Nara, aos 32

Sim, a voz de Nara Leão era pequena – e daí? Alguém cantava como ela, como se sussurrasse ao ouvido despreocupado de seu ouvinte? Sim, era limitada no alcance, mas expressava-se como ninguém em qualquer gênero musical. Foi do rock ao frevo, passando pelo baião, pela valsa, pela MPB, pelo blues. Foi tropicalista, foi bossanovista, foi a melhor intérprete feminina das canções de Chico Buarque; fez o que ninguém conseguiu: cantar alguns temas de Roberto Carlos melhor do que ele mesmo, o dono da bola.

Li a biografia de Nara, escrita por Sérgio Cabral. É um texto esclarecedor em muitos pontos, embora o autor tenha sido jornalista demais ao escrever.  Foi protocolar, a meu ver. Faltou-lhe um pouco de Ruy Castro na construção das personagem que nos apresentou. Faltou um pouco de new journalism, acho. A técnica do romance teria feito bem ao texto porque Nara merecia que sua jornada fosse assim celebrada. Bem, é apenas uma opinião.

O primeiro disco de Nara que comprei foi Com Açúcar Com Afeto, em 1981, no qual ela interpretava canções de Chico Buarque. Por conta da abertura política, foi possível ouvir a gravação (duo com o autor) de Vence na Vida Quem Diz Sim, originalmente na peça proibida Calabar – O Elogio da Traição, e aquela que, também em dueto com o próprio Chico, iria se tornar um clássico: Dueto. A propósito, AQUI, uma raridade. Para quem gosta de Nara e de Chico, é um manjar.

Nara Leão morreu há 32 anos – num dia 7 de junho, o mesmo dia em que Paulo Leminski nos deixou, por conta da cirrose que o acompanhou como uma sombra. Nara não teve melhor sorte: um tumor no cérebro venceu-a por pontos, até levá-la de forma definitiva. O que ficou? Tudo o que dela necessitamos: voz, suingue, candura, sofisticação, ternura, inquietude, talento, coragem, versatilidade. E muito mais, porque assim era ela: infinita e eterna.

Ave, Guillermo!

Aqueles que apreciam charutos deveriam ler Fumaça Pura, de Guillermo Cabrera Infante. Escrevi sobre esse livro, lá nos primórdios do Ipsis, em 2017. É uma beleza de texto, um ato de amor ao tabaco e ao cinema. Vale a pena ler, mas leia antes meu texto: como aperitivo. Dedico-me a Cabrera Infante há muito. É dos maiores na América Latina, embora tenha muito de Inglaterra nas veias e músculos. Estou lendo um livro adquirido em 1996, e guardado para ser lido no momento oportuno (que chegou): Mea Cuba, uma série de artigos sobre a ilha que foi obrigado a abandonar.

Cabrera Infante enfrentou Fidel, enfrentou a burocracia soviética, deixou claro a muitos escritores insulares que a Revolução não poderia moldar a arte. Poderia ser seu estímulo, seu ponto de partida, mas nunca, sob qualquer hipótese, deveria restringir a produção literária a uma visão comunista do mundo. Cabrera infante não considerava Fidel comunista. Considerava-o um alcaide, um manda-chuva que não poderia (nem deveria) ser contrariado. Mea Cuba traz um escritor disposto a enfrentar seus demônios, mas principalmente os demônios alheios.

Ele continua o mesmo – ainda bem! Abusando das referências cinematográficas e literárias, dos trocadilhos e neologismos, traz à superfície inúmeros personagens da vida culta de Havana, principalmente escritores. Sofri razoavelmente com um texto intitulado Carpentier, um cubano de calibre, no qual ele mostra o também cubano Alejo Carpentier – um de meus ídolos literários – como um indivíduo pedante, egoísta e marcado por um narcisismo injustificado, tanto física quanto literariamente. E que fingia ser europeu.

Exilado, Guillermo Cabrera Infante retoma sua Cuba da infância e da adolescência, da mística antilhana, das rodas boêmias, dos amigos e dos interlocutores, que tanto lhe trouxeram conhecimento. Na garganta, entretanto, está a Cuba de Fidel, cheia de regras e dada a perseguições políticas, fundada e afundada no caudilhismo, afeita a um partido único e, surpreendentemente – para ele – sustentada e apoiada por escritores que sabiam que a liberdade é o maior patrimônio da arte. Mea Cuba é um acerto de contas.

Li inúmeros livros de Cabrera Infante. Três Tristes Tigres foi o primeiro, nos anos 1980. Depois fui buscar Havana para um Infante defunto, Vista do Amanhecer no Trópico, Fumaça Pura e Delito por dançar o cha-cha-chá. Se você nunca leu nada dele, apresse-se. Está perdendo muito.

O melhor do Jazz #9: saxofonistas

Quem são os maiores saxofonistas do jazz? Fácil, diriam alguns, já que o cânone está aí, passado a limpo pela história e sedimentando verdades inabaláveis. Não vou ficar citando características ou dando informações – básicas ou não – sobre os senhores cujos vídeos são expostos abaixo. São os componentes do meu top 5, e creio que muitos concordarão comigo. As discordâncias devem ser pontuais, imagino. Ah, vou colocar os vídeos na ordem das minhas preferências.

