Filmes (re)vistos #11: Interestelar, 2014

Assisti, mais uma vez, ao já clássico Interestelar, do inglês Christopher Nolan. É filme para ser revisto por quem não domina a ciência como um estudioso da área física, astronomia e aproveita, desse modo, para tentar, mesmo que superficialmente, compreender aspectos técnicos acerca de buracos negros, velocidade da luz, gravidade, espaço-tempo e buracos de minhoca. Se não compreende, não importa: a diversão fala mais alto. Há, claro, o aspecto que me chamou a atenção e que me faz rever o filme, sempre que possível: a relação pai/filha. E dentro desse aspecto, a ideia de que somente o amor e a gravidade são ferramentas capazes de atravessar as dimensões.

Tudo no filme funciona: desde a tragédia provocada pela burrice humana, que despreza a fragilidade que ela própria causou ao ambiente, até os toques de bom humor na relação entre ser humano e robô. O retorno a uma sociedade agrária faz com que o mundo esqueça os exércitos, a ciência e o entretenimento. O que vale é produzir alimentos para amenizar o desespero provocado pelo iminente fim do mundo. Vale, por isso, tentar encontrar um novo lar para os habitantes da Terra condenada, que sufoca por conta por conta da estranha e densa poeira cotidiana provocada pela irresponsabilidade dos homens.

Interestelar é, no fundo — e no raso também —, uma história de amor e preservação. É o pai que, ao perceber o interesse da filha de 10 anos por ciência, estimula-a a buscar respostas, a avaliar as possibilidades, a enxergar o que não está evidente. É ele quem terraplena o terreno inicial pelo qual ela vai transitar até chegar, com o próprio talento e esforço, à resposta que salvará a humanidade. É o amor que ele sente por ela — e que é recíproco — que estabelece a comunicação dimensional, o diálogo que ultrapassa qualquer barreira temporal. Não há como não se emocionar quando pai e filha se encontram.

Gosto de filmes de ficção científica. Escrevi sobre o meu preferido: O dia em que a Terra parou, de Robert Wise, feito há 74 anos. AQUI você pode ler, caso queira. É um filmaço: aventura, filosofia, pacifismo e pavor de que uma sociedade mais avançada faça conosco o que fazemos com os animais. Há uma refilmagem, de 2008, com Keanu Reeves e Jennifer Connelly que é melhor deixar pra lá. E por falar em mulher bonita, em Interestelar há a presença de Anne Hataway — que é, claro, uma belezura de aplaudir. Se você não gosta de ficção científica, assista ao filme para vê-la, ao menos.

Vida Boêmia: Lush Life, o filme

Filmes sobre jazz geralmente satisfazem tanto o espectador comum quanto o aficcionado por música — mais ainda, claro, aquele que considera o jazz um ritmo essencial, o que é meu caso. Bird, de Clint Eastwood, e ‘Round Midnight, de Bertrand Tavernier, são filmes que versam sobre artistas autodestrutivos que, sem a música, teriam pulado da ponte mais cedo, sem que o mundo tomasse deles pleno conhecimento. As vidas conturbadas de Charlie Parker e Bud Powell, respectivamente reproduzidas nos filmes citados, oscilaram entre a genialidade absoluta e o desespero existencial, o que sobrecarregou as películas de uma dramaticidade angustiante.

Não é o caso de Vida Boêmia, de Michael Elias, um diretor tão apaixonado por jazz quanto Eastwood. Seu filme (originalmente feito para a tevê) também não é impactante do ponto de vista estrutural, mas a história não desagrada ao espectador mais exigente, que se vê diante de uma dupla de músicos — um saxofonista e um trompetista — que têm amor ao jazz na mesma proporção que amam viver. Ironicamente, um deles está condenado à morte por conta de um tumor cerebral. O outro, para celebrar-lhe a vida que resta, resolve fazer uma grande festa em que todos os músicos de jazz de NY comparecem — todos, sem exceção, o que causa um enorme problema para os night clubs da cidade.

