Listas servem para quê?

Listas são o diabo, eu já disse isso. Refletem a subjetividade de quem as constrói – ou seja: seu criador deixa-se levar, claro, pelo gosto pessoal, pelo possível afeto, pelo carinho efusivo que nutre por esta ou aquela obra, por este ou aquele artista. Isso quando a lista versa sobre arte, porque se pode fazer lista sobre qualquer assunto: de esporte a política; de cientistas a bandidos. Bem, dito isso, vamos à lista específica.

Este disco abaixo tem o título de Clube da Esquina, publicado em 1972. É uma beleza, uma reunião de canções – algumas delas obras-primas – que vale ser ouvida diariamente, durante semanas, meses, anos. Milton Nascimento e Lô Borges assinam o disco, mas há muita gente boa envolvida: destaque para Tavito e Beto Guedes. Elepê duplo com 21 canções, foi considerado o disco mais importante da história da música brasileira. Quem elegeu? Um grupo de jornalistas cuja subjetividade falou mais alto. É, entretanto, um discão, que comprei em 1981, e mantenho-o em meu coração.

Eis a questão: aí estão os outros 9 selecionados – e é aí que a discussão começa. Acabou Chorare, dos Novos Baianos, A Tábua de Esmeralda, de Jorge Ben, e Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais Mc’s nunca estariam numa lista feita por mim. Não entram nem no top 50. À parte serem discos representativos, emblemáticos, não têm o vigor textual de Construção, de Chico Buarque, ou de Transa, de Caetano Veloso. Acabou Chorare, a meu ver, é um disco infantil, com letras bobinhas, pueris, embora bem executado hamônica e melodiosamente. 

Chega de Saudade é disco icônico, deu pontapé inicial. Merece respeito, sem contar que traz João Gilberto em ação. O mesmo se aplica ao décimo colocado: Tom Jobim, o maior músico popular, e Elis Regina: para muitos, a melhor cantora brasileira. São 14 faixas, com alguns clássicos. Grande disco mesmo. Se a lista fosse minha, Construção seria substituído por Meus Caros Amigos, mas há, sempre que se considerar o que o disco representa além da música em si. Secos & molhados, com sua capa-armazém, é um primor de miscelânea cultural e musical. E Ney assombrando o povaréu. Vale.

E, claro, por último mas não menos importante: o disco-manifesto da Tropicália: Panis et Circensis. À parte o erro em latim (deveria ser Panem et Circensis), é um discaço (e também representativo de uma ideologia): Caetano, Gil, Gal, Mutantes, Duprat, Tom Zé, Nara Leão, Capinam e Torquato Neto. Só a presença da genial Geléia Geral já valeria estar na lista.

Por falar em listas, vou fazer a minha. Em breve, aqui, neste canal!

A Boêmia de Paris

Jerrold Seigel é um historiador norte-americano cuja principal característica não é o detalhe, a fofoca, a particularidade. Deixa isso para historiadores que têm no leitor curioso – e somente nesse tipo de leitor – seu principal alvo. Aquele que quer, na rodinha de amigos, expor algo tão inédito quanto desnecessário. Seigel preocupa-se com o macrocosmo: com as causas sociais, culturais e políticas de uma época e de uma região (também macrocósmica), como a Europa. Esse específico texto, Paris Boêmia – cultura, política e os limites da vida burguesa (1830-1930),  engloba 100 anos de uma vida cultural que determinou as características de outras vidas que, hoje, são essenciais a quem se interessa por arte, cultura, sociedade, política, história.

PARIS BOÊMIA: CULTURA, POLÍTICA E OS LIMITES DA VIDA BURGUESA (1830 - 1930)  - Jerrold Seigel - L&PM Pocket - A maior coleção de livros de bolso do  BrasilO termo boêmia tem origem cigana – o que já indica a marginalidade sobre a qual o livro versará. Esse marginal (artista ou não) ´é o contraponto ao burguês, ao bem nascido, que desfrutava de um ambiente confortável e de uma renda segura. Ao mesmo tempo, quase como um paradoxo, Jerrold Seigel mostra que a ideia de burguês varia de acordo com a fatia social a que pertence seu opositor.  Em outras palavras: não existiria o burguês se não houvesse sua consequência: o marginal. No caso específico do livro: o boêmio.

