O melhor do Jazz #12: os livros

Livros sobre jazz há aos montes – ainda bem! Embora se diga que é um assunto que interessa a poucos, eu discordo. A maioria que diz não apreciar o jazz na verdade não o conhece. Ou pode ter sido mal apresentada a ele. Os cinco livros selecionados são, todos, traduzidos para o português. Dois deles foram escritos em nossa língua. Evidentemente – e eu teimo em repetir -, a lista é subjetiva, e composta somente por livros que eu tenha lido. Ou seja: é lista restrita, consumida por quem não é músico, mas por alguém que gostaria de ser.

Veja os detalhes da imagem relacionada. O JAZZ: DO RAG AO ROCK - Berendt, Joachim E.Joachim-Ernest Berendt era um incansável jornalista apaixonado por jazz. Organizou vários festivais do gênero, incluindo um dos melhores em todos os tempos: o Berliner Jazztage. Nesse livro, O Jazz – do rag ao rock, há uma análise arguta – embora resumida – de cada um dos subgêneros do jazz. Os grandes instrumentistas, os arranjadores essenciais, as inesquecíveis formações – e o mais importante: a história do jazz contada por que era um obcecado. Ao final, como um apêndice, há uma discografia selecionada que serve como guia necessário a quem ouve ou quer ouvir jazz.

Resumo - Kind of Blue - Recentes - 1O lendário quinteto de Miles Davis era um sexteto quando um dos maiores discos da história do jazz foi concebido. Kind of Blue: a história da obra-prima de Miles Davis, escrito pelo crítico e estudioso do jazz Ashley Kahn, narra, com clareza, os antecedentes e os consequentes da criação modal de um dos maiores gênios do jazz. Das fofocas aos registros oficiais, da natureza de cada um dos envolvidos no processo de concepção do disco. Mais sobre o livro: AQUI.

Capa do livroUm dos primeiros livros que li sobre o assunto foi escrito por Luiz Orlando Carneiro: Obras-primas do Jazz, que saiu pela Zahar e, 1986. Livro de didatismo inquestionável e percepção sensível sobre os grandes nomes do gênero. Um glossário, ao final do livro, com o objetivo de familiarizar o leitor com o vocabulário jazzístico, é um dos pontos altos – sem contar, claro, a abordagem crítica de um dos grandes conhecedores brasileiros do jazz.

Jazz Panorama – Wikipédia, a enciclopédia livreJorge Guinle era uma figura. Playboy riquíssimo, frequentador do jet set internacional, cicerone das estrelas de Hollywood, e apaixonado por jazz. Bem, o livro foi publicado há 70 anos – daí estar desatualizado. À parte esse pormenor, Jorge Guinle era dono de uma coleção de discos invejável, e resolveu, por conta e risco, escrever sobre jazz. Bem, teve ele a vantagem de escrever sobre muitos a quem ele conhecia pessoalmente: Gillespie, Getz, Bill Evans e Roy Eldridge eram seus amigos. Um livro ótimo, com relevantes análises de quem conhecia muito o elemento. Jazz Panorama é um título adequado, e evidentemente subjetivo.

Ainda na faculdade, ganhei, de um amigo querido, Jazz – das raízes ao rock, cuja autora é Lillian Erlich. Bem, o título original é muito mais bacana: What Jazz Is All About. Enfim, o problema de tradução é grave. Por exemplo, traduz-se o disco Live at Village Vanguard, de Coltrane, como Ao vivo na Vila Vanguarda, mas tudo bem. A despeito disso, é um livro delicioso, cheio de informações básicas (para quem não tem intimidade com o jazz) e preciosas (para quem tem). São 12 capítulos que expõem a evolução do gênero, bem como suas mudanças de caminho. O capítulo sobre o be-bop, sob o título de Bird e Diz lideram o movimento é absolutamente sensacional.

