Heavy Metal, a revista

Pin em REVISTA HEAVY METALE quando Heavy Metal deixa de ser um subgênero do rock e se torna um clássico da graphic novel – para nós, quadrinhos? E quando figuras como Moebius, Enki Bilal e Milo Manara (sobre quem já escrevi) tornam-se mais importantes e significativos do que Bruce Dickinson, Angus Young e Tony Iommi? Para muita gente, os quatro primeiros citados valem muito mais que a barulhada que os três roqueiros, também citados, produzem. Bem, é questão de gosto, além de compreender que ver é melhor que ouvir.

Ouvi falar na Heavy Metal ao folhear um exemplar de El Vibora, revista espanhola que, infelizmente, não existe mais, e em cuja capa aparecia a figura misteriosa e transgressora de Ranxerox, o grotesco robô punk-humanoide apaixonado pela adolescente drogada Lubna, a quem ele protegia como fosse ela a filha de um Jesus apocalíptico. Ranxerox é filho de italianos: Tanino Liberatore e Stefano Tamburini, mas não nasceu na Heavy Metal, e sim na Cannibale, em fins dos anos 1970. Não, não conheço a Cannibale, infelizmente, mas li sobre ela. A propósito: Ranxerox é esta figura, abaixo (e que tem revista própria, todinha dele):

RanXerox And Lubna Tanino Liberatore T Shirt

Quando a Heavy Metal foi publicada em português – meados de 1995 -, pouca gente comemorou. Um tanto quanto desconhecida do público consumidor de quadrinhos (ainda era; hoje, não mais), passou despercebida para muita gente que apreciava as boas histórias – muitas delas distopias – e os desenhos tão psicodélicos quanto geniais. Tenho todos os números da HM brasileira, além dos números especiais em que a aparece a belíssima Druuna, a heroína futurista criada por Paolo Serpieri. Druuna é uma beleza mesmo. Confira:

BigWowArt.com, Comic Art For Sale

A edição brasileira da Heavy Metal bateu as botas sem aviso prévio. Foi de repente, deixando um punhado de órfãos sem saber o que fazer, alimentando a vã esperança de que bons ventos soprassem novamente. Não rolou. A revista norte-americana existe até hoje, publicando histórias de ficção científica pouco edificantes, cheias de sensualidade, de horror, de personagens neuróticos e mulheres de beleza inequívoca. Há um filme – homônimo -, canadense, que reúne várias histórias que brotaram na revista. A trilha sonora é tão pesada quanto a película: da voz de Sammy Hagar ao som alucinado do Black Sabbath. AQUI você assiste ao trailler. Desfrute!

At the Village Vanguard, o livro

Livro: Ao Vivo no Village Vanguard - Max Gordon | Estante VirtualLivros sobre música – todos os gêneros possíveis – pululam nas prateleiras das poucas livrarias. Há de tudo: desde biografias de músicos e bandas até manuais de como aprender a tocar instrumentos: do violoncelo à shakuhachi. Todos os gostos são contemplados – o que me tranquiliza, pois o jazz, o rock, a MPB e a música clássica são gêneros que parecem vender bem, já que há títulos em abundância. Em deles é Ao Vivo no Village Vanguard, de Max Gordon. Quem é Max Gordon, afinal? É proprietário da mais tradicional casa de jazz dos Estados Unidos – o Village Vanguard do título. 

Estive lá, nos anos 1990. Assisti a uma apresentação de David Murray, o sopro mais vigoroso desde Benny Golson. Paguei os olhos da cara, tomei duas doses de uísque e não comi nada, porque não se come no Village Vanguard. Bebe-se, fuma-se e ouve-se. Mas quero falar do livro. Max Gordon dá o ritmo, trazendo histórias sobre as figuras que se apresentaram na casa. Do espetacular saxofonista cego Roland Kirk a Dannie Richmond, baterista de Mingus que, emocionado após a morte do amigo, vai até o Village para uma conversa.

Há mais: Sonny Rollins fugindo do palco após metade de uma extraordinária execução; um retrato de Miles Davis, o gênio temperamental, e cantoras do calibre de Anita O’Day e Dinah Washington. Ok, não é apenas música. Há, por exemplo, um capítulo delicioso sobre como Max Gordon usou as segundas-feiras – dias em que o Village não funcionava – para reunir um grupo e conversar sobre qualquer assunto, desde que polêmico. Há apresentações de blues, há um capítulo para Lenny Bruce, o comediante em seu estandape.

