Castro, Jobim: textos curtos demais

Volto a Antônio Carlos Jobim – e também a Ruy Castro. Já escrevi sobre os dois, aqui, neste blogue que poucos leem. Há alguns anos imaginei que meus leitores fossem seis ou sete. Hoje já solto fogos quando alguém aparece por estas cercanias. Desabafos à parte, vamos a Tom & Ruy. Acabo de ler O Ouvidor do Brasil – 99 vezes Tom Jobim, do jornalista-escritor-biógrafo-imortal Ruy Castro. Li de uma tacada: 220 páginas com 99 crônicas – todas elas curtas – que versam sobre o maestro. Falei errado: nem todas versam. Algumas apenas citam. Lendo a introdução, o cronista foi sincero: “Em alguns [textos] a presença de tom poderá parecer de passagem.” É verdade.

Tom Jobim é realmente um craque. Uso o presente do indicativo porque obra e autor, aqui, mostram-se confundidos, metonímicos: sua obra não morre, de modo que o criador mantém-se entre os vivos. Ruy Castro também é craque, e já mostrou isso escrevendo sobre Bossa Nova, sobre Garrincha, Nelson Rodrigues, Carmen Miranda. Escreveu sobre Ipanema, sobre o samba-canção e sobre alguns selecionados artistas do século XX. Escreveu sobre filmes, sobre música e sobre literatura. É homem de repertório farto.

Em O Ouvidor do Brasil há um problema – que não se encontra em nenhum outro livro de Ruy Castro (talvez em Ela é Carioca, mas isso merece uma postagem única). O texto curto não lhe faz bem. Ele é bom quando tem tempo para escrever, quando mergulha fundo naquilo que elegeu como assunto e como obsessão. É preciso, para esse mergulho, muito fôlego – e ele tem isso de sobra. E quando é obrigado a vir à tona, para respirar e tomar sol? Os textos, publicados entre 2007 e 2023, na Folha de São Paulo, obrigaram-no a sintetizar algo que não merecia síntese. Pode ser que muitos tenham apreciado sua capacidade de falar muito com poucas palavras. Eu, não.

Ao final de boa parte das pequenas crônicas, fiquei com aquela sensação de que o autor teria feito um trabalho muito melhor caso tivesse mais duas páginas – apenas duas, não mais que isso. A linguagem de Ruy Castro se mantém clara, irônica, bem armada, por vezes mordaz. É sua vantagem e nosso privilégio. Limitá-la (e tenho certeza de que a responsabilidade é do veículo, a Folha) é um pecado. Mesmo assim, merece ser lido – afinal, quantas oportunidades temos de ver um craque falar do outro?

Jethro Tull revisitado (um prelúdio para Mick Abrahams)

Album Art Exchange - Stand Up by Jethro Tull - Album Cover ArtSe alguém perguntar – a quem gosta realmente de rock – qual a grande banda progressiva, é possível que se ouçam nomes como Yes, Pink Floyd, King Crimson e Genesis. São essas, evidentemente, e com justiça, as mais conhecidas, mais famosas. Rock progressivo é coisa de europeu, flerta com o jazz, com a música erudita, usa e abusa de sintetizadores, teclados, algumas letras são longas, os arranjos são complexos. É a parte adulta do rock: não é, em sua essência, feito para dançar nem  para servir de música de fundo. É som para se ouvir mesmo. Mas por que falo de rock? Porque acabei de ouvir Stand Up, o segundo álbum da ótima banda Jethro Tull. Está AQUI, caso queira ouvir.

Eu conheci o Jethro Tull em meados dos anos 1980, quando ouvi Thick as a brick por acidente, na casa de um amigo. Não dei muita bola, mas fiquei curioso – para dizer o mínimo – quando soube que o mesmo artista, no caso Ian Anderson, líder da banda, dava conta da flauta, do acordeão, do trompete, do saxofone e do violino. E ainda cantava, com uma voz que, se não tinha muito alcance, era marcante, singular. Apreciei e, algum tempo depois, ouvi This Was, o primeiro disco da banda. Se já apontava como destaque no rock progressivo, ainda havia uma vantagem: o guitarrista Mick Abrahams, que só tocou com o grupo neste disco. Consta que, por não viajar de avião, optou por deixar a rapaziada a ver navios.

