“Às vezes um charuto é apenas um charuto”, disse Sigmund Freud a um analista que o questionou se o charuto, empunhado pelo fundador da Psicanálise em muitas fotografias, tinha significados fálicos. A autoridade de Freud criou um costume: interpretar à revelia, como se um padrão conceitual pudesse ser encaixado em qualquer situação. Não sei se a resposta do grande pensador é verdadeira; não sei se tal breve diálogo aconteceu, mas serve para ilustrar algo ocorrido nas Olimpíadas de Paris – ainda em andamento. E que gerou este texto.
Eu explico. Foi perguntado a alguém da organização dos jogos se os cavalos – cúmplices dos atletas do hipismo – eram fornecidos pelo comitê olímpico ou se os proprietários dos animais cuidavam do transporte dos equinos até o país em que sairiam pulando obstáculos, trotando e se exibindo ao público e aos juízes. Um internauta fez uma brincadeira, usando as palavras de Chico Buarque, contidas na conhecidíssima parceria com Sivuca, João e Maria: “O meu cavalo só falava inglês.” Lembro-me dos meus 20 anos, quando, na universidade, conversávamos sobre política, ditadura e que tais, e alguém afirmar que o cavalo da canção representava a repressão dos militares. E a língua inglesa nada mais era que uma referência de Chico ao apoio dos EUA ao regime.
Em outras palavras: houve um momento em que tudo o que o compositor carioca escrevia era interpretado como uma ação contrária ao repressivo momento político brasileiro. Isso soa tão resumitivo quanto injusto. Chico Buarque foi muito além da política, e essa atitude heroica – de baluarte da democracia – nunca esteve em seu radar, a despeito de canções como Apesar de você, Tanto Mar, Cálice, Acorda Amor (sob pseudônimo), Deus lhe pague e algumas poucas outras. Vale, entretanto, a interpretação do leitor/ouvinte, afinal ela diz muito mais sobre quem lê e ouve do que sobre a obra em si.
Eis aí uma das belezas da arte: a capacidade de ela nos fazer interpretá-la de acordo com o que somos, não de acordo com o que ela é. A carência de alguém que falasse por uma parcela significativa da juventude da época era tão grande que Chico Buarque se tornou essa voz, mesmo que muitas de suas canções não tivessem a intenção de dizer mais do que diziam. Não importa. Se um charuto, em algumas situações, é apenas um charuto realmente não faz diferença. Infeliz é o artista que quer ter a última palavra sobre sua criação.