Assisti ao filme A Primeira Tentação de Cristo, do grupo humorístico Porta dos Fundos. Eu já havia assistido a Se beber, não Ceie, do mesmo time. Este último não é grande coisa: algumas das piadas são previsíveis (algo que é mortal para o gênero) e Fábio Porchat é bem chatinho – ao menos no papel de Jesus entupido de goró. NA Primeira Tentação… ele está ótimo, não somente como homossexual , mas principalmente como Satanás: o que, para muita gente, é a mesma coisa. Mas não é exatamente sobre o filme que quero falar, e sim sobre a reação de muitos religiosos sobre algo cujo objetivo é apenas fazer rir, penso eu.
Um amigo narrou-me o fato: numa de suas madrugadas, insone, deparou-se com um televangelista de chapéu de cowboy, que, calmamente, afirmava a seu público uma propriedade que até hoje não vi num mamífero. Ele dizia que, quando marinheiro, fora vítima de um naufrágio, e, à deriva, no mar, um tubarão havia-lhe devorado uma das pernas. Deus, em sua misericórdia, fez a perna crescer de novo. Ainda segundo meu amigo, o tal pastor falava e uma turba de fiéis dava-lhe atenção como se estivesse diante do Nazareno em pessoa. Indignei-me com este absurdo: o uso da fé sobre pessoas que lamentavelmente não têm instrução necessária para saber a diferença entre um homem e um anelídeo. O que fez meu amigo? Em vez de atirar pedras no pastor ou na sua igreja, mudou de canal. Mas, e se pudesse atirar?
A produtora do Porta dos Fundos foi vítima da violência e da intolerância: coquetéis molotov foram lançados contra seus aposentos. Muita gente se sentiu ofendida – e com razão, se se levar em conta que sentir-se ofendido é algo subjetivo. Cada um sabe como lidar com a própria fé, seja elevando-a ao patamar de prioridade, seja mantendo com ela uma relação, digamos, mais amena, com menos fervor. Sentir-se ofendido dá direito à forra? Em minha opinião, sim, mas não posso afirmar que a produtora do Porta dos Fundos tenha dirigido o média metragem a um determinado grupo, ou a uma pessoa específica. Por exemplo, ao pastor da perna regenerada. Duvido! De modo que o mais eficaz protesto contra o filme é não assistir a ele. Pode-se, por exemplo, cancelar a assinatura da Netflix. Alguns têm dito que o fizeram.
Há coisa pior na tevê do que fazer piada sobre a fé. Fazer uso dela para enganar o próximo – principalmente quando esse próximo é desprovido de senso crítico – é algo que, a mim, parece ser mais nocivo. A simonia, uma prática medieval que consiste em comercializar a fé, deve ser avaliada como algo atualíssimo, na ordem do dia. Há muito mais gente honesta que desonesta no meio religioso – disso não tenho dúvidas, mas como se portar diante de um líder religioso que consegue, por meio da fé, vender seus produtos e, após a venda, garantir ao comprador um cantinho no Paraíso?
De volta ao filme: minha pergunta é simples: por que um Jesus gay ofende tanto? Um Jesus fornicador, agiota, bandalho, corrupto, bêbado seria menos deletério? O problema não é o humor em si, não é a piada, mas a questão sexual: um Jesus gay ofende mais – ponto final. Sexualizar a Santidade é perigoso. E contra essa postura – perdoem-me o trocadilho – até os deuses lutam em vão. Ainda penso que o debate é necessário, não necessariamente para que se chegue a uma conclusão, mas para que se possa pensar criticamente num assunto que quase sempre está imune à dialética. Eu, católico, achei o filme engraçado, boas tiradas, diálogos ligeiros. Enfim, há gosto para tudo. Intolerância também.