A versão oficial é outra: diferenças criativas com Ian Anderson. Ok, então. O disco que ilustra a postagem, e que acabei de ouvir, é de 1969 – segundo álbum -, e Mick, sem alçar voo, deu lugar a Martin Barre, outra fera nas cordas, além de cuidar de muitos arranjos de canções. Há quem diga que foi o par perfeito para o líder da banda. Pode ser, mas eu ainda fico com Mick Abrahams; confesso, todavia, que Mr. Barre deu conta do recado. Ouça o disco e você perceberá isso. Há uma outra questão, que, a meu ver, valoriza o álbum: Ian Anderson, e ele mesmo afirma isso, bebeu na fonte jazzística de Ornette Coleman, de Charlie Parker e do alucinadamente criativo Rahsaan Roland Kirk.

Cinco Músicas para Conhecer: Jethro Tull sem flauta

Claro que ao ouvir o disco, mesmo en passant, qualquer um que aprecie a música vai perceber o quanto há de folk nas faixas. Jon Renbourn, do Pentagle, Bert Jansch e, claro, Bob Dylan são influências evidentes. Um tempo depois, já em fins dos anos 1990, comprei um cedê intitulado At Last, da banda de Mick Abrahams, meu guitar hero que, claro, será assunto de uma postagem só dele. Por enquanto, o Stand UP, do Jethro Tull, dá as cartas. Aprecie sem moderar-se.

Caetano, Luiz Guilherme: última palavra

Domingo após a segunda prova. Enem, 2024.

Rola um vídeo na internet em que o grande compositor e cantor Caetano Veloso resolve uma questão do Exame Nacional do Ensino Médio – o ENEM – em que ele mesmo fora citado.  Caetano não titubeia, escolhe a alternativa – e acerta. Poderia ter errado, como já aconteceu anteriormente, há uns dois anos. Eis então a pergunta de resposta óbvia: como pode o autor não saber a resposta correta sobre o texto que produziu? Resposta simples: o autor escreveu o texto, criou-o, produziu-o. O autor não o leu, de modo que a pergunta é feita para quem leu o texto; não para quem o escreveu.

Lembro-me de quando, há mais ou menos 35 anos, a UFES tornou obrigatória a leitura do romance A Nau Decapitada, de Luiz Guilherme Santos Neves. Sendo eu professor para alunos que querem acessar a universidade, preparei-lhes, como uma prova simulada, questões relativas à obra. Alguns acertaram; outro, não. Lembro-me também de mostrar as questões ao próprio autor, Luiz Guilherme que, ao tentar resolvê-las, não obteve êxito. Em bom vernáculo: errou-as. Eis mais uma vez o axioma: o autor não é leitor de si mesmo. Não possui a isenção necessária para, racionalmente, avaliar o texto.

Caetano, na verdade, avaliou uma crônica em que era citado – não um texto de sua lavra, criado e produzido por seu cérebro privilegiado, além da sensibilidade aguçada que possui ao escrever canções. O envolvimento emocional do autor com sua obra atrapalha-o, confunde-o. Tente imaginar um poeta, um escritor ou um compositor que, diante de sua criação, pergunta-se: o que eu quis dizer com isso? Ou, pior: como esse texto pode ser interpretado? Não é essa a função do artista.

De tropicalista inspirado, Caetano chega aos 70 abraçando contradições ...

Eis uma outra questão: quem tem a última palavra sobre um texto literário? Qual a interpretação tão correta quanto definitiva? Claro que interpretações pressupõem elementos que as justifiquem, mas a arte – como um todo – pode (e deve) possui inúmeras significações. Eis sua beleza e sua função: multiplicar-se em significados. Textos literários cuja interpretação não é variável correm o risco de não serem tão literários assim. Ou de serem mal escritos. Enfim, é um debate que merece atenção. Por enquanto, no meu caso, fico assim: torcendo para não precisar resolver uma questão sobre meus próprios livros.

Massaud & Machado

Discurso de recepção pelo Acadêmico Erwin Theodor RosenthalMassaud Moisés é figura obrigatória em qualquer curso de Letras, e merece – deve, na verdade – ser lido por professores, por estudantes e por quem se interessa por literatura. É um craque nas palavras, principalmente quando escreve sobre algum objeto definido: um escritor escolhido, uma obra de destaque, um gênero específico. É autor de livros seminais, como A Literatura Brasileira através dos textos, A Criação Literária e o essencialíssimo Dicionário de termos literários. Ao lado de Alfredo Bosi e Antônio Cândido, forma a tríade masculina da teoria literária brasileira.