Um p.s. necessário: compositores, instrumentistas, arranjadores, trios, quartetos, quintetos, orquestras e gravadoras que tenham surgido depois de 1990 não são contemplados nos livros desta lista. É o senão desta postagem – se é que não há outros.

Fala! #10: Henry L. Mencken

“Se os escritores pudessem trabalhar em fábricas grandes e bem ventiladas, como os fabricantes de charutos ou cuecas, cercados de colegas e trocando mexericos profissionais, sua labuta seria imensamente mais leve. Mas é essencial ao seu ofício que desempenhem suas tediosas e vexatórias operações a cappella, o que faz com que os horrores da solidão se somem às suas outras fragilidades. Um escritor trabalhando está, contínua e inescapavelmente, na presença de si mesmo. Não há nada para entretê-lo ou consolá-lo. Toda vez que um pensamento vadio o invade, pega-o instantaneamente pela orelha, e toda vez que uma câimbra desce a sua perna, sacode-o como a mordida de um tigre.”

Henry Louis Mencken, A Mencken Chrestomathy

Mulheres #11: Catherine Deneuve

Em 1995, o incomparável Joe Cocker contracenou com Catherine Deneuve – também incomparável – no clipe N’oubliez Jamais. Se quiser checar, está AQUI. Estava, à época, com 52 anos e sua beleza continuava tão intacta quanto luminosa. Num país de belas atrizes francesas – Bardot, Adjani, Ardant e tantas outras -, Catherine Deneuve leva vantagem: foi bonita a vida inteira, independentemente do tempo, do clima, das oportunidades, dos casamentos etc. Foi, não. Ainda é, mesmo aos 80 anos. O tempo, implacável com qualquer ser humano, foi obrigado a desacelerar com ela.

Claro, claro: as fotos nesta postagem foram escolhidas com o objetivo de explorar sua beleza refulgente, os cabelos alourados, o rosto simétrico de olhos expressivos que tanto encantaram cineastas como Buñuel, Lars Von Trier, Chabrol, Truffaut ou Manoel de Oliveira. Aliás, até onde se sabe, era a atriz preferida desses 5 diretores citados. Chabrol, por exemplo, afirmava que Catherine Deneuve era a melhor atriz do mundo. Sim, falava de atuação em cena, algo que encantava a todos. Buñuel perdia a voz ao conversar com ela. Quando conseguia falar, afirmava que ela era a melhor coisa que a França produziu. E olhe que ele era fã dos queijos Cancoillotte e Munster.

Vi Catherine Deneuve pela primeira vez contracenando com David Bowie em Fome de Viver, de Tony Scott. É bonita de doer. Estava com quase 40 anos e mantinha a beleza com que chegara à juventude – um pouco mais reluzente porque madura. O filme é ótimo e ela, como a vampira Miriam Blaylock, está magnífica. Consegue apagar a beleza sensual de Susan Sarandon, ao contracenarem. David Bowie, então, desaparece. Abaixo, a vampira, cheia de fome e solidária ao amante que envelhece. Não será difícil encontrar outro parceiro.

Fome de Viver" é marco fashion do terror dos anos 80 - Harper's Bazaar » Moda, beleza e estilo de vida em um só site

Catherine Deneuve contradisse o axioma de que a mais alta beleza está na juventude. Estava mais bonita como a personagem Gabi, de 8 Mulheres, quando contava com 60 anos, do que em Os Guarda-chuvas do Amor, em que faz a chatinha Geneviève, com apenas 20 anos. Claro, claro: é uma percepção individual, subjetiva. Há mulheres que adquirem mais beleza com a maturidade, tornam-se mais sensuais, apresentam um componente indecifrável e indefinido que boquiabrem todos aqueles que, diante delas, prostram-se. É o caso de Catherine Deneuve.