Forrest Withaker — que já havia encarnado Parker no filme Bird cinco anos antes — interpreta o trompetista por cuja porta a morte quer entrar, mas ele se recusa a atender, de imediato. Antes, quer o jazz, e quer executá-lo tendo em mãos um trompete que pertencera a Clifford Brown, comprado numa loja de penhores por 2.500 dólares por um talentoso garoto aspirante a músico. Assim é o jazz: quem faz leva-o a consequências últimas. E por falar em amor a ele, uma outra história — periférica — é retratada na película: a dificuldade de se relacionar com um artista. A mulher do canastra Jeff Goldblum (o saxofonista garanhão) é uma professora que quer ter uma vida normal ao lado do marido, quer desvencilhar-se da lush life que o companheiro leva. Não é possível. Assim é o jazz.

A propósito: revi esse filme anteontem, na tevê. Busquei na internet o devedê ou o blu-ray que, acredito, não foram lançado por aqui, mas aí vai, ao lado, seu rosto. E o link, no Youtube, com legendas en español. A propósito 2: John Coltrane lançou, em 1957 — dez anos antes de morrer —, o álbum Lush Life, hard bop da melhor qualidade com um time grandioso de músicos: Don Byrd (trompete), Red Garland (piano), Earl May (baixo), Paul Chambers (baixo), Albert Heath (bateria), Art Taylor (bateria) e Louis Hayes (bateria). Não, não estão tocando todos juntos, como na tal festa do filme. O tema Lush Life foi composto por Billy Strayhorn e já foi interpretado por uma multidão de músicos. Clique AQUI para ouvi-la pelos dedos do extraordinário pianista Phineas Newborn.

Aretino, Linda & o sexo

A literatura erótica – e sua irmã mais ousada, a pornográfica não é, sob qualquer hipótese, uma literatura menor. Quem aprecia as boas histórias, e também os bons poemas e dramas, sabe disso. Quem não aprecia também sabe e por isso mesmo se opõe ao tema. Sexo é fundamento. Sem ele, meus seis ou sete leitores não existiriam, não poderiam discordar do que será lido nesta postagem. A propósito, sem o sexo eu também não existiria, de modo que o texto que se lê relaciona-se ao tema de forma quase hereditária.  Além de outras formas de se relacionar com ele, sexo também é bom de se ler.

Tenho lido sobre o assunto: penso em escrever um texto pornográfico — daqueles para valer, sem constrangimentos. A pornografia é o sexo sem vergonha de si mesmo, é a desnecessidade de afeto, que despreza jantares, presentes, alianças, futuro, jogos de poder. No meu livro de contos Todas Elas, Agora, de 2013, cheguei a ensaiar o tema, mas não produzi nada que não pudesse ser lido por um seminarista, embora eles possam negar isso e me enviar à eternidade infernal. Literatura pornográfica — ou sua irmã aristocrática, a erótica — é a libertação de grilhões tanto linguísticos quanto de enredo. 

Por que falo do assunto? Porque anteontem, 20 de abril, foi aniversário de Pietro Aretino, poeta pornográfico italiano que enriqueceu trocando sacanagem por diamantes. Sim, isso mesmo. Às senhoras nobres e assanhadas da Veneza e da Roma do século XVI enviava poemas licenciosos e, em troca, enchia os bolsos de preciosidades. Protégée dos Médicis e do Papa Leone X , era inatacável, de modo que se divertia sem que qualquer autoridade lhe perturbasse os modos. Ficou milionário comercializando luxúria. Seus sonetos luxuriosos são uma beleza de se ler.

Escrevo também porque hoje, 22 de abril, faz 23 anos que Linda Lovelace deixou este mundo, após um acidente automobilístico. A lendária atriz protagonizou quem se lembra? Deep Throat, ou Garganta Profunda, possivelmente o filme pornográfico mais icônico da história do cinema. Soube-se, alguns anos depois, que fora forçada pelo marido perverso, muitas vezes sob ameaça de tortura física, a participar dos filmes. Sofreu um bocado. Convertida à religião, algum tempo depois, tornou-se ativista antipornografia. Ei-la, abaixo:

Há um filme sobre sua vida, intitulado Lovelace, de 2013. Amanda Seyfried faz o papel principal, e o marido cruel e canalha fica por conta do sempre excelente Peter Sarsgaard. Vale checar, se houver interesse.