Machado de Assis, bem, não há necessidade de que eu o apresente. O que realmente é necessário é mostrar quando essas duas figuras se encontram. Em Machado de Assis: Ficção e Utopia, um encontra o outro, e da maneira mais elegante possível. O adjetivo em itálico justifica-se, porque a linguagem de Massaud Moisés é de uma clareza tão absoluta que suas reflexões acerca do enormíssimo Machado tornam-se elegantes. É bom de se ler justamente por isso – além de, no meu caso, aprender um bocado.

Machado de Assis: Ficção e Utopia | Amazon.com.brOs ensaios contidos no livro não são inéditos. Foram publicados desde 1958 em revistas, suplementos literários – muitos deles no Caderno de Sábado, do Jornal da Tarde, na década de 1990. Recomendo a leitura de todos os 14 ensaios, mas um deles – justamente o que intitula a coletânea – é tão precioso quanto fundamental. Partindo de Brás Cubas, o notável professor traz uma ideia inédita: como o escritor-chave do Realismo brasileiro pode ser um utopista? Lá pelas tantas, ele nos diz: “Mirando-se no espelho do texto, contemplando os semelhantes transfigurados em personagens, o leitor dá-se conta da imperfeição do mundo e a um só tempo sente-se atraído pela promessa de um mundo melhor aqui na terra.” Genial.

Massaud Moisés faz o que não havia sido feito: conecta Machado a Eça de Queiroz e a Proust (que viria depois); desmistifica a oposição entre os dois Machados: o romântico e o realista; apresenta a ideia de que o adultério de Capitu é algo secundário em Dom Casmurro. E por falar em Capitu, há um ensaio sensacional em que o professor conecta Minha Vida de Menina, de Helena Morley, publicado em 1942, com a heroína Maria Capitolina. É uma das melhores coisas do livro. Bem, se você nunca leu os textos críticos de Massaud Moisés, pode começar por esse. Além de traduzir o sempre necessário Machado de Assis, dá uma aula de como pensar literatura.

Em tempo: seu nome é pronunciado “Massaúde” e não “Massô”. Ele era descendente de libaneses; não de franceses.

Tom Jobim & Jon Bon Jovi

Um querido amigo, professor no RJ, contou-me, estupefato:

“Pedi a meus alunos, todos na faixa dos 16 anos, que me apontassem um grande sucesso de Tom Jobim. Os alunos entreolharam-se, e os olhares pareciam perguntar ‘Quem é Tom Jobim?’. Eis que uma menina, mais espertinha e contumaz usuária de celulares conectados ao mundo, perguntou: ‘É esse?’, e mostrou-me uma foto – e subsequentes preciosas informações – sobre Jon Bon Jovi.” Para quem não sabe, este, abaixo, é Antônio Carlos Jobim:

Biografia de Tom Jobim revela mágoa com sucesso

Sim, caros sexto e sétimo leitores, é sério. A despeito do distante parentesco – afinal ambos os nomes possuam o, j e i, sem contar a nasalização após o fonema /o/ -, o problema não é confundir o gênio com o pop star. O real problema reside em não fazer ideia de quem é Tom Jobim. Ou pior: sequer ter ouvido falar nele. Convivo com essa realidade e, ao contrário de lamentar e pensar em suicídio, tomo-a como combustível para continuar meu trabalho. Insisto no árduo (e muitas vezes infértil) ofício de levar a essa meninada – no meu caso, pré-vestibulandos entre 17 e 20 anos – informações sobre o que vale a pena. Ou, por outra: o que eu penso que vale a pena.

Jon Bon Jovi chega aos 60 anos! Saiba quais são seus maiores hits no Brasil! |

Claro que há exceções. Dia desses, surpreendi-me: uma aluna perguntou-me se eu conhecia a cantora Carmen McRae. Pensei imediatamente em pedir a Jorge Bergoglio que, sendo ele meu xará, rezasse uma missa – no Vaticano. É uma pergunta que, dado o ambiente e o costume, chega às raias do milagre dos pães e dos peixes. Comemorei tanto que estou escrevendo sobre. Aproveitei e sugeri a ela que lesse uma postagem sobre a distintíssima e extraordinária cantora Carmen. AQUI, caso alguém, além da aluna, deseje ler.

