O argentino Julio Cortázar escreveu inúmeras obras-primas, sejam em formato de contos, ensaios, crônicas ou romances. Poderia ter-se aposentado após a publicação do extraordinário romance O Jogo da Amarelinha, em 1963. Ou do excepcional volume de contos Todos os Fogos o Fogo, três anos depois. É um símbolo da alta literatura feita na América do Sul, embora tenha se naturalizado francês e escrito boa parte de sua obra em solo europeu. Há quem prefira Jorge Luís Borges – outro argentino – insistindo numa equivocada rivalidade. Esqueça isso!
Estou relendo Os Autonautas da Cosmopista, livro publicado – em espanhol e em francês – em 1983, mas que chegou à versão brasileira em 1991, pela editora Brasiliense. Está na foto em minha companhia. O livro, um diário literário e humorístico de viagem, é escrito a 4 mãos: duas de Cortázar e duas de sua mulher, a escritora canadense Carol Dunlop, que criou o subtítulo uma viagem atemporal Paris-Marselha. A propósito: a distância entre as duas cidades é de 774km. De carro, leva-se pouco mais de 9h; a viagem, contudo, durou um mês, a bordo de uma Kombi equipada para abrigar dois escritores. A Kombi, por sinal, tinha um nome: Fafner.
A lentidão para se chegar ao destino é proposital: observar a realidade, com olhar literário, e transpô-la para o papel é o objetivo desses dois autonautas. Natureza, homem, velocidade, estrada, parkings, alimento, poesia, leitura, amigos, escritura, hotéis, gasolina e tudo o mais que possa compor uma viagem de 30 dias. A linguagem de Cortázar, com seus períodos longos e marcada por conectivos e vírgulas magistralmente bem postos, é o ponto alto da narrativa. Há, claro, a narrativa de Carol – chamada carinhosamente de Ursinha -, mas não tem, evidentemente, a marca do gênio. Nem tem de ter.
O livro traz dezenas de fotografias, desenhos, observações acerca de lugares, flores, comida. É o registro sofisticado – bastante informal, contudo – não somente da viagem física per si, mas da viagem interior, carinhosa e cúmplice. Carol Dunlop tinha leucemia e, protegida por um Cortázar dedicado e atento, pôde usufruir de momentos de rara felicidade e humor refinado. Sem contar a aventura de viajar lentamente por uma estrada de sua escolha: sem pressa, como na vida. Cortázar morreria menos de um ano e meio depois. Juntos, continuariam autonautas.