A contestação e a busca pela liberdade total são a tônica daqueles artistas (ou outros) que, na cidade de Paris – e arredores – buscavam alternativas que desembocariam, 50 anos depois, naquilo a que se denominou, quase institucionalmente, de vanguardas: Dadaísmo, Futurismo, Cubismo, Fauvismo, Expressionismo e, mais tarde, Surrealismo. O embrião está na vida boêmia: escritores, pintores, analistas de uma sociedade que consideravam decadente, professores. Todos eles frequentadores dos cafés parisienses, locais identificados com a boêmia nas décadas centrais do século XIX. A propósito: Jerrold Seigel é este:

Jerrold Seigel — New York Institute for the Humanities

Gente do Simbolismo (Verlaine, Rimbaud, Corbiére, Mallarmé, e principalmente Baudelaire), do Realismo (Balzac, Flaubert), da pintura moderna (Picasso, Modigliani), da música e do teatro (Eric Satie, Alfred Jarry) – todos eles, indivíduos que transformaram o futuro – hoje nosso presente -, passaram pelas fronteiras da Boêmia, esse mundo criativo, insolente, desafiador, que uniu política e arte e que nos legou um tempo melhor e mais fecundo. Se puder, leia o livro. Ainda não se tornou clássico nem sei por quê.

Charpentier, o marginal

Os maldosos dizem que o maior feito de Marc-Antoine Charpentier foi colaborar com o grande dramaturgo Moliére em Les Facheux, ópera em que o escritor francês trabalhou como libretista. Música barroca de primeiríssima, embora, em sua época, tenha sido quase um marginal, porque Luís XIV o considerava “demasiadamente italiano”. Ouvir este disco abaixo, Litanies de La Vierge, ou pequenas orações em devoção à Virgem Maria, mostra que, italiano ou francês, sua música é universal, estimulante e carregada de beleza.

Dia desses, ouvi um rapper afirmar que escutar música clássica é esnobismo. A afirmação parece-me tão preconceituosa quanto dizer que o rap só tem valor porque é fundamentado em seu contrário – ou seja, a modéstia. É uma discussão tão inf´értil quanto desnecessária. A afirmação dele, entretanto, fez-me pensar: estaria a música clássica, hoje, numa posição marginal? Ainda há espaço para ela no coração da massa juvenil, como há para o rap, para o funk, para a canção sertaneja, para a música religiosa e, com menos prestígio, para o rock?

A Deutsche Grammophon, a mais antiga gravadora do mundo, está mal das pernas há muito tempo, mesmo antes de os downloads – piratas ou não – se intensificarem e se tornarem a ordem do dia. Marginal, a música clássica, em crise, não sabia o que fazer. Manter-se no referido esnobismo ou, carregada de autoindulgência, capitular diante do mercado? Os grandes int´érpretes, as sinfônicas e filarmônicas mais respeitadas, os maestros e solistas – todos, relegados ao mundo restrito do pedantismo, devem simplesmente desaparecer porque a maioria os considera elitizados?

Sébastien Daucé : la musique baroque, "une question de fascination"

Charpentier era marginal, mas continuou seu trabalho. Fez música que, hoje, é respeitada, cultuada, admirada como um autêntico barroco de estirpe nobre. Caso possam – e se interessem por música clássica -, não deixem de ouvi-lo: ainda mais pela batuta de Sebastién Daucé (este aí, acima), maestro francês fundador do Ensemble Correspondences, formado por ex-alunos do Conservatoire National Supérieur de Musique de Lyon, um dos mais prestigiados conservatórios do mundo. Aproveite!!!

Periferia e vestibular

Começo agradecendo ao Revson. Mas quem é ele e por que lhe agradeço? Bem, Revson – cujo nome familiar desconheço – é leitor assíduo deste blogue e, por sê-lo, merece meu humilde agradecimento. Pronto! Pois Revson fez um comentário sobre minha postagem anterior, na qual falo sobre Chico Buarque e sua canção Tanto Mar, que homenageia a lusitana Revolução dos Cravos. Disse que o compositor carioca é passadista e, segundo suas palavras, “O mundo é dos mano, da moçada que faz música periférica”. O que isso quer dizer? Que as atenções são dirigidas aos rappers, fanqueiros e que tais?

Sobrevivendo no inferno | Amazon.com.brTalvez ele tenha razão num ponto: o apelo que, hoje, essa música periférica (termo dele) tem é inegavelmente maior do que têm as canções de Caetano, Gil e Chico (compositores mencionados por ele). É preciso, entretanto, levar em consideração a faixa etária. Inúmeros cinquentões e sessentões, cuja formação musical contou com a participação de craques da MPB, muito provavelmente ignoram quem são os emicis, os fanqueiros et alli. Uma exceção que conheço: eu.