Se tivesse de enumerar 3 grandes atrizes francesas, daquelas que seguram a personagem do início ao fim, eu diria Catherine Deneuve, Simone Signoret e Anouk Aimée. Sim, há outras – mas eu mesmo, por vontade própria, limitei o número. As 3 são artistas de ponta, capazes de vestir qualquer personagem com a verossimilhança necessária. Catherine mais: faça o teste assistindo a A Bela da Tarde, Tristana e A sereia do Mississipi. Se procurar, encontrará todos esses filmes disponíveis na web ou em canais fechados. Aproveite, antes que retirem do ar. Corra!

Músicos pintores #4: Dorival Caymmi

Acho Dorival Caymmi chato de doer. Não somente ele, mas a família inteira: Danilo, Dori e Nana entram na dança. Evidentemente, falo da música, do que eles produzem. Acho realmente entediante – ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, não somente reconheço a importância musical dos 4 (o patriarca, mais), como chego a desconfiar que cometo um grande pecado ao achá-los chatos. Pode ser, mas, por enquanto, concordo comigo mesmo. Por outro lado, Dorival, o chefão familiar, pintava bem à beça. Era um craque, sua pintura era tão contundente quanto de aparente simplicidade. Observe isto:

Sem título - Dorival Caymmi - Dorival Caymi

Não há título, não há olhos, não há feições. Apenas o movimento da família em busca de algo – que provavelmente não será alcançado. O traço é aparentemente simples, sem rasuras, mãe grávida, pai pescador, crianças em fila. Eu, dentro de limitações críticas sobre pintura, acho um quadro genial. O primitivismo foi muito além; a simplicidade obteve algo lírico, pela citada leveza, e ao mesmo tempo narrativo. Há uma história sendo contada, que continuará num próximo capítulo. Caymmi foi certeiro.

O Nordeste é um tema de cem anos. Ou mais, se considerar que Alencar escreveu O Sertanejo mesmo sem nunca ter pisado o sertão. Virou tema literário, de fato, com o pessoal de 1930: Zé Lins, Graciliano, Raquel, Zé Américo. E, claro, seu irmão de armas: Jorge Amado. Caymmi fez, na pintura e na música, o que Jorge fez nos enredos: uma Bahia cheia de graça, beleza natural, sensualidade, gente simpática e solidária, misticismo e religiosidade. A cultura baiana – e nordestina, como um todo – é seu tema quase único.

Bahia: candomblé, pescadores, percussão – cuja origem é africanidade -, natureza, mar. Que elementos são mais necessários que esses, perguntou certa vez o próprio Caymmi. Não se sabe se o assunto é restrito pela próprias limitações do artista ou se o universo que ele reconhecia lhe bastava. Não interessa: o resultado é tão simples quanto original. Mais ou menos como sua música – só não é pintura aborrecida, chata (a meu ver, repito!). Ao contrário: é vivaz, alegre. Abaixo, o artista em ação, e diante de si personagens caros à Bahia. Caros a ele também.

 Caymmi com pincéis e telas: Rubem Braga dizia que ele foi o único a captar seu jeito de ser em uma pintura Foto: / Divulgação

Chico, o mensageiro

O extraordinário Art Blakey é, para muitos apreciadores do jazz, o melhor baterista do gênero. Eu prefiro Louis Hayes e Max Roach, mas não é isso que interessa. Um dos grandes feitos de Mr. Blakey foi ter levado o jazz a quem não o conhecia – ou, ao menos, a quem não tinha informações suficientes sobre o que era aquela música. Criou os Jazz Messengers em 1955, com o auxílio luxuoso do não menos extraordinário Horace Silver, pianista de primeira.

Mas não é sobre o jazz que quero falar – e sim sobre o mensageiro. Ou seja, aquele que leva a informação e a dissemina. Vou explicar direito. Em 2024, ano corrente, Chico Buarque de Holanda completou 80 anos. Homenagens em redes sociais, tevês, jornais impressos ou não. Depoimentos de amigos, de críticos, de produtores musicais e de irmãos de armas. Por falar em irmãos, a família manifestou-se: como não admirar seu mais ilustre membro? É minha vez de agradecer. E falo com tranquilidade: obrigado, mensageiro! Vou explicar direito mais uma vez.