Chico aos 31; Bethânia aos 26

Para muita gente, Maria Bethânia é a melhor intérprete da MPB. Não entro no mérito se é ou não a melhor cantora mas, repito, é a melhor intérprete. É sensual, positiva, dramática, divertida, carismática. E sabe cantar, usando extraordinariamente bem o privilégio de ser contralto. É afinadíssima, e parece, num palco, ser tão absoluta quanto única. Faz isso há 60 anos, desde o compacto em que brilhou cantando Carcará, de João do Vale. Eis o que quero dizer: é uma cantora estável e criteriosa, que escolhe seu repertório com lupa e bom gosto. É a maioral a voz brasileira viva.

Para outros tantos, Chico Buarque é o melhor compositor brasileiro na MPB. Não tem rivais, apesar de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo e Belchior terem produzido canções tão espetacularmente  imortais quanto as dele. Chico é hábil, ligeiro, lírico, malandro, letrista de primeira assim como sambista de excelência. É provavelmente o melhor intérprete de suas canções, e há quem, não sem certo equívoco, diga que ele canta mal. É afinado também, e muito. Hoje canta menos, porque infelizmente tem se dedicado a escrever romances. Uma pena. Nasceu em junho, assim como Bethânia, e, naquele mesmo mês, há 50 anos, juntou-se a ela para um show antológico: Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo.

É o melhor disco ao vivo que conheço, na MPB. O Chico sambista acompanha os outros Chicos; a Bethânia sóbria desaparece, mesmo quando canta a belíssima Camisola do dia, de Herivelton Martins e David Nasser, ou Sonho Impossível, na versão de Chico. É feroz ao interpretar Raul Seixas, em Gita, ou o próprio companheiro de palco, em Sem Açúcar. A voz, mesmo sem muito alcance, está a serviço da interpretação dramática e certeira, emotiva na medida necessária. É, ao lado de Elizeth e de Elis, a grande intérprete da música brasileira. Engole o enganosamente tímido Chico, ao cantarem juntos, no desfecho do show, Quem te viu, quem te vê, Noite dos Mascarados e Vai Levando. E, claro, a extraordinária Sem Fantasia.

Chico Buarque & Maria Bethania Ao Vivo: Amazon.co.uk: CDs & VinylFalei do sambista Chico? Pois é seja por meio de suas canções, ou de obras alheias, o samba manda o recado. Olê, Olá, Gota d’água e Notícia de Jornal (de Haroldo Barbosa e Luís Reis) são homenagens do compositor ao gênero que o consagrou. As obras-primas Flor da Idade e Bem-querer, ambas do drama em versos Gota D’água sua parceria com Paulo Pontes são pontos altos do show. Ah, claro: e há um ponto mais alto, a meu ver: Sinal Fechado, obra singularíssima de Paulinho da Viola, é levada pelos dois, num diálogo que deixa qualquer fã de música mais feliz. Vale ouvir todo o disco. E, antes que eu me esqueça, parabéns adiantados aos 3 envolvidos na postagem.

Edward Hopper & a poesia

Se Sam Peckinpah estrela de uma postagem recentíssima foi chamado por mim de poeta da violência (mesmo sendo cineasta), Edward Hopper, um dos meus pintores favoritos, é o poeta da solidão. Espero que meus sexto e sétimo leitores compreendam que a poesia pode estacionar em qualquer arte e fora dela. Sabem também, claro, que a poesia (também) está em quem olha e vê, e não somente em quem a presumivelmente produz. Falemos, então, de Hopper. Se você nunca ouviu falar dele, deve, ao menos conhecer esta tela, cujo título é Nighthawks, de 1942:

Os críticos diziam que Hopper representava a vida moderna norte-americana, marcada pela angústia da recessão, das guerras e dos conflitos internos. Isso é balela, quase clichê o que resume mal o artista e a obra per si. O olhar de Hopper mostrava o quase óbvio: os sentimentos, os arroubos românticos, o erotismo e o afeto são elementos secundários. Não contam porque o ser humano é um solitário por princípio, está por conta própria: vê a solidariedade e o companheirismo como substantivos distantes, quase nulos. É cada um por si e Deus contra todos.

