Qualquer dicionário decente define epifania como uma manifestação visual de caráter divino, revelação. Epifania é coisa de privilegiado, de alma santa, de sujeito iluminado – ou pelo menos assim se consideram aqueles que se envolvem com visões santificadas de caráter pessoal. Alguns usam da química para isso, mas aí a história é outra. Um amigo me disse que, ao assistir a um espetáculo operístico pela primeira vez (Don Giovanni, salvo engano), a vida se abriu diante dele, como se o que tivesse vivido até então fosse despido de significado. Tudo havia mudado por conta da música e do drama. Dia desses ouvi um jornalista esportivo afirmar que ter visto o holandês Cruijff jogar, ao vivo, nos anos 1970, havia sido uma de suas experiências reveladoras. Penso que tudo isso constitui a epifania, e me parece estar ligada, sempre, a algo que se move. No meu caso, o cinema, do grego kinema, movimento, num específico momento, proporcionou-me essa revelação.
Naturalmente não me sinto iluminado por isso, embora tal palavra me transporte a Stanley Kubrick, o cineasta meio maldito e gênio por inteiro. Kubrick dirigiu A Laranja Mecânica, ano de 1971, mas o filme chegou por aqui em 78. Proibido a menores, só fui ver o filme dois anos depois, no extinto e saudoso Dom Marcos, em Vila Velha, em frente à praça principal da cidade. Lembro-me bem de ter saído do cinema e não saber exatamente para qual direção seguir. Ok, um homem, aos 18, não sabe mesmo para onde ir, mas estou convencido de que o filme tinha muito mais a ver com esse desnorte do que a pouca idade.
O texto de Antony Burgess, no qual a película se baseou, e o qual fui ler algum tempo depois, não me abalou tanto. A razão é simples: movimento, a base da epifania. E a partir de então a linguagem meio joyceana dos personagens (mérito do Burgess, claro) e as imagens coreografadas de Kubrick me impressionaram, assim como o fizeram o behaviorismo governista, o estranho olhar de Malcolm MacDowell após beber leite narcotizado. Sem falar na violência amplificada, gratuita e profética, na sexualidade aliada à destruição, no threesome ao som de Guilherme Tell, de Rossini, na paraplegia do velho escritor comunista após ser surrado, ao som de Singin’ in the Rain. As famosas bolinhas pretas (as novas gerações ignoram isso), símbolo da censura da época, que acompanhavam, dançantes, as partes pudendas e expostas das personagens – tudo isso, e muito mais, provocou-me o mal estar que, sabe-se lá por quais mecanismos, gerou-me a epifania, a revelação.
Fui procurar, em Vitória, no outro dia, o livro do Burgess, e não o encontrei em nenhuma das poucas livrarias da ilha. E lembro-me, finalmente, de ter percebido, naquele momento, que o cinema saía do espaço do mero entretenimento e alcançava um outro objetivo: expor uma outra realidade que, diante de nós ou não, existe e tem cheiro, gosto, forma, som, efeito. Isso eu percebi algum tempo depois, mas já era tarde. Essa realidade, a do cinema, tinha se tornado mais reveladora que qualquer outra.