Sou fã da sitcom Seinfeld, extinta em 1999, e reprisada em veículo streamin’. Tão fã que possuo os devedês com as temporadas completas, sem pôr nem tirar. Num dos episódios, revisitado para que esta crônica ganhasse vida, o personagem central envolve-se com uma mulher cuja beleza permite que todas as regras sejam burladas. Por exemplo, ao ser multado por excesso de velocidade, o protagonista Jerry, após desdenhar do vigilante rodoviário que o repreende, sugere que a bela namorada vá pedir a ele que cancele a multa – e é prontamente atendida. Por ser bonita, ela consegue lugares em restaurantes concorridos e ingressos em cinemas cuja lotação está esgotada. Tudo se torna possível para ela. A beleza, mais que um cartão de visitas, é uma gazua que viola todas as fechaduras.
Dia desses comentei com alguns amigos sobre as bond girls, aquelas deliciosas coadjuvantes de filmes de James Bond. Citei Barbara Bach e Ursula Andress como minhas preferidas. Ambas belíssimas, embora a suíça Andress não possua, no quesito beleza, rivais à altura. Um de meus amigos, um eficientíssimo professor de Matemática, desconhecendo-as por inteiro, ousou afirmar que, hoje, por estarem envelhecidas, a beleza desfez-se a ponto de apagar, também, a memória daqueles que as admiravam. Nesse ponto ele errou, mas acertou no vaticínio: a beleza ajusta-se, com certa obviedade, à juventude. Não à toa os emplastros antirrugas e as cirurgias plásticas estejam na ordem do dia, trazendo felicidade – mesmo que momentânea – a sofridas senhoras cinquentonas.
E por falar em tevê – e em beleza –, assisti, num canal fechado, ao documentário About Face: Supermodelos Antes e Agora, que trata de um assunto no mínimo curioso: o que é feito de uma modelo quando ela envelhece e a mercadoria que ela comercializa vai desvalorizando até que o mercado – inclemente em suas leis – transforma-a em inutilidade? Algumas delas, segundo se narra no documentário, encontraram refúgio no cinema ou se tornaram mulheres de negócios, mas guardam, ao menos aparentemente, a melancolia de um tempo presente no qual são consideradas produtos secundários dispostos em prateleiras pouco visitadas.
É claro que esse assunto pode ser estendido à mulher comum – e, nesses tempos atualíssimos, ao homem também. A beleza, essa commodity que cria a própria urgência em seu comércio, é uma senhora tão tirana quanto traiçoeira, e sem qualquer vestígio de compaixão. É uma Lucrecia Borgia, uma Ilse Koch. Dia desses, folheando despreocupadamente uma revista de variedades, dessas que habitam consultórios dentários, li que a bela comediante Sabrina Sato prefere ser chamada de burra a ser chamada de gorda.
Não é de se estranhar: a inteligência, algo descartável quando comparada à beleza, não é tão fundamental. Ao menos num país – ou estaria todo o mundo envolvido nessa aceitável perversão? – que rotula os feios, gordos, banguelas, calvos e baixotes de amaldiçoados e condenam ao Tártaro os mal vestidos, os cafonas, os démodés. Não há Paraíso para quem não possa olhar-se no espelho e admirar a si mesmo, para quem não possa orgulhar-se dos bíceps, dos lábios, dos olhos claros, do porte atlético, do traseiro torneado, das coxas malhadas. Talvez eu esteja exagerando, afinal há um grupo – não muito populoso – que ainda privilegia o que se diz e o que se pensa, mas qual sua função e sua serventia?
Enfim, há quem diga que a beleza tem caráter subjetivo – e que, por isso, não pode ser enquadrada em parâmetros ou rotulada como um produto. Quase todos discordam disso – incluindo eu e meu amigo matemático, citado lá no primeiro parágrafo. Segundo ele, um racional discípulo da simetria, a beleza pode ser equacionada. Afirmou que Sabrina Sato é tão valiosa quanto um teorema, e quase tão sedutora quanto o Binômio de Newton.
____________
*Crônica incluída Doxa – volume 2, em breve nas livrarias.