja diletante, seja profissional –, tecer comentários precisos sobre escalas, tons, semitons et cetera. Ouço música. Chego a escrever sobre o que ouço, mas minhas opiniões revelam, naturalmente, gosto pessoal. Pois bem: voltemos a Bill Evans.

Ouço, neste momento em que escrevo, o disco The Tokyo Concert, de 1973, com Marty Morell na bateria e Eddie Gómez no contrabaixo. Sem trocadilhos, é um show. Qualquer comentário acerca dos temas executados soará, no mínimo, repetitivo. Imagino que muito já se tenha escrito sobre Bill Evans e sobre essa específica obra, mas fica difícil não comentar, pelo menos, uma faixa: a quarta, My Romance, na qual Gómez, com o arco, parece ter uma conversa reservada com Deus. Enquanto fala – e o Supremo ouve, quieto –, Morell mostra por que os anjos devem trocar as cornetas por baquetas, tom-tons e vassourinhas. É, em minha opinião, o grande momento do disco. E Bill, nesta faixa, dá uma lição de economia musical, ao mesmo tempo em que expressa virtuosismo do início ao fim, no diálogo com os dois sidemen. Um diálogo que ele abre e fecha, mas sem a arrogância de ter a “última palavra”: Bill Evans sabe ouvir e sabe falar: a opinião alheia merece respeito.

Posso imaginar com que felicidade os músicos o acompanhavam, sabendo que tinham liberdade para improvisar – que é, de fato, a alma do jazz. My Romance é uma composição de Richard Rodgers e Lorenz Hart, famosos por terem composto clássicos como My Funny Valentine e The Lady is a Tramp e por serem os compositores preferidos de cantoras de cabaré. Talvez o autor do texto documental tenha razão quanto a Bill Evans ser o maior. Quando, porém, penso nisso, sou assombrado pela velocidade de Earl Hines e pelo lirismo de Phineas Newborn. Em tempo: para os fãs de bateria, duvido que sejam capazes de ouvir, sem reverência, o solo de Marty Morell em Gloria’s Step. Uma oportunidade: o álbum inteiro está AQUI.

Só para constar: passei seis dias em Buenos Aires, a capital portenha. Numa das idas a El Ateneu, uma das melhores livrarias do mundo, constatei que vários – uns quarenta, ao menos – discos de Bill Evans eram vendidos em formato vinil. Algo que me assombrou tanto quanto me deixou esperançoso. Bill merece.

Os poetas marginais da Ilha

Ninguém discute que o que diferencia a literatura da não-literatura é a linguagem – e é justamente ela, instrumento essencial, que, lato sensu, determina as estéticas, adequando-se a um determinado momento histórico ou refletindo-o, como um espelho verbal. Dia desses reli o clássico 26 Poetas Hoje, organizado por Heloísa Buarque de Hollanda, livro considerado por muitos o resumo quase bíblico de uma geração chamada marginal, cujos integrantes – muitos deles, ao menos – compõem o panorama “estabelecido” da poesia brasileira, encaixados que foram num modelo que enquadra e rotula tendências e comportamentos.

Encaixados foram Ana Cristina César – hoje um acepipe para os acadêmicos -, Wally Salomão, Chacal, Charles, Torquato Neto, o global Geraldo Carneiro, Bernardo Vilhena e outros tantos. Nenhuma crítica a isso, que fique claro. Não há qualquer julgamento de valor no fato de um autor, outrora à margem, fazer parte, hoje, do time principal e ser convidado, com devida honraria, para coquetéis e convescotes promovidos por aqueles que antes os criticavam. Não vejo problema: queria eu (mesmo não sendo poeta) estar na pele e no lugar deles. É aí que entra uma outra questão: a marginalidade ainda existe ou se desfez como sorvete ao sol neste mundo globalizado? Existe, claro, e qualquer escritor – ou poeta – residente no ES sabe disso, e com essa triste realidade precisa conviver, sabendo que seu destino será, metonimicamente falando, ser lido por seus pares domésticos, seu vizinho, seu amigo – ou até seu inimigo, mas sempre aquele com quem pode conversar, via whatsapp, redes sociais, fazendo chamadas locais.

Resultado de imagem para paulo roberto sodré poemas desconcertantesIsso não é, nem de longe, uma lamentação – não sou um choramingas -, e sim uma constatação, uma quase obviedade. De quem é a responsabilidade (evito a palavra culpa por ela me parecer freudiana demais)? Dos próprios autores, que deveriam se mobilizar e, munidos de seus originais sob os sovacos, bater às portas das editoras paulistas, mineiras, cariocas? Dos leitores, que pouco se interessam por autores locais e muito menos por aquilo que eles têm a dizer? Das próprias editoras, que não veem a literatura feita no ES como produto em que se deva investir? Do jabá? (Não se iluda: o jabá não é prerrogativa do meio musical). Da qualidade sofrível dos textos por aqui produzidos?