Bar Village Vanguard em Nova York - 2023 | Dicas incríveis!

O Village Vanguard é, contudo, uma casa de jazz. É uma grife poderosa: muitos músicos tarimbados apreciavam fazer um disco com a chancela Live at Village Vanguard. Vou citar alguns medalhões: Sonny Rollins, John Coltrane, Bill Evans, Dizzy Gillespie, McCoy Tyner, Bobby Timmons, Wynton Marsallis, Art Pepper, Mal Waldron, Miles Davis. Bem, a lista não cabe na postagem. Vale a pena ler? Claro, desde que você goste de boa música e que aprecie um bom papo sobre ela. Se você se interessou em ler esta postagem, está nessa categoria de leitor. Aproveite, portanto!

Sem Bruce (há 50 anos)

 

No último 20 de junho: o cinquentenário de morte de Bruce Lee. Sou fã, e já disse isso. Certo, certo: era um péssimo ator, os filmes eram sofríveis – exceção para Operação Dragão -, os coadjuvantes tinham, assim como ele, a expressividade de um copo de guaraná e as histórias não faziam muito sentido – mas e daí? Quem ia ao cinema não esperava que Mr. Lee fosse Laurence Olivier, nem que as histórias tivessem a (chata) profundidade simbólica de filmes na Nouvelle Vague. Queriam, como eu, testemunhar as cenas de ação, os chutes, os voos, a pancadaria e, claro, os uivos peculiares do maior astro de ação marcial do cinema.

Durante a adolescência, assisti a quatro dos cinco filmes que estrelou. Deixei O Jogo da Morte para bem depois, em videocassete, mas as películas que estrelou como Dragão nos cinemas brasileiros foram vistos por mim com o fanatismo de um crente ensandecido. Claro: assisti a tais filmes algum tempo após terem sido feitos, até porque à época do lançamento da primeira aventura eu tinha apenas 9 anos. Confesso que ter assistido ao embate entre Lee e Chuck Norris nas ruínas do Coliseu, nos últimos minutos de O Voo do Dragão, foi quase uma epifania. Não conhece a cena? Duvido. De qualquer forma, AQUI está. É um show, um balé. E um gato como juiz.

Os filmes de Bruce Lee me levaram às artes marciais: lutei judô e caratê na adolescência. Nunca fui grande coisa como atleta, até porque não levei a coisa muito a sério, não obstante ter vencido alguns bons embates e faturado umas medalhinhas. Os filmes funcionavam mais ou menos como a fantasia do que eu (nunca) poderia ter sido, mas o desejo era pertinaz, embora nada se fizesse para concretizar o que se pretendia. Coisa de menino diante do herói que elegeu para modelo que não seguiu. O mesmo aconteceu com Pelé e Superman – mas isso é papo para depois.

Réquiem para Bruce Lee em Cannes - Estadão

 

Hoje, aos 61 anos, volta e meia me deparo com os filmes estrelados por Bruce – todos eles fazendo parte do plantel dos telecines da vida, sendo apresentados à garotada sem qualquer reverência ou solenidade, como se não passassem apenas de mais um filme em que um chinês enche os branquelos de porrada. Espanca também outros chineses, sem qualquer misericórdia conterrânea. Jackie Chan, Jet Li, Mark Dacascos e até Keanu Reeves (que é, na verdade, libanês e não se parece com um oriental) têm mais apelo com a meninada. Que tal perguntar aos citados senhores qual a inspiração? Tenho certeza de que concordarão em pelo menos um nome.

O poeta Magritte em 3 telas escolhidas

Sou fã de Magritte, René Magritte: belga, surrealista, morto há 56 anos num dia 15 de agosto. O gênio da raça, embora menos (re)conhecido que Salvador Dalí, que sabia como ninguém autopromover-se. Magritte, mais discreto mas tão inovador (ou mais) quanto o pintor espanhol, criou um universo próprio dentro do imenso universo surreal. Suas imagens não têm aparente sentido no mundo consciente, posto que usem a geometria e a exatidão realista. Não são o que parecem ser, e essa é a premissa surreal.

o império da luz por Rene Magritte (1898-1967, Belgium) | Museu De Reproduções De Arte

A reprodução acima tem o título O Império das Luzes, de 1954: a cena noturna sob o céu diurno. Há algo de poético no quadro, algo que brota do contraste e da simetria. Se existe um pintor no século XX capaz de aproximar poesia da pintura, este é René Magritte, admirador de Lautréamont e Rimbaud – não por acaso, poetas simbolistas franceses que influenciaram o Surrealismo. Assim como a poesia se recusa a explicar o que quer (a quem quer) que seja, os quadros de Magritte nada revelam – a não ser, evidentemente, aquilo que o observador consegue ver.