Eis a questão: qual o papel de um professor? Entristecer-se e, sozinho, no silêncio da noite, embebedar-se? Crer-se cúmplice do desconhecimento e, então, ingerir a letal ricina, proteína encontrada exclusivamente no endosperma das sementes de mamona? Frustrar-se com a duvidosa opção dos alunos ou, sabendo dessa triste realidade, oportunizar que eles conheçam algo além do que é veiculado pela restrita web que frequentam? Creio que a opção em negrito seja a adequada. Vou em frente, sempre. Drummond tinha razão ao afirmar “Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã.” Sem heroísmos, mas cumprindo a tarefa.

Professores & Professoras em Vitrine

Em homenagem ao DIA DO PROFESSOR – 15 de outubro -, aí vão alguns vídeos do podcast Vitrine Literária com Francisco Grijó com professores e professoras ligados, cada um a seu modo, à literatura. Reitero meus agradecimentos a todos e a todas que, gentilmente, dialogaram com este que vos escreve. Agradeço também a quem assistiu aos bate-papos – ou os ouviu, porque estão disponíveis, também, no Spotify. Em frente, então: é só clicar e assistir.

E se quiser deixar um comentário, será muitíssimo bem vindo!

1. HERON MIRANDA, professor de Física e escritor.

2. LILIAN MENENGUCI, professora e escritora.

3. ORLANDO LOPES, professor e poeta

4. ANAXIMANDRO AMORIM, professor, poeta e escritor

5. RICARDO SALVALAIO e SAMIRA FREITAS, professores

6. FRANCISCO AURÉLIO RIBEIRO, professor e escritor

7. BERNADETTE LYRA, professora e escritora

8. SAULO RIBEIRO, professor, escritor e editor

9. THAÍS HELENA, professora e escritora

10. PAULO SODRÉ, professor e escritor

11. MARCELA AMARAL e PAULO SCARDUA, professores

12. CAMILA DALVI, professora e escritora

13. FERNANDO ACHIAMÉ, professor, poeta e escritor

14. JERRY TONONI, professor

15. RENATA BOMFIM, escritora e professora.

16. INÊS AGUIAR DOS SANTOS NEVES, escritora e professora

O melhor do Jazz #12: os livros

Livros sobre jazz há aos montes – ainda bem! Embora se diga que é um assunto que interessa a poucos, eu discordo. A maioria que diz não apreciar o jazz na verdade não o conhece. Ou pode ter sido mal apresentada a ele. Os cinco livros selecionados são, todos, traduzidos para o português. Dois deles foram escritos em nossa língua. Evidentemente – e eu teimo em repetir -, a lista é subjetiva, e composta somente por livros que eu tenha lido. Ou seja: é lista restrita, consumida por quem não é músico, mas por alguém que gostaria de ser.

Veja os detalhes da imagem relacionada. O JAZZ: DO RAG AO ROCK - Berendt, Joachim E.Joachim-Ernest Berendt era um incansável jornalista apaixonado por jazz. Organizou vários festivais do gênero, incluindo um dos melhores em todos os tempos: o Berliner Jazztage. Nesse livro, O Jazz – do rag ao rock, há uma análise arguta – embora resumida – de cada um dos subgêneros do jazz. Os grandes instrumentistas, os arranjadores essenciais, as inesquecíveis formações – e o mais importante: a história do jazz contada por que era um obcecado. Ao final, como um apêndice, há uma discografia selecionada que serve como guia necessário a quem ouve ou quer ouvir jazz.

Resumo - Kind of Blue - Recentes - 1O lendário quinteto de Miles Davis era um sexteto quando um dos maiores discos da história do jazz foi concebido. Kind of Blue: a história da obra-prima de Miles Davis, escrito pelo crítico e estudioso do jazz Ashley Kahn, narra, com clareza, os antecedentes e os consequentes da criação modal de um dos maiores gênios do jazz. Das fofocas aos registros oficiais, da natureza de cada um dos envolvidos no processo de concepção do disco. Mais sobre o livro: AQUI.

