Maldição, Seinfeld, Larry David

Dizia-se que a Maldição de Seinfeld era implacável, até que Julia Louis-Dreyfus estrelou Veep e foi um sucesso absoluto. Se você não faz ideia do que estou falando, aí vai: Seinfeld foi um fenômeno da TV: uma sitcom que revolucionou a linguagem do humor, apresentou quatro personagens inesquecíveis que, por serem inesquecíveis, caíram na armadilha da personagem única. Ou seja: os atores não conseguiam encarnar outras personagens porque estavam inexoravelmente presos àquelas que fizeram deles figuras icônicas. Durante alguns anos amargaram ora fracassos, ora tentativas frustradas de ir adiante. Como eu disse, Julia Louis-Dreyfus quebrou a corrente.

A sitcom baixou as cortinas no apogeu. Conta-se que Jerry Seinfeld recusou uma proposta de 110 milhões de dólares para continuar o trabalho. Fez bem. Não quis experimentar a decadência – que significa perder a audiência e ser lembrado justamente pela última impressão. Estão todos milionários. Julia um pouco mais, já que é herdeira de Gérard Louis-Dreyfus, o bilionário francês do setor de energia. E ficou mais rica ainda ao protagonizar o ótimo Veep, em que interpreta a vice-presidente dos EUA. Jerry Seinfeld, o chefão, saiu interpretando a si mesmo em várias oportunidades, fez animação e criou um ótimo esquete sobre carros, café e humoristas: AQUI.

Seinfeld (TV Series 1989–1998) - IMDb

Jason Alexander e Michael Richards tiveram também sua parte na maldição. Jason acabou fazendo aparições especiais – e provavelmente se divertindo nisso – em filmes, séries e comerciais de tevê, mas não emplacou um grande sucesso. Richards experimentou a fúria justificada da opinião pública ao mostrar que, a depender do estímulo, muita gente se mostra racista. Deu-se mal, mas continua na memória coletiva como o alucinado Cosmo Kramer, detentor do título de melhor personagem de sitcom já criado.

Reapareceram, os 4, em Curb Your Enthusiasm – ou Segura a Onda, no Brasil -, escrito e estrelado pelo co-autor de Seinfeld, Larry David. Consta que a personagem George Costanza baseia-se nele, Larry. Segura a Onda é bom, cheio de referências a Seinfeld e a seus personagens. Larry David é um tanto previsível em sua escrotidão, chatice e intolerância. Judeu, debocha dos seus; calvo, debocha deles também. É inteligente, milionário e faz o papel de si mesmo. A série fica melhor ainda quando entram em ação outros comediantes, como Richard Lewis, Jeff Garlin, J. B. Smoove, Bob Einstein e a ótima Susie Essman. Vira festa – e sem maldições.

Curb Your Enthusiasm' Season 12 Review: Old Reliable and Never Better | Arts | The Harvard Crimson

O Leblon de João Ubaldo

Alguém disse, e muita gente aplaudiu, que literatura que faz rir é inferior à literatura séria, que nos emociona e nos faz pensar na vida. Ambas podem divertir, mas a garantia disso está naquela cujo objetivo é nos levar às gargalhadas – ou, no mínimo, ao riso contido, à anedota inesquecível. Eu, de minha parte, não recuso caminhadas por nenhuma das duas vias. Leio Rabelais, Chaucer e L. F. Verissimo com o mesmo prazer que leio Graciliano, Faulkner e Carpentier. Por que falo sobre isso? Porque acabei de ler o excepcionalmente engraçado Noites Lebloninas, de João Ubaldo Ribeiro. Escrevi recentemente sobre ele, AQUI.

Noites lebloninas eBook de João Ubaldo Ribeiro - EPUB Livro | Rakuten Kobo BrasilSe você não leu, está perdendo a chance de rir. Claro que não é o riso fácil, pastelânico. Também não é algo sutil, percebido pela intelligentsia, que adora sorrir comedidamente porque somente ela compreendeu o que se quis dizer. Esqueça isso. O livro é composto de duas histórias narradas por um porteiro de prédio no Leblon, onde realmente morava o autor. O porteiro, narrador ágil que mistura referências e chama Shakespeare de Chico Pires e acha que o rei inglês degolador chamava-se Henrique Otávio, é o que de melhor li na literatura de humor nos últimos tempos.

O livro, publicado alguns meses após a morte de João Ubaldo, mostra que não perdeu a força humorística nascida e criada em Vencecavalo e o Outro Povo, também engraçadíssimo. João era cronista por excelência, e esse gênero possui umas permissões burlescas tão naturais quanto frequentes. As histórias, por si, já são o próprio humor: uma delas, a que dá título ao livro, fala sobre uma bacanal protagonizada por um ex-surfista frustrado chamado Saqualulu, dois porteiros (um deles, o narrador), e algumas senhoras da sociedade carioca.