Acabei de ler Sobrevivendo no inferno, dos Racionais mc’s. Li porque é um dos livros selecionados por um dos vestibulares mais seletivos e importantes do país, o da Unicamp. Confesso que não leria, caso não me obrigasse a tal. Apreciei o prefácio – bastante esclarecedor, diga-se – do professor Acauam Silvério de Oliveira , fundamental para a compreensão da importância social e política do movimento no qual o grupo sobressaiu (e do qual, para muitos, é pioneiro). Os textos apresentados, contudo, não me apetecem esteticamente. Não aprecio a linguagem, mas não a desmereço. Sempre é bom lembrar que literatura não é tema. Literatura é linguagem.

Reconheço a relevância social do movimento – enalteço-a, inclusive. A representatividade política dos Racionais é inegável, e deve ser louvada porque é essencial. São, como diz o título, sobreviventes de um sistema social que quer – ou queria -, calar uma voz necessária a quem nunca teve permissão para falar. Desde 2018 são publicados pela prestigiada Cia. das Letras e a edição do livro é bem cuidada, eu diria até refinada. Resta saber se alguém considera isso uma conquista ou condescendência burguesa. Enfim, com as contas no fim: vale a leitura. E, mais uma vez, obrigado, Revson!

Racionais MC's anuncia retorno e promete: "Em breve, novidades"

Antes que eu me esqueça: aos olhos de muitos, então, Chico Buarque, sim, é um autor periférico. Hoje, claro.

Cravos, Chico, Festa (e a versão original)

Hoje é dia 25 de abril – e os portugueses estão em festa desde então. Há 47 anos Portugal, por meio da Revolução dos Cravos, mostrava-se frente a frente ao processo democrático. Segundo consta, uma garçonete lisboeta chamada Celeste Caeiro, iniciou a distribuição de cravos durante o conflito. Muitas dessas flores chegaram aos soldados que, simbolicamente, acoplavam-nas às espingardas.

Não vou explicar como e por quê se deu a revolução que pôs fim ao salazarismo em Portugal. Este espaço é insuficiente para tal narrativa. AQUI você encontra tudo. O que quero dizer é que meu xará, Chico Buarque, homenageou o país e o movimento na canção Tanto Mar. A segunda versão dessa canção é conhecida: está no disco Chico Buarque, de 1978. A primeira, original, feita em 1975, está aqui:

Observe a atualização das formas verbais utilizadas em uma e outra versões. O resto é com você, leitor.

Um P.S. No disco Chico e Bethânia, de 1975, a canção Tanto Mar teve a letra censurada – por motivos óbvios, de modo que apenas a melodia (violão, flauta, palmas etc) pôde ser veiculada. Há também uma belíssima – mesmo! – interpretação da cantora portuguesa Eugênia de Melo e Castro dessa canção. Wagner Tiso acompanha a moça. Vale ouvir!

 

 

 

 

Rock ou pop quarentão

Arthur Dapieve é um cara boa praça. Entende de música, sabe escrever, é irônico – uma necessidade nesse ofício -, está na folha de pagamento da Globo, aprecia demasiadamente o rock e, dentre outras peças escritas, apresentou ao público, em 1995, este livro que você, possível leitor, está vendo:

Brock O Rock Brasileiro Dos Anos 80 Arthur Dapieve Editora34 | Parcelamento sem juros

BRock é a denominação do autor para o gênero pop-rock desenvolvido no Brasil no início dos anos 1980. Antes que você pergunte: escrevo sobre o assunto porque ontem, dia 21 de abril, assisti a partes de um show em homenagem aos 40 anos do chamado rock brasileiro. O Canal Brasil proporcionou o encontro entre várias bandas que, há 40 anos – ou um pouco menos -, fizeram a cabeça da moçada.

O evento, até onde sei, vai-se estender até dia 24, e muita gente conhecida vai-se apresentar: de Marina Lima a Nando Reis, passando por Fernanda Abreu, Biquini Cavadão, Blitz, Paulo Ricardo, Frejat, Leo Jaime, Barão Vermelho, Os Paralamas do Sucesso e alguns mais. Bem, eu não tenho uma opinião formada sobre rock brasileiro, mas isso é irrelevante. O que é relevante, para mim, é o motivo pelo qual não a tenho.