Magritte – A VIOLAÇÃO - VÍRUS DA ARTE & CIA - Lu Dias Carvalho

A Violação é uma ideia. É a subversão do valor milenar, da distinção entre corpo e face, ambos expostos e ao mesmo tempo cobrindo um ao outro. Pediram a René Magritte que dissesse algumas palavras sobre a obra, e dele receberam “é um sorriso muito antigo”. Eis a questão: o que isso quer dizer? Explicar a frase equivaleria a envenená-la, e o mesmo pode se dizer da tela diante dos olhos. Se há poesia nessa subversão, somente quem observa poderá dizê-lo.

Tempo Trespassado de René Magritte | Tela para Quadro na Santhatela

Um túnel ferroviário transformado em lareira é o tema de O Tempo Trespassado. O absurdo da tela – legítima, para o Surrealismo – funde movimento e direção, mas, para onde? A fumaça que brota da locomotiva dá a ideia de que tal movimento nunca cessará, com independência e tenacidade. Se o observador tenta transpor a ideia para o real, perceberá que a anomalia nada tem de artística. O que vale, claro, é a forma como René Magritte expõe o paradoxo. Eis aí a grande poesia.

Só por curiosidade: o título original desse quadro é La durée poignardé, que significa Tempo correndo esfaqueado por uma adaga. Bem, esse é René Magritte.

AQUI, o Musée Magritte. Aproveite!

Mr. Wilson no castelo

Grupo Companhia das LetrasFiquei assombrado ao ler, em meados dos anos 1980, O Castelo de Axel, de Edmund Wilson. Assombrado duas vezes, na verdade. Uma delas: o acúmulo de informações que esse senhor possuía sobre o Simbolismo e seu mais icônico representante, Artur Rimbaud; a outra: o tamanho diminuto do meu conhecimento acerca do mesmo tema. Claro que Wilson não fala somente do enfant terrible Rimbaud. Joyce, Eliot, Gertrude Stein, Valéry, Proust, Yeats e Villier de L’Isle-Adam são avaliados/analisados pela inteligência robusta de um dos maiores críticos literários do século XX. Você deve se lembrar dele pelo estrondoso sucesso de um livro que poucos leram: Rumo à Estação Finlândia.

Todos esses escritores citados em O Castelo de Axel criaram a modernidade nas letras. Sem eles, é provável que ainda estivéssemos tateando as paredes do século XX, ruminando o ocaso serôdio do Realismo e estapeando a estética parnasiana. Foram eles, segundo Edmund Wilson, os responsáveis por uma estética que, diante da industrialização e da materialidade, buscaram a alternativa que moldou o século em que nasci: a imaginação. É dessa literatura imaginativa, num período de 60 anos – de 1870 a 1930 -, que o livro trata.

O Castelo de Axel - Edmund WilsonAo ler, pela primeira vez, eu já mantivera contato com as letras de Rimbaud, Eliot e o Joyce de Dublinenses. Cheguei a Eliot por meio de meu amigo Reinaldo, que criticara a tradução de Ivan Junqueira para The Waste Land. Sabia alguma coisa de Valéry, Stein e Yeats e ignorava solenemente Villier de L’Isle-Adam – exceto pelo poema dramático Axel, que inspirou o título do livro. Claro: há outros poetas sobre os quais versa – em especial Jules Laforgue e o sempre funestamente misterioso Tristan Corbiére. Edmund parece conversar com o leitor, mas cobra dele seriedade e conhecimento.

Não é fácil escrever sobre autores tão essenciais – e sobre suas obras. Há certo incômodo em apontar o dedo para defeitos (ou questionamento de virtudes) de obras que atravessam o tempo como ícones de um gênero literário: em especial o Ulysses, de Joyce, e Em busca do Tempo Perdido, de Proust. A segurança com que Edmund Wilson analisa autores e livros é inquestionável. E cheia de criatividade, alegria, inteligência. Wilson é tão essencial quanto os autores sobre os quais escreve.