Capa do livroUm dos primeiros livros que li sobre o assunto foi escrito por Luiz Orlando Carneiro: Obras-primas do Jazz, que saiu pela Zahar e, 1986. Livro de didatismo inquestionável e percepção sensível sobre os grandes nomes do gênero. Um glossário, ao final do livro, com o objetivo de familiarizar o leitor com o vocabulário jazzístico, é um dos pontos altos – sem contar, claro, a abordagem crítica de um dos grandes conhecedores brasileiros do jazz.

Jazz Panorama – Wikipédia, a enciclopédia livreJorge Guinle era uma figura. Playboy riquíssimo, frequentador do jet set internacional, cicerone das estrelas de Hollywood, e apaixonado por jazz. Bem, o livro foi publicado há 70 anos – daí estar desatualizado. À parte esse pormenor, Jorge Guinle era dono de uma coleção de discos invejável, e resolveu, por conta e risco, escrever sobre jazz. Bem, teve ele a vantagem de escrever sobre muitos a quem ele conhecia pessoalmente: Gillespie, Getz, Bill Evans e Roy Eldridge eram seus amigos. Um livro ótimo, com relevantes análises de quem conhecia muito o elemento. Jazz Panorama é um título adequado, e evidentemente subjetivo.

Ainda na faculdade, ganhei, de um amigo querido, Jazz – das raízes ao rock, cuja autora é Lillian Erlich. Bem, o título original é muito mais bacana: What Jazz Is All About. Enfim, o problema de tradução é grave. Por exemplo, traduz-se o disco Live at Village Vanguard, de Coltrane, como Ao vivo na Vila Vanguarda, mas tudo bem. A despeito disso, é um livro delicioso, cheio de informações básicas (para quem não tem intimidade com o jazz) e preciosas (para quem tem). São 12 capítulos que expõem a evolução do gênero, bem como suas mudanças de caminho. O capítulo sobre o be-bop, sob o título de Bird e Diz lideram o movimento é absolutamente sensacional.

Um p.s. necessário: compositores, instrumentistas, arranjadores, trios, quartetos, quintetos, orquestras e gravadoras que tenham surgido depois de 1990 não são contemplados nos livros desta lista. É o senão desta postagem – se é que não há outros.

Fala! #10: Henry L. Mencken

“Se os escritores pudessem trabalhar em fábricas grandes e bem ventiladas, como os fabricantes de charutos ou cuecas, cercados de colegas e trocando mexericos profissionais, sua labuta seria imensamente mais leve. Mas é essencial ao seu ofício que desempenhem suas tediosas e vexatórias operações a cappella, o que faz com que os horrores da solidão se somem às suas outras fragilidades. Um escritor trabalhando está, contínua e inescapavelmente, na presença de si mesmo. Não há nada para entretê-lo ou consolá-lo. Toda vez que um pensamento vadio o invade, pega-o instantaneamente pela orelha, e toda vez que uma câimbra desce a sua perna, sacode-o como a mordida de um tigre.”

Henry Louis Mencken, A Mencken Chrestomathy

Mulheres #11: Catherine Deneuve

Em 1995, o incomparável Joe Cocker contracenou com Catherine Deneuve – também incomparável – no clipe N’oubliez Jamais. Se quiser checar, está AQUI. Estava, à época, com 52 anos e sua beleza continuava tão intacta quanto luminosa. Num país de belas atrizes francesas – Bardot, Adjani, Ardant e tantas outras -, Catherine Deneuve leva vantagem: foi bonita a vida inteira, independentemente do tempo, do clima, das oportunidades, dos casamentos etc. Foi, não. Ainda é, mesmo aos 80 anos. O tempo, implacável com qualquer ser humano, foi obrigado a desacelerar com ela.

Claro, claro: as fotos nesta postagem foram escolhidas com o objetivo de explorar sua beleza refulgente, os cabelos alourados, o rosto simétrico de olhos expressivos que tanto encantaram cineastas como Buñuel, Lars Von Trier, Chabrol, Truffaut ou Manoel de Oliveira. Aliás, até onde se sabe, era a atriz preferida desses 5 diretores citados. Chabrol, por exemplo, afirmava que Catherine Deneuve era a melhor atriz do mundo. Sim, falava de atuação em cena, algo que encantava a todos. Buñuel perdia a voz ao conversar com ela. Quando conseguia falar, afirmava que ela era a melhor coisa que a França produziu. E olhe que ele era fã dos queijos Cancoillotte e Munster.