1. Sonny Rollins: Oleo.

2. John Coltrane: Alabama

3. Charlie Parker: I’ve Got Rhythm

4. Lester Young: Pennies from Heaven

5. Dexter Gordon: Lady Bird

Está bem, dirão aqueles que por aqui passarem. E perguntarão por Wayne Shorter, Art Pepper, Stan Getz, Eric Dolphy, Gerry Mulligan, Lee Konitz? Pois é: são grandes saxofonistas, grandes intérpretes de músicas próprias ou alheias, mas não entram no grupo dos cinco. Confesso que Benny Carter, Ben Webster, Coleman Hawkins, Gene Ammons e Booker Ervin disputaram o lugar de Dexter Gordon – e nem sei exatamente por que o californiano levou a melhor.

Deixar de fora Johnny Griffin, Hank Mobleysobre quem já escrevi -, Johnny Hodges e Sonny Stitt doeu-me o coração. Creio que o critério tenha sido tanto técnico quanto afetivo. Foram os primeiros saxofonistas que ouvi, com a atenção adulta, com o critério mais aguçado. Voltei ao início dos anos 1980 para retirar de lá as lembranças de quando iniciei os primeiros passos no jazz, sob orientação de Marco Antônio Grijó, meu querido primo. É possível que ele discorde dessa minha lista. Assim é a vida.

Caso vc, que esteja – por acidente ou não – lendo esta postagem, fique à vontade para expor seu top 5. Será um prazer comparar.

Bing: ausência de 43 anos

Quem é o maior cantor popular norte-americano? Eu diria Sinatra, meu xará. Além de ser tecnicamente perfeito, é meu preferido – o que faz com que meu julgamento seja, evidentemente, questionável. Sinceramente? Acho que poucos questionarão. Bem, há outros que mereceriam o posto: Johnny Hartman, Louis Armstrong, Nat King Cole, Sammy Davis, Jr., Tony Bennett. Há, entretanto, um outro que, para muitos, é o maior de todos, inclusive para o próprio Sinatra: Bing Crosby.

Calma: deixei os vocalistas rock de fora, até porque o rock é um gênero que não exige que o cantor seja realmente grande coisa. Claro: exceção para um dos maiores cantores em qualquer gênero: Elvis Presley. Mas por que estou fazendo toda essa introdução? Porque hoje, 14 de outubro, faz 43 anos que o mundo perdeu Bing Crosby. Há alguns meses adquiri, em vinil, a caixa com 4 discos desse extraordinário cantor: Bing Crosby and Friends. Ei-la:

É uma grande festa. Uma compilação de grandes gravações em duetos e trios. Gente do quilate de Rosemary Clooney, Nat King Cole, Peggy Lee, Judy Garland, Maurice Chevalier e mais um punhado de craques – o filho Gary Crosby incluído. Há uma gravação de Surry with the Fringe on Top, com Hellen O’Connel que é uma beleza. Ah, claro, nem tudo é dueto. Crosby canta How are Things in Glocca Morra e That Old gang of Mine sozinho. Duas pérolas.

E se você tem dúvidas quanto a comparações com aqueles senhores citados no primeiro parágrafo, ouça e veja ISTO. Faz parte de uma das melhores comédias musicais já feitas, Robin Hood de Chicago. Estão lá Frank Sinatra, Sammy Davis e Dean Martin, todos contracenando com Bing Crosby. Ainda prefiro meu xará, mas o protagonista desta postagem – preciso confessar – é melhor. A propósito: com Louis Armstrong, Bing Crosby faz um dueto que ninguém deveria desconhecer. Se puder, aproveite!

21 anos sem João

A morte de João Cabral de Melo Neto chegou à maioridade. Há 21 anos morria aquele que, em minha opinião nem sempre levada a sério, é o maior poeta brasileiro de todas as épocas. Deixa Gregório, Castro Alves, Bilac, Augusto dos Anjos, Vinícius, Cecília e Drummond para trás,  empatados em 2º lugar. Enfim, é opinião. Não vou tecer comentários sobre ele porque, para muitos, qualquer frase acerca desse enormíssimo poeta poderia ganhar ares didáticos. Este blogue não é para isso. Então, vão aí 3 poemas escolhidos, dentre tantos extraordinariamente bem escritos. Escolhi-os baseando-me (repito) no gosto pessoal. Coincidentemente, estão todos contidos no livro A Educação Pela Pedra, de 1966.

A propósito: deixei de fora Morte e Vida Severina. Além de longo, e por isso seria complicado reproduzi-lo aqui, seria covardia com qualquer outro poema – do próprio João, inclusive. O primeiro: solidariedade, coletivismo. O segundo: realidades que se contrapõem. O terceiro: uma aula improvável de metalinguagem. Ave, João!

“Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.”

(Tecendo a Manhã)

“Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma”.

(A Educação pela Pedra)

“Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.”