Filmes (re)vistos #9: O Vento será tua herança, 1960

Um tipo de filme em que os americanos são imbatíveis: filmes de tribunal ou, como querem os nativos puristas, legal films. Há grandes películas, não se pode (nem se deve) negar: O Veredito e 12 Homens e uma sentença, ambos de Sidney Lumet; O Sol é para Todos, de Robert Mulligan; Testemunha de Acusação, do sempre genial Billy Wilder, e o brasileiro O Caso dos Irmãos Naves, de Luis Sergio Person. Todos grandes filmes. Há muitos outros, claro, mas nenhum – a meu ver – supera O Vento será tua herança, de Stanley Kramer, em cartaz numa dessas tevês por assinatura. E se o naturalista Charles Darwin mostraria o polegar, concordando comigo.

Vídeo: O Vento Será Tua Herança continua atual

O que Darwin tem a ver com o filme? Bem, o enredo é simples: professor de uma cidade pequena é condenado por ensinar aos alunos a Teoria da Evolução. Uma lei estadual, escrita e sancionada por criacionistas, não permite que o Evolucionismo interfira na educação bíblica dos alunos. Toda a cidade está contra o professor. Em seu desespero, e sem dinheiro para pagar um bom advogado, pede ajuda a um jornal de Baltimore – que, progressista, contrata um grande advogado para defendê-lo. Esse grande advogado é um dos maiores atores de Hollywood em qualquer época: Spencer Tracy (de cabelos brancos, na foto).

Não menos notável é Fredric March, interpretando um político oportunista que ajuda o promotor a tentar mandar de vez o professor para o xilindró. Quer mais? Gene Kelly – sim, o grande bailarino do cinema (abaixo, de colete) – faz o papel de E.K. Hornbeck, jornalista que vai cobrir, de forma cínica e debochada, o Julgamento do Macaco, como ficou conhecido o caso (verdadeiro) em que o filme se baseou. Não, Gene Kelly não dança, no filme. Está ótimo sem requebrar-se, fazendo as vezes de Henry Louis Mencken, o mais temido jornalista norte-americano da primeira metade do século XX. Já escrevi sobre ele AQUI.

Tesouros da Sétima Arte - "O Vento Será Tua Herança", de Stanley Kramer

Como sou um homem de letras, aprecio diálogos – aliás, são eles o grande trunfo do filme. A bem da verdade, filmes de tribunal sustentam-se na palavra, no raciocínio, na loquacidade, na esperteza do advogado e/ou do promotor. Bem, a estrutura da Commom Law americana ajuda esse tipo de fita, permite que as habilidades dos causídicos sejam a grande atração. Em O Vento será tua herança é isso que conta. É um embate raro de se ver nos filmes – a não ser naqueles excepcionalmente inteligentes.

AQUI, o trailer, com legendas.

Pe. Toninho, estações, top 5 etc.

“Qual o top 5 da música clássica?”, perguntou-me um aluno. Evidentemente queria uma resposta plena de subjetividade, queria ter acesso a meu gosto pessoal. Falei, com tranquilidade, que Bach, Beethoven, Mozart, Handel e Vivaldi eram os que mais me impressionavam. Fiz questão de ressaltar que meu conhecimento de música erudita é tão limitado quanto meu conhecimento de qualquer gênero musical. Esse recato singelo – permitam-me o pleonasmo! – não pareceu ter qualquer efeito sobre ele. Bem, desses 5, três são barrocos: o que mostra minha predileção. já escrevi sobre ISSO.

Listas, e eu também já disse isso, são feitas para divertir: seja quem lê, seja quem as profere. Não significam parâmetro, exceto para seu cultor. Lembro-me de ter lido Concerto Barroco, do extraordinário escritor cubano Alejo Carpentier. No livro, narrativa curta, um dos personagens é o padre ruivo – também conhecido por Antonio Vivaldi. O epíteto se justifica: era padre mesmo, mas isso não o impediu de fazer a melhor música italiana da época. E olhe que conviveu com três titãs: Corelli, Albinoni e Domenico Scarlatti – só para citar os conterrâneos.

Vivaldi morreu num dia 28 de julho, há 282 anos. Sua música comprova a teoria de que a grande arte só é grande de verdade se vencer o tempo. Atemporal, serve a quem valorizar a sensibilidade, a quem tiver ouvidos para o que é a absoluta beleza. Sua música sacra é incomparável, suas cantatas não devem nada às de Bach, o grande ás na categoria. Tenho todas as sonatas e a maioria dos motetos – tudo em cedê, quando ainda se compravam discos digitais. Hoje o streaming disponibiliza tudo. Está mais fácil, de modo que não se justifica continuar ouvindo Jota Quest.