Resultado de imagem para cae guimaraesPoetas são, por princípio e quase obrigação, marginais. Lê-se pouca poesia, neste país. Marginais de qualidade inquestionável – mas ainda assim marginais! – são Waldo Motta, Flávio Sarlo, Orlando Lopes, Benilson Pereira, Gilson Soares, Oscar Gama, Caê Guimarães, Sérgio Blank, Fernando Achiamé, Paulo Sodré. Sem contar os que, em carne e palavras, não estão mais entre nós, como Miguel Marvilla Renato Pacheco. Quer mais? Consulte o catálogo da Editora Cousa, de Saulo Ribeiro, e você encontrará, entre os novíssimos autores, algumas gemas de valor. A discussão, entretanto, reside num ponto específico: a marginalidade continua na ordem do dia, há muito. Não, não há resistência quanto ao fato – a não ser que se considere a insistência em produzir bons poemas como um exemplo de. Somos todos (poetas ou não) marginais, e com essa dura e triste realidade o escritor capixaba é obrigado a conviver. E evito perguntar até quando?, com medo de que a resposta sugira eternidade.

Kubrick, epifania

Qualquer dicionário decente define epifania como uma manifestação visual de caráter divino, revelação. Epifania é coisa de privilegiado, de alma santa, de sujeito iluminado – ou pelo menos assim se consideram aqueles que se envolvem com visões santificadas de caráter pessoal. Alguns usam da química para isso, mas aí a história é outra. Um amigo me disse que, ao assistir a um espetáculo operístico pela primeira vez (Don Giovanni, salvo engano), a vida se abriu diante dele, como se o que tivesse vivido até então fosse despido de significado. Tudo havia mudado por conta da música e do drama. Dia desses ouvi um jornalista esportivo afirmar que ter visto o holandês Cruijff jogar, ao vivo, nos anos 1970, havia sido uma de suas experiências reveladoras. Penso que tudo isso constitui a epifania, e me parece estar ligada, sempre, a algo que se move. No meu caso, o cinema, do grego kinema, movimento, num específico momento, proporcionou-me essa revelação.

Film Review: A Clockwork Orange – CineVue

Naturalmente não me sinto iluminado por isso, embora tal palavra me transporte a Stanley Kubrick, o cineasta meio maldito e gênio por inteiro. Kubrick dirigiu A Laranja Mecânica, ano de 1971, mas o filme chegou por aqui em 78. Proibido a menores, só fui ver o filme dois anos depois, no extinto e saudoso Dom Marcos, em Vila Velha, em frente à praça principal da cidade. Lembro-me bem de ter saído do cinema e não saber exatamente para qual direção seguir. Ok, um homem, aos 18, não sabe mesmo para onde ir, mas estou convencido de que o filme tinha muito mais a ver com esse desnorte do que a pouca idade.

O texto de Antony Burgess, no qual a película se baseou, e o qual fui ler algum tempo depois, não me abalou tanto. A razão é simples: movimento, a base da epifania. E a partir de então a linguagem meio joyceana dos personagens (mérito do Burgess, claro) e as imagens coreografadas de Kubrick me impressionaram, assim como o fizeram o behaviorismo governista, o estranho olhar de Malcolm MacDowell após beber leite narcotizado. Sem falar na violência amplificada, gratuita e profética, na sexualidade aliada à destruição, no threesome ao som de Guilherme Tell, de Rossini, na paraplegia do velho escritor comunista após ser surrado, ao som de Singin’ in the Rain. As famosas bolinhas pretas (as novas gerações ignoram isso), símbolo da censura da época, que acompanhavam, dançantes, as partes pudendas e expostas das personagens – tudo isso, e muito mais, provocou-me o mal estar que, sabe-se lá por quais mecanismos, gerou-me a epifania, a revelação.

How London has changed since Stanley Kubrick's A Clockwork Orange ...

Fui procurar, em Vitória, no outro dia, o livro do Burgess, e não o encontrei em nenhuma das poucas livrarias da ilha. E lembro-me, finalmente, de ter percebido, naquele momento, que o cinema saía do espaço do mero entretenimento e alcançava um outro objetivo: expor uma outra realidade que, diante de nós ou não, existe e tem cheiro, gosto, forma, som, efeito. Isso eu percebi algum tempo depois, mas já era tarde. Essa realidade, a do cinema, tinha se tornado mais reveladora que qualquer outra.

Dizzy Gillespie, aos 100

Se vivo, Dizzy Gillespie, neé John Birks, estaria, amanhã, dia 21, fazendo 100 anos. Um dos maiores nomes do Jazz; um dos grandes músicos do século que, diferentemente de sua música, ficou para trás.

AQUI, com seu quinteto: James Moody, sax; Kenny Barron, piano; Chris White, baixo; Rudy Collins, bateria.

Uma curiosidade: a partir de 21:50, Chega de Saudade, tema da Bossa Nova. Uma beleza.

Se alguém se interessar, AQUI está o site oficial desse senhor.

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