O espaço do Rock brasileiro na música atual – vibeculturalblog

Em 1982, quando tudo começou, eu tinha 20 anos. Seria absolutamente natural que, nessa idade, eu me interessasse pelo rock nacional. Seria, mas não foi. Primeiro, porque eu já me interessava por jazz e por MPB, e, sendo assim, meu parâmetro musical e textual era outro. As letras do BRock pareciam-me bobocas demais, quando comparadas ao magnífico trabalho de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Belchior, Toquinho & Vinícius, Edu Lobo. Sem contar que a “atitude política” roqueira daquela rapaziada sempre me pareceu artificial demais.

Resultado: envelheci sem usufruir daquela atmosfera de (pseudo)rebeldia que cercou o movimento, e que fez muitos de meus amigos felizes. Fiquei ouvindo The Who, Led Zeppelin, Pink Floyd, Joe Cocker e Jethro Tull, e poderia ter adicionado algumas doses de rock brazuca, condizentes com minha faixa etária. Não sei se errei, mas certifico-me de que perdi uma oportunidade. Ou me livrei dela.

Filmes (re)vistos #6: Os 12 Macacos, 1996

Os 12 Macacos - Filme 1995 - AdoroCinemaComeço dizendo que Brad Pitt é um ladrão. Depois justifico. Em segundo lugar: Terry Gillian, o diretor, fez fama no grupo inglês de humor Monty Python, é um ator meio sem graça, mas, como diretor, é competente e, por vezes, genial. Assista a Brazil O Filme e depois conversamos. Bruce Willis e a inacreditavelmente bonita Madeleine Stowe estrelam a aventura futurista Os Doze Macacos, cheia de flash-backs e citações, com um pé nas maluquices cerebrais de Chris Marker, o cineasta francês autor de La Jetée (O Cais, em bom vernáculo) e outro pé nas maluquices do próprio Gillian. A propósito: Gillian não assistiu a La Jetée.

Zapeando a tevê, sem qualquer pretensão vespertina, peguei o comecinho, ainda nos créditos iniciais, de Os Doze Macacos. Um filme estranho, de narrativa séria com doses de humor ora refinado, ora escancarado como uma boca dentuça. Animei-me a rever, já que tinha assistido à película em VHS, numa época que, hoje, parece tão jurássica quanto os velhos lagartões de outrora. Bruce Willis, claro, é Bruce Willis, o homem que não se fragiliza, o herói ateniense, o paladino que enfrenta exércitos. Vai e volta no futuro como se isso fosse a coisa mais frugal que há.

O tema é atualíssimo: um vírus assola o planeta, modificando-o, eliminando os humanos – claro. O herói volta no tempo com o objetivo de entender como esse vírus atacou o planeta. No passado, ele, Willis, não passa de um maluco em quem a personagem de Madeleine Stowe, médica e pesquisadora, acredita. E a crença dela dá motor ao filme. No hospício, Willis contracena com Brad Pitt, que rouba a cena todas as vezes em que aparece – daí ser o ladrão mencionado na primeira frase desta postagem. A propósito, Madeleine Stowe é esse belezura aí, mais luminosa do que nunca:

Tudo bem: o papel de Pitt – um maluco de queimar dinheiro – proporciona atuações capazes de atrair toda a atenção, de magnetizar o público. Está brilhante, entretanto. Bruce Willis, sempre fazendo o papel de si mesmo, contracena bem. Tem o olhar vago dos viajantes no tempo, pasmos com o que os seres humanos fizeram ao lar de todos os seres vivos. Se você espera um final edificante, daqueles em que a indulgência dá lugar ao apocalipse, esqueça. Esqueça também se espera o apocalipse.

Se estiver zapeando – pode ser nesse próximo feriado -, e diante de você esse filme de o ar da graça, não vá ao próximo canal. Além de `Pitt, Willis e Stowe, há a chance sempre benéfica de ver Christopher Plummer em ação. Não perca, se puder.

 

Bem acompanhado

Fazer sessenta anos não é para frouxos, dizia Paul Newman, o ator, que morreu aos 83 anos, de câncer de pulmão. Newman não nasceu num 13 de abril, como eu e os senhores abaixo, que me acompanham nessa data. Não, não vou falar deles – mas de mim, mesmo que sem muitos aprofundamentos: a superfície tem lá também seu charme. Aos 60, após 3 esposas, 25 mil cigarros, 12 mil litros de cerveja, 9 livros e 4 filhas, continuo na ativa. Repito: não é fácil. Ah, sim: se você reconheceu, citei Kurt Vonnegut, Jr.