Em dezembro de 1978 eu era um rapaz de 16 anos que ouvia rock (obrigações adolescentes), disco music (influência da época) e as big bands norte-americanas, das quais meu pai era fã. Nesse mesmo dezembro, Chico Buarque – de quem eu apenas ouvira falar – lançou o disco Chico Buarque, o famoso disco da samambaia, em cujos sulcos brilhavam Cálice, Até o Fim, Trocando em Miúdos, Tanto Mar, a tristíssima Pedaço de Mim, a censurada Apesar de Você e outras. No outro ano, em seus primórdios – últimos dias de janeiro -, coloquei o disco na vitrola e a epifania veio à tona. Sim, foi um momento epifânico, revelador. A ponto de eu ignorar, quatro anos depois, a música de minha geração, o BRock.

Mantive-me na MPB, ao contrário da maioria dos amigos, que foram na onda de Paralamas, Titãs, Plebe Rude, Legião Urbana, Camisa de Vênus e mais algumas tantas. Para mim, uma estrofe de Chico valia mais do que tudo o que Renato Russo e Herbert Vianna escreveram. Ainda vale. E o mensageiro? Bem, Chico me levou a Caetano, a Gil e a Vinícius, de imediato. Depois, a Edu Lobo, a Toquinho, a Francis Hime, ao MPB4 e aos sambistas da velha guarda. Merece medalha, merece homenagem, merece agradecimento. Sem Chico Buarque, eu estaria ouvindo o quê? Dinho Ouro Preto? Humberto Gessinger? Valeu, Xará, pelo livramento!

Maldição, Seinfeld, Larry David

Dizia-se que a Maldição de Seinfeld era implacável, até que Julia Louis-Dreyfus estrelou Veep e foi um sucesso absoluto. Se você não faz ideia do que estou falando, aí vai: Seinfeld foi um fenômeno da TV: uma sitcom que revolucionou a linguagem do humor, apresentou quatro personagens inesquecíveis que, por serem inesquecíveis, caíram na armadilha da personagem única. Ou seja: os atores não conseguiam encarnar outras personagens porque estavam inexoravelmente presos àquelas que fizeram deles figuras icônicas. Durante alguns anos amargaram ora fracassos, ora tentativas frustradas de ir adiante. Como eu disse, Julia Louis-Dreyfus quebrou a corrente.

A sitcom baixou as cortinas no apogeu. Conta-se que Jerry Seinfeld recusou uma proposta de 110 milhões de dólares para continuar o trabalho. Fez bem. Não quis experimentar a decadência – que significa perder a audiência e ser lembrado justamente pela última impressão. Estão todos milionários. Julia um pouco mais, já que é herdeira de Gérard Louis-Dreyfus, o bilionário francês do setor de energia. E ficou mais rica ainda ao protagonizar o ótimo Veep, em que interpreta a vice-presidente dos EUA. Jerry Seinfeld, o chefão, saiu interpretando a si mesmo em várias oportunidades, fez animação e criou um ótimo esquete sobre carros, café e humoristas: AQUI.

Seinfeld (TV Series 1989–1998) - IMDb

Jason Alexander e Michael Richards tiveram também sua parte na maldição. Jason acabou fazendo aparições especiais – e provavelmente se divertindo nisso – em filmes, séries e comerciais de tevê, mas não emplacou um grande sucesso. Richards experimentou a fúria justificada da opinião pública ao mostrar que, a depender do estímulo, muita gente se mostra racista. Deu-se mal, mas continua na memória coletiva como o alucinado Cosmo Kramer, detentor do título de melhor personagem de sitcom já criado.

