Tenho trabalhado – por opção – mais do que mereço. Sobra-me pouco tempo para uma atividade absolutamente essencial a um escritor: escrever. Enquanto me aventuro na pesquisa para andamento de um novo romance, uso algumas pausas para assistir a filmes – de preferência na companhia familiar. Aliás, vou mencionar família neste texto. É só esperar. Antes, porém, falo de Antonio Banderas, o ator espanhol. Mas por que falo nele, se, até onde sei, ele não é meu parente?
Banderas estrelou um filme intitulado Vem Dançar (Take the Lead, no original), uma espécie de Ao Mestre com Amor – clássico dos anos 60, com Sidney Poitier – com as agruras do hip hop. Antonio Banderas é um professor de dança de salão que quer ensinar a garotos de uma escola pública algo que para eles inexiste: vida inteligente fora do rap e da dança hip hop. Não é um grande filme, mas chamou-me a atenção uma das cenas iniciais, que revela o encontro do professor (a personagem chama-se Pierre Dulaine) com a alunada. Nela, Banderas liga um aparelho de som e dele sai a extraordinária voz de Sarah Vaughan cantando They Can’t Take That Away from Me, dos irmãos Gershwin, um clássico do jazz interpretado de forma grandiosa, sublime.
Os garotos protestam com a arrogância veemente da adolescência, como se a canção fosse, na verdade, um discurso de Joseph Goebbels. É uma cena grotesca: os alunos ameaçam deixar a sala de aula, e só se mantêm nela quando o professor desliga o aparelho. Não querem saber de Sarah Vaughan. Ignoram quem são Ella Fitzgerald, Carmen McRae, Rosemary Clooney, Dinah Washington, Julie London. Não se interessam por Harold Arlen, pelos irmãos Gershwin, por Cole Porter, Irving Berlin, grandes nomes da canção em qualquer época. Querem contato, de fato, com os rappers que, de forma contundente ou não, num discurso verdadeiro ou convenientemente ensaiado, falam sobre periferia, sobre diferenças raciais, sobre os dissabores da condição em que vivem. Isso não se discute. O que me incomoda – e incomodou também o professor dançarino – é rejeitarem aquilo que não conhecem.
Qual a função, então, de um professor – de dança ou de qualquer outra disciplina? Criticar seu aluno por ele desconhecer o que tem qualidade e, assim, aumentar a distância entre ele e seu pupilo? Não creio que seja essa a saída. Sempre acreditei que a obrigação de um professor – de qualquer área, mas aqueles que ministram aulas na seara de Humanidades têm mais chances de realizar isso – é apresentar ao aluno alternativas que permitam as escolhas, que proporcionem a eles a oportunidade de conhecer as opções. Apresentar música, literatura, cinema, arte em geral, de boa qualidade, é tarefa obrigatória.
Sinceramente? Sempre cri que um professor precisa habitar um mundo diferente daquele que seu aluno frequenta, embora deva reconhecer os cacoetes, as características e as contradições desse mundo, que não lhe é – e nem deve ser – alheio. Um professor, penso eu, pode (e deve) saber que existem, por exemplo, Thaíde, Ludmilla, Emicida e outras criaturas, mas é fundamental que conheça (e reconheça) a importância de Villa-Lobos, de Pixinguinha, de Lamartine Babo, de Chico Buarque. E apresentar esses artistas, de forma honesta e bem fundamentada, é seu ofício. E a família, onde entra? Bem, é ela que vai dar o primeiro passo. Sem ela, sem seu aval e cumplicidade, não há professor que possa, verdadeiramente, efetivar qualquer mudança. Vá em frente, Pierre Dulaine!