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Natureza e civilização distanciam-se nas telas de Edward Hopper. Esse novo realismo prioriza os elementos concretos, distantes do elemento bucólico, ao mesmo tempo que, influenciado pelos impressionistas, cria uma atmosfera cuja estética privilegia as mesmas cores e, em muitos casos, as mesmas formas daqueles artistas. A obra acima, denominada Autômato, de 1927, revela tal influência – de Renoir a Pissarro, passando por Manet e Sisley. Todos parecem presentes. Mais do que uma influência, Hopper parece homenagear os grandes mestres. Abaixo, Soir Bleu, de 1914: todos juntos, mas solitários.

Janela do Hotel 1955

Talvez valha a pena saber: a vida de Edward Hopper era monótona, simples. Viajou pouco (esteve na Europa duas vezes, mas nada muito longo), viveu a vida inteira com a mesma mulher que também era pintora e que dava pitacos no trabalho do marido. Viveram com razoável modéstia por opção, possuindo apenas uma casa de campo, que funcionava também como ateliê. É possível que a aparente simplicidade dos seus quadros seja reflexo da forma como enxergava a vida e a si mesmo. Acima, Janela de Hotel, de 1956

Hopper era minucioso. Preparava, durante meses, os esboços para uma nova obra. Pacientemente corrigia o que considerava excessivo. Não era pragmático, mas infinitamente preocupado com a exatidão do que queria expor. Olhar para seus quadros é perceber a poesia que há na combinação entre ambiente, luz e personagem. Um poeta tarimbado poderia, claro, criar belas obras transformando em palavras as cenas que Edward Hopper produziu. Resta saber se isso é realmente possível. Capturar a atmosfera é talento de poucos — e a atmosfera desse grande pintor não é tão fácil de traduzir. Abaixo, a fera com cara de mau.

Landis, a diversão

Considero John Landis um craque. Falei isso há 40 e poucos anos, quando assisti a dois de seus filmes, em edições piratas para videocassete. Quais filmes? Clube dos cafajestes sobre o qual já escrevi e Os Irmãos Caras-de-pau (terrível título em português para o ótimo The Blues Brothers). Eis uma questão: comédias são vistas pelos intelectuais como filmes menores, que não provocam reflexões, que não nos trazem ferramentas para encarar a realidade, que não dinamitam nossas frágeis e provectas convicções. Já ouvi psicanalista dizer que o filme bom nos angustia.

Depois disso, procurei não perder qualquer filme no qual estivesse envolvido. Aliás, faço cá uma confissão: passei a valorizar a figura do diretor a partir de John Landis. Tudo bem, eu era um garoto de 20 anos, para quem o cinema era somente diversão. No caso de Landis, o verbo divertir é amplificado, levado ao extremo mas sempre contando uma ótima história. Afinal, não é disso que se faz o cinema? De boas histórias? John Landis aprecia homenagens: fã de Frank Capra, fez o ótimo Trocando as Bolas; entusiasta dos filmes de Lon Chaney, fez o divertido Um Lobisomem Americano em Londres. Sente-se um devedor dos grandes nomes do cinema — à frente ou não das câmeras.

John Landis: «Aujourd'hui, un tiers de mes films ne pourraient plus exister» – Libération

Landis veio do cinema independente, assim como vários grandes nomes do cinema. Não teve o status de um Coppola, de um Kubrick ou de um Scorsese — nem a popularidade e a influência de um Spielberg. Talvez porque tenha feito questão de ir por outro caminho, encarando o espectador como alguém que deixou o conforto do lar para, na sala escura, e por duas horas, refestelar-se com atuações divertidas e histórias bem armadas. Ok, antes que se ressalve: Landis fez Os Três Amigos e Oscar – minha filha quer casar. Neste último, a ousadia chegou ao limite: Stallone como gangster sem dar sopapos em ninguém. Pois é: não são bons filmes. Divertem pouco.