Reapareceram, os 4, em Curb Your Enthusiasm – ou Segura a Onda, no Brasil -, escrito e estrelado pelo co-autor de Seinfeld, Larry David. Consta que a personagem George Costanza baseia-se nele, Larry. Segura a Onda é bom, cheio de referências a Seinfeld e a seus personagens. Larry David é um tanto previsível em sua escrotidão, chatice e intolerância. Judeu, debocha dos seus; calvo, debocha deles também. É inteligente, milionário e faz o papel de si mesmo. A série fica melhor ainda quando entram em ação outros comediantes, como Richard Lewis, Jeff Garlin, J. B. Smoove, Bob Einstein e a ótima Susie Essman. Vira festa – e sem maldições.

Curb Your Enthusiasm' Season 12 Review: Old Reliable and Never Better | Arts | The Harvard Crimson

O Leblon de João Ubaldo

Alguém disse, e muita gente aplaudiu, que literatura que faz rir é inferior à literatura séria, que nos emociona e nos faz pensar na vida. Ambas podem divertir, mas a garantia disso está naquela cujo objetivo é nos levar às gargalhadas – ou, no mínimo, ao riso contido, à anedota inesquecível. Eu, de minha parte, não recuso caminhadas por nenhuma das duas vias. Leio Rabelais, Chaucer e L. F. Verissimo com o mesmo prazer que leio Graciliano, Faulkner e Carpentier. Por que falo sobre isso? Porque acabei de ler o excepcionalmente engraçado Noites Lebloninas, de João Ubaldo Ribeiro. Escrevi recentemente sobre ele, AQUI.

Noites lebloninas eBook de João Ubaldo Ribeiro - EPUB Livro | Rakuten Kobo BrasilSe você não leu, está perdendo a chance de rir. Claro que não é o riso fácil, pastelânico. Também não é algo sutil, percebido pela intelligentsia, que adora sorrir comedidamente porque somente ela compreendeu o que se quis dizer. Esqueça isso. O livro é composto de duas histórias narradas por um porteiro de prédio no Leblon, onde realmente morava o autor. O porteiro, narrador ágil que mistura referências e chama Shakespeare de Chico Pires e acha que o rei inglês degolador chamava-se Henrique Otávio, é o que de melhor li na literatura de humor nos últimos tempos.

O livro, publicado alguns meses após a morte de João Ubaldo, mostra que não perdeu a força humorística nascida e criada em Vencecavalo e o Outro Povo, também engraçadíssimo. João era cronista por excelência, e esse gênero possui umas permissões burlescas tão naturais quanto frequentes. As histórias, por si, já são o próprio humor: uma delas, a que dá título ao livro, fala sobre uma bacanal protagonizada por um ex-surfista frustrado chamado Saqualulu, dois porteiros (um deles, o narrador), e algumas senhoras da sociedade carioca.

Morre escritor baiano João Ubaldo Ribeiro - BAHIA NO ARA outra história – ainda melhor – fala de um cachorro de nome Falafina, que auxilia seu dono em conquistas homossexuais, selecionando quem ele, o dono, deve ou não levar para casa para fornicar. É mais que engraçado. É hilário. O título também não deixa a desejar: O Cachorro Falafina e seu dono Dagoberto. Sim, o cachorro late fino, pensa, raciocina e sabe ler. Ou, pelo menos, é isso que constata o narrador. Vale ler, vale rir. João Ubaldo Ribeiro, e eu já disse isso, é dos melhores.

Gianfrancesco aos 110

Revi, faz alguns dias, pela tevê, ao ótimo Eles não usam black-tie, filme de Leon Hirzman. Temática sócio-política de primeira, com interpretações inesquecíveis de Fernanda Montenegro, Carlos Alberto Riccelli e do autor da peça em que o filme se baseou – o italiano de sangue e brasileiro por opção Gianfrancesco Guarnieri. Aliás, escrevo este texto porque hoje, dia 6 de agosto, o citado ítalo-brasileiro faria 110 anos. Filho de pais músicos, dedicou-se ao teatro e à literatura – tornando-se um dramaturgo que sabia fazer a ação (ou drama) e as palavras funcionarem bem.