Os concertos para violino intitulados As Quatro Estações são o que mais se conhece de Antonio Vivaldi. São provavelmente a peça musical mais conhecida da música clássica, junto à introdução de Quinta Sinfonia, do velho Ludwig. Não se deixe enganar pela popularidade: as estações são concertos magníficos, absolutamente perfeitos em sua criação, e fazem parte da Opus 8, intitulada Il Cimento dell’armonia e dell’inventione. É uma declaração de amor à natureza, à musica, à poesia. Tudo de que a arte realmente necessita. Aliás, além de oxigênio e glicose, tudo de que nós – humanos – necessitamos.

Adeus a Leny

Ouvi Leny Andrade pela primeira vez aos 25 anos, quando alguém – não me lembro quem – afirmou que ela cantava melhor que Carmen McRae, a qual eu ouvia com devoção, reverência. Indignado com a possível blasfêmia, e com a intenção inequívoca de contestar a afirmação, fui, com cautela, ouvir Estamos Aí, um elepê que a Odeon havia lançado em 1968, no qual havia duas canções de Marcos Valle, A Resposta e Banzo. Marcos Valle é uma fera desconhecida das gerações que enaltecem padres cantores, rappers, funkeiros, cantores sertanejos e que tais. Havia também gemas cristalinas como Deixa o morro cantar e Esqueça não, ambas de Tito Madi, e Razão de Viver, de Eumir Deodato e Paulo Sérgio Valle. Um discão!

Após a audição – cautelosa, repito -, fiquei em dúvida quanto à comparação com Mrs. McRae, mas cheguei à certeza de que Leny Andrade não lhe era inferior. No fim e ao cabo, para que comparar? Desde então saí garimpando discos de Leny – o que era difícil de encontrar até o advento do cedê, que trouxe, finamente, alguns de seus mais interessantes trabalhos, dos quais destaco Embraceable You, clássico dos irmãos Gershwin, em que brilham maravilhas como Stella by Starlight, Night and Day, The Shadow of your smile, The Man I Love, Misty e Autumn Leaves. É um disco de jazz, executado por uma das suas maiores intérpretes. Tenho vários outros discos dela: todos ótimos.

O vozeirão cantava tudo (em notas certas): do samba-canção à MPB; do blues à valsa, passando pelo jazz, pela balada, pelos ritmos latinos. Não conheço faixa em que ela tenha cantado rock, mas, caso o fizesse, colocaria muita gente no bolso. Leny Andrade fez fusion: jazz, Bossa Nova e samba tradicional andaram de mãos dadas, numa ciranda criativa e à base de improvisos: o que caracteriza a arte da voz. Ir de um lado a outro, de uma ponta à outra, mantendo-se firme e autêntica. Consagrada internacionalmente, respeitada por quem a ouviu, é a cantora brasileira mais reverenciada.

Leny morreu hoje, dia 24 de julho. Dependia de amigos (quase todos artistas reverentes) para tratamento de saúde. Nos últimos dois anos, fizeram-se lives de cantores e compositores, via YouTube, com o objetivo de fazer dinheiro para financiar sua terapêutica e os medicamentos. Sua música, contudo, fica para sempre para aqueles que amam o jazz e a música brasileira. Para mim, é, ao lado de Elizeth Cardoso e Elis Regina, a maior cantora brasileira. Ouvindo bem de perto, Leny Andrade supera as duas. Mais uma vez, entretanto: para que comparar, não?

Corso herdeiro de Whitman

Dos beatniks gosto de Ferlinghetti (pela poesia ousada e pulsante) e de Kerouac porque todos gostam. Não há, a meu ver, nenhum grande poeta naquela geração. São essenciais muito mais pela atitude e pela transgressão do que pelo valor literário, pela poesia pujante. Lembro-me de ter conhecido Corso et alli ao ler Alma Beat, um volume de ensaios escritos por Antônio Bivar, Eduardo Bueno, , Pepe Escobar, Roberto Muggiati, Reinaldo Moraes, Leonardo Fróes e o excelente Cláudio Willer – que traduziu o sempre difícil Lautréamont. A edição saiu pela L&PM, em 1985.