Escrevo sobre John Landis porque, zapeando como um desocupado diante da tevê, deparei-me com The Blues Brothers 2000. Sem o brilho do alucinado John Belushi, mas com um John Goodman inspiradíssimo, e uma ótima trilha sonora, o filme cumpre o que promete, que é justamente o mote desta postagem. Landis é, sim, um craque nas telas, mas muita gente só o conhece porque ele dirigiu o absurdamente famoso videoclipe Thriller, com Michael Jackson dançando e virando bicho. É divertido também — mas John Landis fez muito mais que isso. 

A água funda da Sra. Guimarães

Quem é a grande escritora brasileira? Rachel de Queiroz? Clarice, Conceição Evaristo? Cecília, Hilda Hilst, Lygia Fagundes, Nélida Piñon? Primeiramente, não se deve, sob hipótese alguma, comparar uma com a outra, embora o superlativo melhor já embuta, em seu ventre, a comparação. Tudo bem: vamos em frente. Entre tantas escritoras mencionadas neste parágrafo ou não , fico com Ruth Guimarães, autora do brilhante Água Funda. Mulher preta num mundo de homens brancos (o Modernismo brasileiro), rivalizou, em linguagem e tema, com o totem João Guimarães Rosa. Encarou o mineiro com potência.

Ruth Guimarães: a primeira escritora brasileira negra conhecida nacionalmente - Lab Dicas Jornalismo

Li Os filhos do Medo, que chegou a mim numa cópia xérox, pirata, nos anos 1980, quando apenas os iniciados – coisa que eu não era a conheciam. Um tempo depois, talvez uma década, assisti a uma palestra de Alfredo Bosi, na USP, sobre a chamada fase 3 do Modernismo brasileiro: e lá estava Ruth Guimarães, metonímica. Bem podia estar lá em pessoa (como disse o professor Bosi), já que, ainda viva, beirava os 70 anos. Foi enaltecida com justiça, e nessa palestra, ouvi pela primeira vez elogios à obra Água Funda, um romance marcado pelo realismo mágico, que fez a cabeça de uma geração antes da minha.

Água funda | Amazon.com.brÁgua Funda é uma maravilha, um clássico, um livro para ser lido e relido. É a obra-prima. É o mundo caipira que se funde à linguagem musical: é o coloquial em namoro com o erudito. E isso tudo de forma a criar no leitor tanto a curiosidade pela trama quanto o embevecimento diante da forma de narrar. Há humor, angústia, tragédia, sexo, misticismo, fé, moralidade e dor. O que escapa a Ruth Guimarães? Nada. É um romance completo, se é que isso existe. Bem, se existe, eis aqui o exemplo.

Ruth Guimarães é chamada escritora afro-brasileira. Isso me soa resumitivo, embora necessário. Ela vai além, muito além do que representa a etnia, embora seja fundamental mostrar que uma mulher negra foi capaz de fazer grande literatura. Suas herdeiras, como Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro e Sueli Bispo, compreendem essa necessidade. Eu também assim como compreendo que esse espaço de escritora negra é uma conquista, mas não definitiva. É preciso continuar a produzir, e divulgar essa produção. E, se puder, ler Ruth Guimarães.

O poeta da violência, aos 100 anos

Se Sam Peckinpah estivesse vivo, teria feito cem anos ontem, 21 de fevereiro. É um dos grandes do cinema, a meu ver. Claro, claro: intelectual que se preza aprecia os cinema europeu, iraniano, paquistanês, e agora, o coreano. Eu ainda acho que o cinema norte-americano produziu o que de melhor houve entre 1940 e 1970. Não sou papalvo. É evidente que reconheço o valor de Antonioni, de Truffaut, de David Lean, de Saura, de Buñuel e de mais um batalhão de cineastas que ajudaram a moldar o século XX. Há, entretanto, os norte-americanos, tão demonizados pela intelligentsia, e vistos como vendilhões da sétima arte.