Não assisti à peça, que, até onde se sabe, foi o que tirou o grupo Teatro de Arena da forca. Sucesso estrondoso quando lançada, em 1958 – antes da euforia da vitória na Copa do Mundo de futebol, na Suécia -, a peça fez grana suficiente para manter o grupo em atividade, e aproveitou para estabelecer novas diretrizes para o teatro brasileiro, do qual Gianfrancesco Guarnieri foi figura fundamental. Sinceramente? Para mim, no teatro brasileiro do século XX existem três grandes figuras: Nelson Rodrigues, Augusto Boal e este de quem vos falo. Um ou dois de meus sete leitores dirá: E Fernanda Montenegro, Sérgio Britto, Paulo Autran, José Celso, Oswald de Andrade, Ariano Suassuna?

Guarnieri veio da Itália e fez história nas artes cênicas

Sintam-se à vontade para criar sua própria lista. Pois bem, voltemos a Gianfrancesco e ao texto Eles não usam black-tie, que gira em torno da relação entre operários e patronato, e cuja consequência inevitável é uma greve. Ao mesmo tempo, a relação pai e filho vai pela mesma via de confronto, já que o pai – na peça interpretada pelo russo Eugênio Kusnet, e no filme, por Guarnieri – entra em rota de colisão com o filho fura-greve (na peça, interpretado por Guarnieri; no filme, por Carlos Alberto Riccelli). O filho, Tião, criado num ambiente distante da periferia, é um desajustado que aspira à ascensão social. O pai, Otávio, crê na força operária e na necessidade de lutar por melhores salários e melhores condições de trabalho.

ELES NÃO USAM BLACK-TIE | Cinemateca Brasileira

O amor, entretanto, é o sentimento base do texto. Amor do pai pelo filho; do filho pela noiva; da mãe por todos. É a ideia comunitária que une a todos e faz com que todos se amem mutuamente, na comunidade. É um texto extraordinariamente bem escrito – e a primeira peça escrita por esse autor não menos extraordinário. Guarnieri continuou a escrever para teatro: Gimba, A Semente, O filho do Cão; sua produção pós-1964 é essencial para quem quer compreender o Brasil da repressão. Só que Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes ficam para depois.

Freud, Chico, cavalos, charutos

9 Curiosidades Sobre Freud - Curiosa História“Às vezes um charuto é apenas um charuto”, disse Sigmund Freud a um analista que o questionou se o charuto, empunhado pelo fundador da Psicanálise em muitas fotografias, tinha significados fálicos. A autoridade de Freud criou um costume: interpretar à revelia, como se um padrão conceitual pudesse ser encaixado em qualquer situação. Não sei se a resposta do grande pensador é verdadeira; não sei se tal breve diálogo aconteceu, mas serve para ilustrar algo ocorrido nas Olimpíadas de Paris – ainda em andamento. E que gerou este texto.

Eu explico. Foi perguntado a alguém da organização dos jogos se os cavalos – cúmplices dos atletas do hipismo – eram fornecidos pelo comitê olímpico ou se os proprietários dos animais cuidavam do transporte dos equinos até o país em que sairiam pulando obstáculos, trotando e se exibindo ao público e aos juízes. Um internauta fez uma brincadeira, usando as palavras de Chico Buarque, contidas na conhecidíssima parceria com Sivuca, João e Maria: “O meu cavalo só falava inglês.” Lembro-me dos meus 20 anos, quando, na universidade, conversávamos sobre política, ditadura e que tais, e alguém afirmar que o cavalo da canção representava a repressão dos militares. E a língua inglesa nada mais era que uma referência de Chico ao apoio dos EUA ao regime.