(Catar Feijão)

Geddy deve ter razão

Meu querido amigo – admirador e conhecedor profundo do rock – Alfonso Favalessa, professor da área exata, enviou-me uma mensagem na qual Geddy Lee, baixista e líder da banda canadense Rush, afirma, com todos os fonemas, que Who’s Next, álbum de 1971 da banda The Who, é o melhor disco de rock de todos os tempos. Você encontra a entrevista AQUI. Eu não sou daqueles especialistas no rock cujas opiniões definem o gênero. Longe disso. Meu amigo Favalessa é.

Já escrevi sobre o Who aqui, neste blogue. Foi lá no começo, em 2017. Repito um dado que considero fundamental: Keith Moon e John Entwistle são, a meu ver, o maior baterista e o maior baixista do rock. Sim, respectivamente. E digo mais: Pete Townshend é o melhor compositor que há, no gênero. Melhor que Dylan, melhor que as duplas Lennon/McCartney e Jagger/Richards. Claro que é opinião pessoal, e minha opinião vem com um aval poderoso: Geddy Lee concorda comigo. Isso está na entrevista também.

Sei que é difícil dizer qual o melhor disco de rock que existe. Além da infinidade de grandes discos, muitos deles concentram-se em determinadas épocas, e sob determinadas perspectivas culturais. Como comprovar que Chuck Berry é melhor que Tony Iomi? Ao comparar essas duas lendas, claro, a subjetividade prevalecerá. Aproveitei para (re)ouvir Who’s Next. Sinceramente? Não há canção ruim. Ao contrário: com exceção da curtinha Love Ain’t for Keeping, todas – rigorosamente todas! – são obras-primas.

The Who | Who's Next Cover | Relaxing

Tenho Who’s Next em vinil e em cedê, que traz faixas adicionais, gravadas naquele mesmo ano, mas não durante a enxurrada de gravações que deram origem ao disco original. Naked Eye, Pure and Easy e Water são ótimas, mas a razão de não terem entrado na seleção em vinil é óbvia. Não estavam no mesmo nível. Geddy Lee deve saber disso, assim como Favalessa. Ouvindo mais uma vez – como agora faço – fico na dúvida quanto a meu julgamento. Mas qual, você pergunta. Até o momento, eu considerava Abbey Road, dos Beatles, e Electric Ladyland, de Hendrix, os melhores discos de rock que conheci. Acho melhor reavaliar. Obrigado, Geddy!

A propósito: se você quer saber as histórias acerca do álbum, clique AQUI.

Filmes (re)vistos #5: Munique, 2005

As coincidências, embora muitos apostem o contrário, existem, sim. Ontem eu assisti, pela terceira vez, ao filme Munique, de Steven Spielberg. Fiquei sabendo que, hoje, 5 de setembro, o atentado terrorista que deu origem ao filme comemora – não sei se esse é o termo adequado – 48 anos. O grupo terrorista palestino Munaẓẓamat Aylūl al-Aswad (Setembro Negro) sequestrou e deu cabo de onze atletas israelenses num ataque surpreendente à vila Olímpica de Munique, durante os Jogos Olímpicos de 1972, naquela cidade.

A primeira ministra linha-dura Golda Meir queria a intervenção das forças especiais – o temido Tzahal -, mas os alemães recusaram. O massacre aconteceu sob os olhos de todo o Ocidente e, num certo sentido, mostrou a fragilidade tanto de Israel quanto da polícia alemã. O filme gira em torno da forra: um ex-agente do Mossad, a mais especializada polícia do mundo, sai pelo mundo em busca dos responsáveis pela tragédia. É, enquanto triller policial e trama de suspense, uma obra-prima. Quando Spielberg resolve fazer filmes adultos o resultado é positivo. A Cor Púrpura, A Lista de Schindler e The Post comprovam, isso. Há outros, claro.

O que chama a atenção – ao menos pude ater-me, nessa (re)visão – é que a frieza de pessoas treinadas pelo Mossad não é proporcional a eficácia com que cumprem seu papel nacional. As tensões humanas afetam qualquer um, e sob circunstância previsíveis ou não. A personagem de Eric Bana – ótimo, em cena – vive uma situação pessoal que afetaria qualquer um: é obrigado a abandonar a esposa, grávida, além de mudar a própria identidade. Mesmo fora do Mossad, o orgulho patriótico fala mais alto: algo que só se vê, tão declaradamente, em filmes nos quais os norte-americanos, heróis por natureza, são os protagonistas.

Munique - Filme 2005 - AdoroCinemaA caça aos membros do Setembro Negro, fio que conduz a película, tem um sabor especial. É uma aula de estratégia, de maquinações terroristas, de eficiência policial. Os 5 “caçadores” – entre eles o futuro James Bond Daniel Craig – são inteligentíssimos e talentosos, correndo o mundo (Chipre, Itália, Líbano, Grécia, França), determinados a cumprir uma tarefa que, na verdade, não é deles. É impressionante o diálogo entre o líder do grupo e a chefona Golda Meir. Orgulho e vingança acima de tudo. Um filmaço que apreciei assistir novamente e, por isso, você lê este texto.

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