Vi Catherine Deneuve pela primeira vez contracenando com David Bowie em Fome de Viver, de Tony Scott. É bonita de doer. Estava com quase 40 anos e mantinha a beleza com que chegara à juventude – um pouco mais reluzente porque madura. O filme é ótimo e ela, como a vampira Miriam Blaylock, está magnífica. Consegue apagar a beleza sensual de Susan Sarandon, ao contracenarem. David Bowie, então, desaparece. Abaixo, a vampira, cheia de fome e solidária ao amante que envelhece. Não será difícil encontrar outro parceiro.

Fome de Viver" é marco fashion do terror dos anos 80 - Harper's Bazaar » Moda, beleza e estilo de vida em um só site

Catherine Deneuve contradisse o axioma de que a mais alta beleza está na juventude. Estava mais bonita como a personagem Gabi, de 8 Mulheres, quando contava com 60 anos, do que em Os Guarda-chuvas do Amor, em que faz a chatinha Geneviève, com apenas 20 anos. Claro, claro: é uma percepção individual, subjetiva. Há mulheres que adquirem mais beleza com a maturidade, tornam-se mais sensuais, apresentam um componente indecifrável e indefinido que boquiabrem todos aqueles que, diante delas, prostram-se. É o caso de Catherine Deneuve.

Se tivesse de enumerar 3 grandes atrizes francesas, daquelas que seguram a personagem do início ao fim, eu diria Catherine Deneuve, Simone Signoret e Anouk Aimée. Sim, há outras – mas eu mesmo, por vontade própria, limitei o número. As 3 são artistas de ponta, capazes de vestir qualquer personagem com a verossimilhança necessária. Catherine mais: faça o teste assistindo a A Bela da Tarde, Tristana e A sereia do Mississipi. Se procurar, encontrará todos esses filmes disponíveis na web ou em canais fechados. Aproveite, antes que retirem do ar. Corra!

Músicos pintores #4: Dorival Caymmi

Acho Dorival Caymmi chato de doer. Não somente ele, mas a família inteira: Danilo, Dori e Nana entram na dança. Evidentemente, falo da música, do que eles produzem. Acho realmente entediante – ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, não somente reconheço a importância musical dos 4 (o patriarca, mais), como chego a desconfiar que cometo um grande pecado ao achá-los chatos. Pode ser, mas, por enquanto, concordo comigo mesmo. Por outro lado, Dorival, o chefão familiar, pintava bem à beça. Era um craque, sua pintura era tão contundente quanto de aparente simplicidade. Observe isto:

Sem título - Dorival Caymmi - Dorival Caymi

Não há título, não há olhos, não há feições. Apenas o movimento da família em busca de algo – que provavelmente não será alcançado. O traço é aparentemente simples, sem rasuras, mãe grávida, pai pescador, crianças em fila. Eu, dentro de limitações críticas sobre pintura, acho um quadro genial. O primitivismo foi muito além; a simplicidade obteve algo lírico, pela citada leveza, e ao mesmo tempo narrativo. Há uma história sendo contada, que continuará num próximo capítulo. Caymmi foi certeiro.

O Nordeste é um tema de cem anos. Ou mais, se considerar que Alencar escreveu O Sertanejo mesmo sem nunca ter pisado o sertão. Virou tema literário, de fato, com o pessoal de 1930: Zé Lins, Graciliano, Raquel, Zé Américo. E, claro, seu irmão de armas: Jorge Amado. Caymmi fez, na pintura e na música, o que Jorge fez nos enredos: uma Bahia cheia de graça, beleza natural, sensualidade, gente simpática e solidária, misticismo e religiosidade. A cultura baiana – e nordestina, como um todo – é seu tema quase único.

Bahia: candomblé, pescadores, percussão – cuja origem é africanidade -, natureza, mar. Que elementos são mais necessários que esses, perguntou certa vez o próprio Caymmi. Não se sabe se o assunto é restrito pela próprias limitações do artista ou se o universo que ele reconhecia lhe bastava. Não interessa: o resultado é tão simples quanto original. Mais ou menos como sua música – só não é pintura aborrecida, chata (a meu ver, repito!). Ao contrário: é vivaz, alegre. Abaixo, o artista em ação, e diante de si personagens caros à Bahia. Caros a ele também.

 Caymmi com pincéis e telas: Rubem Braga dizia que ele foi o único a captar seu jeito de ser em uma pintura Foto: / Divulgação

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