A pergunta que um escritor faz quando um outro escritor se vai: quem vai escrever, agora? Quem usará as palavras como elas eram usadas? Quem possuirá o critério, a ordem, a disposição, a linguagem? São perguntas que, sem uma resposta que as defina com exatidão, ficam em nossa memória durante tempos, épocas. E quando o escritor que se vai é mais que um escritor? É um amigo, um professor, um companheiro que ensina e nisso não se cansa? E, mais ainda: e quando esse amigo, escritor e professor é Ivan Borgo, que me deixou um tanto órfão – eu que já o sou, de pai e mãe, há 22 anos – a ponto de me sentir obrigado (e, dessa forma, melhor) a tentar contar e escrever sobre ele?
Vimo-nos pela última vez há alguns meses, num dos sábados da Logos, a livraria que resiste em Jardim da Penha em particular, e na ilha como um todo. Assim que cheguei – o estardalhaço é minha defesa contra a timidez -, Ivan recebeu-me com a gargalhada que lhe era peculiar. Eis aí a aquiescência: eu poderia ficar a seu lado e consumir suas pequenas vilanias vocabulares, suas apreciações literárias, tão audíveis quanto saborosas. Podia, ali, aprender a ver, nos textos, além do que se pode ver em nua visão. Justo eu, que me orgulho de minha profissão, que me incita a ver sempre além. Aprendi com Ivan muito mais do que aprendi nos livros.
Os sábados não serão mais os mesmos. Serão domingos chuvosos, trovejantes, de péssimo humor. Ou talvez devamos fazer exatamente o contrário: como Ivan se comportaria diante de uma adversidade que, por si só, é inevitável? Acho que, provocado pela intempérie, balançaria seu corpo numa risada. Uma risada daquelas de cinema, de filme sobre mitologia, quando um deus poderoso se mostra rindo das bobagens que a humanidade produz. Ivan era tudo isso: mitológico, sorridente, engraçado.
Sou – recuso-me à perfeição pretérita – amigo de Ivan desde que soube de sua existência, por intermédio de meu falecido pai, seu amigo. Ivan foi aluno de minha avó Emília, a quem não conheci em carne e osso. O que isso quer dizer? Para muitos, nada, mas sempre senti que havia algo de familiar em nossa distância de 33 anos, algo que eu nunca poderia presumir, mais tarde, ser tão fundamental e humano. Aliás, esses são, a meu ver, os adjetivos que definem Ivan Borgo: fundamental e humano. Uma peça essencial a essa engenharia que é vida, e sempre será. Vá em paz, meu amigo!