E Sam Peckinpah? Bem, esse senhor dirigiu 4 filmaços, para dizer o mínimo. Sob o domínio do medo, Meu ódio será tua herança, Os Implacáveis e Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia. Violento e brutal, o cineasta implementou uma marca fílmica muito pessoal, realista, abusando no bom sentido da sensação de angústia e claustrofobia a que os personagens eram submetidos. Irônico, apresentou ao espectador o mundo não como ele é, mas como ele é concebido pela falta de escrúpulo, pela ganância e enviando as boas intenções às favas pelo ódio que o ser humano nutre por outro. Embora Meu ódio será tua herança seja considerado sua obra-prima, gosto mais de Sob o domínio do medo.

Tesouros da Sétima Arte – “Sob o Domínio do Medo”, de Sam Peckinpah

Peckinpah foi, num certo sentido, um rebelde. Era neto de um cacique paiute talvez daí seu pendor para os faroestes. A mencionada violência não é, em momento algum, louvada: ela é apenas consequência (e muitas vezes reação) das relações humanas. Ok, há um certo exagero: banhos de sangue em Meu ódio será tua herança, a multiplicação de cadáveres em Alfredo Garcia, o estupro e a matança em Sob o domínio do medo. À época, causou furor, vômitos e protestos. Se comparada com os filmes de hoje, a violência é quase pueril. Eu disse quase.

Houve uma geração hoje, senhores de 80 anos que salvou Hollywood: Coppola, Cimino, Spielberg, De Palma, Lucas, Scorsese, Altman e, claro, Peckinpah. Quase todos sofreram nas mãos dos produtores, mas alguns sofreram mais. Pat Garret e Billy the Kid penou nas mãos de Gordon Carroll, o manda-chuva que tentava mostrar, em vão claro! , como Sam devia trabalhar. E olhe que Peckinpah, oriundo da tevê, era especialista em westerns! Conseguiu até fazer Bob Dylan atuar! O cinema norte-americano, hoje, tem lampejos de genialidade, mas vive certo marasmo mesmo gerando milhões nas bilheterias. Falta um Sam Peckinpah para chacoalhar a indústria.

Pedro: poeta & bispo

A segunda vez que ouvi falar de Dom Pedro Maria Casaldáliga foi ao ouvir, assim que veio ao mundo, em 1982, o disco Missa dos Quilombos, de Milton Nascimento. É um disco de rara beleza, de temática social e cristã, gravado na Igreja de Nossa Senhora dos Homens, em Minas Gerais. É, de fato, uma missa musical, estruturada para ser primordialmente ouvida. Mas não é sobre Milton que quero falar e sim sobre um dos parceiros (o outro é Pedro Tierra), o bispo católico nascido na Espanha era catalão e naturalizado brasileiro, defensor dos direitos humanos, taxado de comunista por invasores de terra, que o juraram de morte.

E quanto à primeira vez? Também com a participação de Milton, no encarte do disco Sentinela, de 1980: um dos melhores discos desse artista extraordinário. Mas repito: Milton, nesta postagem, é secundário. Em primo plano está o bispo, a figura ímpar, o ativista, para muitos o santo (epíteto que sempre descartou, sem qualquer falsa modéstia). Religioso e hábil com as palavras, um herdeiro de Vieira, célebre orador. Casaldáliga, humanista como o padre seiscentista, indignou-se com o tratamento aos povos nativos, originários – antigamente chamados de índios. Dedicou-se, de corpo, alma e palavras, a defendê-los. A eles e aos trabalhadores rurais, que carinhosamente o chamavam de Pedro. Ei-lo:

Evangelizou sem colonizar, porque sabia que eram termos excludentes. Foi um poeta social, para quem as palavras deveriam servir à liberdade, à justiça, à luta. É, nessa seara assim como Pe. Antônio Vieira, mais uma vez autor de Versos Adversos, dentre vários textos. Se quiser ler, AQUI você consegue. O prefácio é de um dos meus ídolos literários, o professor Alfredo Bosi. Para muitos, a religião, algo limitador, é incompatível com a arte elemento libertador. Não sei. Sem a religião, o que seria da obra de Bach, de Vivaldi, de Palestrina? Essa questão fica para depois.