Músicas, vídeos, estatísticas e fotos de Chico Buarque | Last.fmEm outras palavras: houve um momento em que tudo o que o compositor carioca escrevia era interpretado como uma ação contrária ao repressivo momento político brasileiro. Isso soa tão resumitivo quanto injusto. Chico Buarque foi muito além da política, e essa atitude heroica – de baluarte da democracia – nunca esteve em seu radar, a despeito de canções como Apesar de você, Tanto Mar, Cálice, Acorda Amor (sob pseudônimo), Deus lhe pague e algumas poucas outras. Vale, entretanto, a interpretação do leitor/ouvinte, afinal ela diz muito mais sobre quem lê e ouve do que sobre a obra em si.

Eis aí uma das belezas da arte: a capacidade de ela nos fazer interpretá-la de acordo com o que somos, não de acordo com o que ela é. A carência de alguém que falasse por uma parcela significativa da juventude da época era tão grande que Chico Buarque se tornou essa voz, mesmo que muitas de suas canções não tivessem a intenção de dizer mais do que diziam. Não importa. Se um charuto, em algumas situações, é apenas um charuto realmente não faz diferença. Infeliz é o artista que quer ter a última palavra sobre sua criação.

Ave, Luiz Guilherme!

Luiz Guilherme Santos Neves não está mais entre nós. Ou continua conosco, sim, na memória – que é lugar de eternidade e devoção. Foi amigo de meu pai; depois, meu. Aprendi – ou penso que aprendi – a escrever lendo seus livros, tentando imitar a elegância que empunha às palavras, às frases, aos parágrafos. O ritmo, então, era algo natural e inimitável: tanto na fala quanto na escrita. Historiador de primeiríssima, criou histórias fundamentadas na História, com agá maiúsculo, misturando a ficção com aquilo que se pretendia verdadeiro e real. Fundiu os dois e deu nó em nossas cabeças de leitor.

Tive o privilégio não somente de ler seus livros, mas de estudá-los a fundo, lê-los e relê-los com o prazer de, na leitura seguinte, perceber o ineditismo que me fugira, anteriormente. O vestibular da UFES proporcionou-me esse trabalho. Li e reli A Nau Decapitada, As Chamas na Missa e O Capitão do Fim, três obras-primas – sendo esta última minha preferida. Coisa de gênio iluminado, que iluminava com as palavras. Trazer luz a quem lê é prerrogativa de poucos. Luiz era um deles. Li suas crônicas na extinta Revista Você, editada por seu irmão Reinaldo. Mantive-as sob mira quando foram destacadas para o site Tertúlia, de Pedro Nunes. AQUI, o conteúdo de A Certos Respeitos, sua coluna.

Aliás, acima estamos: Luiz, o citado (e também escritor) Pedro Nunes e eu, participando do extinto Café Literário, do Sesc. Bons tempos, 2007, Pedro Nunes mediando um debate sobre narrativas. Quando lancei Histórias Curtas para Mariana M, em 2009, pedi que Luiz Guilherme Santos Neves o lesse. Com a generosidade de sempre, não somente leu como me ligou, dois dias após ter iniciado a leitura, com uma enxurrada de elogios os quais eu deveria ter gravado, para mostrar a todos. Escreveu a orelha do livro que, numa segunda edição – recente, 2023 -, foi mantida. Fico imaginando: e se Luiz não tivesse apreciado a história, do romance? Não sei se eu publicaria. Palavra de honra.

Em 2019, assim que veio a lume meu romance Fama Volat, fui até sua casa. Lá, conversamos sobre livros policiais, sobre literatura em geral e, claro, sobre projetos literários que sempre estavam em seu radar. A cidade de Vitória e o estado do ES eram sua mira, seu grande amor histórico, a base para sua escritura. Luiz partiu mas não partiu. Seus livros estão aí, para quem quiser ler e aprender. Claro que ter podido privar com ele, ouvir o que dizia, testemunhar seu humor e suas opiniões foi muito melhor. Não esqueço. Abaixo, em nosso encontro, com sua esposa e minha ex-professora de Literatura Portuguesa Therezinha Santos Neves. Uma figura notável também.

Obrigado por tudo, meu amigo. Sei que agradeço por muitos. Ave, Luiz!

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