Tenho amigos que, já avôs nessa idade, e aposentados após uma vida de dedicação à labuta e à família, divertem-se curtindo netos, viagens, filmes e livros. São aqueles felizardos que amealharam a sonhada riqueza que lhes proporciona uma folga financeira. Professores não têm esse privilégio – ao menos a maioria deles: os que conheço e que dividem comigo o trabalho de tentar criar interesse em quem não se acostumou – ainda! – a ler. Mantenho-me em sala de aula, fazendo aquilo em que me aperfeiçoei: aulas de literatura.

Claro que o verbo aperfeiçoar soa pretensioso, já que advém da palavra perfeição. Não tenho esse objetivo, e longe disso estou, mas faço minha parte da melhor forma possível, tentando mostrar a importância dos escritores, das obras, das estéticas literárias, do ato de ler e de criar. E dos dois juntos, afinal um e outro, simbióticos, representam o que há de essencial em literatura. Vou em frente, porque é esse meu propósito. E reativo este blogue, porque escrever é minha essência. Ou uma delas.

Só para constar: da esquerda para a direita, e de baixo para cima: Jacques Lacan, Samuel Beckett, Georg Lukács, D. Ivone Lara, , Seamus Heaney, Paulo Rónai, Sérgio Sampaio, Al Green, Thomas Jefferson, Catarina de Médici, Garry Kasparov e este que vos escreve. Quase todos mortos – exceto eu, o enxadrista e o soulman. Como diria, porém, John Maynard Keynes: já que a longo prazo, todos nós estaremos mortos, estarei junto a eles. O prazo, entretanto, não será curto, ilustríssimos amigos!

Eric, Jazz

Eric John Ernest Hobsbawm era feio de doer, mas isso não importava porque sua ocupação intelectual não incluía passarelas nem salões de beleza. O negócio dele era escrever – e bem – sobre História. Marxista até a medula, escreveu clássicos que orientaram gerações: A Era das Revoluções, A Era do Capital, A Era dos Impérios e A Era dos Extremos, e este último plantou a ideia genial de que o século XX não tem cem anos. Cheguei a seus escritos não por tais mencionados clássicos, mas por outro exemplar – que para mim se tornou mais que definitivo: História Social do Jazz.

O jazz é minha área de interesse há quase quarenta anos. Meu primeiro disco, uma coletânea de Miles Davis, foi adquirido na antiga Discoteca do Messias, centro de Vitória, próxima ao palácio do governo, em 1982. A música de Miles levou-me ao ilimitado mundo desse querido e basilar gênero, que incluiu também literatura, fotografia, cinema, dança. E justamente por isso, e também porque ontem foi dia 9 de junho – nascimento de Eric Hobsbawm -, escrevo esse texto, e falo sobre o livro que mencionei no primeiro parágrafo.

O título já deixa claro: é história social, e vista pelo olhar de um estudioso que compreende a luta de classes como ferramenta essencial para que o mundo continue a dar voltas. Diferentemente de outros livros, ou muitos deles, que optam por trazer informações sobre trios, quartetos, quintetos, orquestras, arranjadores, instrumentistas, estilos etc., este livro vai além: mostra social e politicamente como o jazz passou a fazer parte da vida quotidiana dos negros, como adentrou o mundo caucasiano, como foi à falência por conta do rock e como deu a volta por cima – fundindo-se justamente a esse último gênero citado. Criou-se o fusion.

Resumir um livro já é difícil. Um monumento, então, nem se fala. Aí vai, entretanto: o livro se divide em 4 partes – História, Música, Negócios e Gente – e faz um apanhado das origens, referências, locais, influências, estilos, produtores, agentes, clubes, músicos e, claro, de como o jazz se manteve enquanto agente econômico sujeito a oscilações de mercado e de como – profetizou ele – se tornaria indústria. Enfim, Eric J. Hobsbawm escreveu o livro definitivo sobre o jazz. Fugiu dos clichês, como disse seu prefaciador Luís Fernando Verissimo, escritor e fulminantemente apaixonado por jazz. No prefácio, ele termina afirmando Leia-o, Leia-o! Eu segui esse conselho à risca.

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