VERSOS ADVERSOSSua poesia é contundente, ao mesmo tempo que lírica. O domínio da palavra é tão evidente quanto a fé que, edificada, alicerça sua visão de fraternidade, amor ao próximo, luta contra a desigualdade e em prol da paz entre os homens. Ele sabe, entretanto, que a paz é consequência do ânimo e da união. Sabia o que estava dizendo, e o dizia de forma simples, sem arroubos sentimentais ou arabescos verbais. Era um poeta em sua essência: vivo para quem metonimicamente o ler. Hoje, 16 de fevereiro, ele faria 97 anos. Ave, Pedro!

Augusto nasceu na época errada

Augusto Frederico Schmidt é poeta moderno, morto há 60 anos, num dia 9 de fevereiro. Nasceu na época errada, porque, enquanto modernista, participou do mesmo grupo em que Carlos Drummond, Cecília Meireles e Vinícius de Moraes reinaram quase absolutos. Só não foram absolutos porque Jorge de Lima e Murilo Mendes estavam lá, para incomodar. Pois é: como sobressair ou sequer ser notado quando seus pares são quem são? Sem contar que a poesia dessa época ainda sofria com a ascensão da chamada Prosa de 30, com Jorge Amado, Graciliano Ramos e Érico Verissimo fazendo grande literatura.

Augusto, entretanto, sobreviveu. Fez a poesia melancólica do Modernismo, próxima de Drummond, mas ainda mais intensa. Fez a poesia de quem via o amor como falta, tendo a saudade como consequência, e o sexo como ausência. Tinha muito de Romantismo e Simbolismo, mesmo modernista. Mário de Andrade criticava-o, porque não via modernidades em sua poesia, como se o elemento moderno fosse a base estética para a grande poesia da época. Augusto Frederico Schmidt, aos olhos de muitos modernistas, nasceu velho. Talentoso, mas serôdio.

Li há poucas semanas alguns poemas de Mar Desconhecido, seu livro publicado no início dos anos 1940. É poesia confessional, um tanto adolescente, que não agrada a ouvidos e olhos de quem desemboca como eu num João Cabral ou, mais tarde, num Roberto Piva. Os versos livres se misturam à métrica; os versos brancos estão lado a lado com rimas bem postas, intencionais é claro! É um sonetista de primeira linha, herdeiro de Guilherme de Almeida e, antes, de Alphonsus de Guimarães. Descambou para a poesia cristã, assim como fizeram os já citados Murilo Mendes e Jorge de Lima, mas aí perdeu a mão. Fez uma poesia careta e sem brilho.

Augusto Schmidt e o Galo Branco

Há certo erotismo, um tanto contido talvez pela expressividade cristã de seus poemas. Mesmo assim, a figura feminina é desejo e é morte, elementos teoricamente díspares, mas nem tanto, porque os psicanalistas fazem dessa dicotomia uma festa. Augusto Frederico Schmidt tem seu valor, e tal valor seria mais celebrado se tivesse feito poesia 40 anos antes, quando Cruz e Sousa conflitava com Bilac et caterva. Teria sido um bom companheiro para uma poesia que, no mundo, foi poderosa, e no Brasil teve vida curta. No fundo, Augusto era um simbolista no corpo de um moderno. Ainda assim, os compêndios literários mencionam-no com a devida e merecida frequência. Eis uma palinha de Elegia:

                                     Tua beleza incendiará os navios no mar. / Tua beleza incendiará as florestas.

                                     Tua beleza tem um gosto de morte. / Tua beleza tem uma tristeza de aurora.

                                     Tua beleza é uma beleza de escrava. / Nasceste para as grandes horas de glória,

                                     E o teu corpo nos levará ao desespero (…)

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