Entre 1954 e 1957, Gregory Corso escreveu mais de cinco mil poemas, segundo seu amigo e mentor Allen Ginsberg, e a maioria não prestava, não tinha vigor literário, era um emaranhado confuso de referências culturais e experiências obtidas nos orfanatos pelos quais passou na infância – sem contar o tempo na prisão durante a adolescência. Talvez isso o credenciasse a participar daquele grupo que inevitavelmente se formava no fim dos anos 1950, e que se tornaria tão famoso quanto literariamente questionável: os beatniks. Com o tempo, seu verbo se tornou mais sólido, as imagens se organizaram e a notoriedade – ao menos naquele nicho jovem norte-americano – veio naturalmente.

Fazendo uma faxina em minhas estantes – a falta de espaço obriga-me a tal -, deparei-me com um exemplar de Gasolina & Lady Vestal, do dito cujo. Não é um grande livro – até porque não conheço um grande livro beat -, mas a cuidadosa tradução de Ciro Barroso tornou o livro palatável, legível e apreciado por quem gosta de uma linguagem direta, ácida, de poucos adjetivos e advérbios bem colocados. Corso escreveu um romance (o qual não pretendo ler, intitulado The American Express) e algumas peças teatrais – todas elas com a marca linguística de sua poesia. Há em Gregory Corso muito de Richard Brautigan, a quem admiro e sobre quem já escrevi.

Apesar de Brautigan, Gregory Corso é, na verdade, herdeiro linguístico de Whitman, embora não tenha a expressividade e a relevância desse enormíssimo poeta. Os versos longos, a ausência de rima e, principalmente, a temática do humano que não compreende bem por que seus pares caminham sem rumo fazem esse novaiorquino trazer à tona a conexão entre a sensibilidade e a desilusão – aliás, uma como consequência da outra. Vou relendo Gasolina & Lady Vestal até que consiga compreender o que a realidade expressa e significa. Mr. Corso talvez me mostre, tanto tempo depois.

Filmes (re)vistos #8: O Baile, 1983

Para muita gente, Grease – ou Nos Tempos da Brilhantina – é o melhor musical já feito. Inegavelmente simpático e uma estrondosa máquina de fazer dinheiro, o filme tem um trunfo: o rock, gênero que a juventude preza e consome. Escrevi sobre musicais: quem quiser pode verificar AQUI. Mas por que estou falando sobre essa vertente cinematográfica? Porque assisti, mais uma vez – dentre tantas -, ao filme O Baile, do italiano Ettore Scola – para mim, obra-prima, daquelas que quem ama o cinema precisa assistir diversas vezes. Tenha certeza: o cansaço passa longe.

O Baile - Cenas de Cinema - Crítica do filme - Clássico

O Baile é o que é: um baile – ou seja: um evento em que música e dança unem-se para para entreter quem por ali se encontra. No caso, o filme vai além, porque seu objetivo (se é que precisa ter um) é contar a história da França a partir da união entre as duas artes citadas, conectando-as a suas causas e consequências: a cultura, o costume, o tempo, a história. A ousadia da película reside no fato de que palavras não são tão necessárias à comunicação. Música, gestos, comportamento e talento para unir tudo isso, sim.

O filme fará quarenta anos em dezembro – data de seu lançamento. Scola é craque: fez Nós que nos amávamos tanto e Feios, sujos e malvados. Só isso já lhe justificaria a celebridade, e seria suficiente para que não se sentisse na obrigação de dirigir a ótima comédia O Jantar. Voltemos, pois, ao baile. Há quem diga que, sem palavras, é impossível contar uma história. Balela de diletante, claro. Ettore Scola parte da ideia do contrário, transformando em narrador a combinação de cenário, vestimenta, gesto, expressões faciais e, claro, música. Sem legendas – porque elas são, aqui, desnecessárias -, a narrativa funciona: é poética, é engraçada, emotiva.

Cinco filmes para conhecer Ettore Scola | GZH

As referências culturais, sublinhadas pela coreografia e pelos variados gêneros musicais, são expostas como um banquete sobre a mesa: todas as iguarias juntas, mas é possível eleger aquela que mais agrada, que mais se destina ao espectador que, tenha certeza, participa, a seu modo, da atmosfera que a música e o movimento provocam. Nem tudo é alegria, claro. Por exemplo: uma das cenas mais tocantes da película é o repúdio do(a)s dançarino(a)s – que batem os pés no assoalho, repetidamente – a um personagem vestido de preto (cicatriz num dos olhos), que levanta a mão numa menção ao nazismo. Eis a resistência. Esse é Scola.

A propósito: é possível assistir ao filme AQUI.

Page 2 of 24