Morre escritor baiano João Ubaldo Ribeiro - BAHIA NO ARA outra história – ainda melhor – fala de um cachorro de nome Falafina, que auxilia seu dono em conquistas homossexuais, selecionando quem ele, o dono, deve ou não levar para casa para fornicar. É mais que engraçado. É hilário. O título também não deixa a desejar: O Cachorro Falafina e seu dono Dagoberto. Sim, o cachorro late fino, pensa, raciocina e sabe ler. Ou, pelo menos, é isso que constata o narrador. Vale ler, vale rir. João Ubaldo Ribeiro, e eu já disse isso, é dos melhores.

Gianfrancesco aos 110

Revi, faz alguns dias, pela tevê, ao ótimo Eles não usam black-tie, filme de Leon Hirzman. Temática sócio-política de primeira, com interpretações inesquecíveis de Fernanda Montenegro, Carlos Alberto Riccelli e do autor da peça em que o filme se baseou – o italiano de sangue e brasileiro por opção Gianfrancesco Guarnieri. Aliás, escrevo este texto porque hoje, dia 6 de agosto, o citado ítalo-brasileiro faria 110 anos. Filho de pais músicos, dedicou-se ao teatro e à literatura – tornando-se um dramaturgo que sabia fazer a ação (ou drama) e as palavras funcionarem bem.

Não assisti à peça, que, até onde se sabe, foi o que tirou o grupo Teatro de Arena da forca. Sucesso estrondoso quando lançada, em 1958 – antes da euforia da vitória na Copa do Mundo de futebol, na Suécia -, a peça fez grana suficiente para manter o grupo em atividade, e aproveitou para estabelecer novas diretrizes para o teatro brasileiro, do qual Gianfrancesco Guarnieri foi figura fundamental. Sinceramente? Para mim, no teatro brasileiro do século XX existem três grandes figuras: Nelson Rodrigues, Augusto Boal e este de quem vos falo. Um ou dois de meus sete leitores dirá: E Fernanda Montenegro, Sérgio Britto, Paulo Autran, José Celso, Oswald de Andrade, Ariano Suassuna?

Guarnieri veio da Itália e fez história nas artes cênicas

Sintam-se à vontade para criar sua própria lista. Pois bem, voltemos a Gianfrancesco e ao texto Eles não usam black-tie, que gira em torno da relação entre operários e patronato, e cuja consequência inevitável é uma greve. Ao mesmo tempo, a relação pai e filho vai pela mesma via de confronto, já que o pai – na peça interpretada pelo russo Eugênio Kusnet, e no filme, por Guarnieri – entra em rota de colisão com o filho fura-greve (na peça, interpretado por Guarnieri; no filme, por Carlos Alberto Riccelli). O filho, Tião, criado num ambiente distante da periferia, é um desajustado que aspira à ascensão social. O pai, Otávio, crê na força operária e na necessidade de lutar por melhores salários e melhores condições de trabalho.

ELES NÃO USAM BLACK-TIE | Cinemateca Brasileira

O amor, entretanto, é o sentimento base do texto. Amor do pai pelo filho; do filho pela noiva; da mãe por todos. É a ideia comunitária que une a todos e faz com que todos se amem mutuamente, na comunidade. É um texto extraordinariamente bem escrito – e a primeira peça escrita por esse autor não menos extraordinário. Guarnieri continuou a escrever para teatro: Gimba, A Semente, O filho do Cão; sua produção pós-1964 é essencial para quem quer compreender o Brasil da repressão. Só que Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes ficam para depois.

Freud, Chico, cavalos, charutos

9 Curiosidades Sobre Freud - Curiosa História“Às vezes um charuto é apenas um charuto”, disse Sigmund Freud a um analista que o questionou se o charuto, empunhado pelo fundador da Psicanálise em muitas fotografias, tinha significados fálicos. A autoridade de Freud criou um costume: interpretar à revelia, como se um padrão conceitual pudesse ser encaixado em qualquer situação. Não sei se a resposta do grande pensador é verdadeira; não sei se tal breve diálogo aconteceu, mas serve para ilustrar algo ocorrido nas Olimpíadas de Paris – ainda em andamento. E que gerou este texto.

Eu explico. Foi perguntado a alguém da organização dos jogos se os cavalos – cúmplices dos atletas do hipismo – eram fornecidos pelo comitê olímpico ou se os proprietários dos animais cuidavam do transporte dos equinos até o país em que sairiam pulando obstáculos, trotando e se exibindo ao público e aos juízes. Um internauta fez uma brincadeira, usando as palavras de Chico Buarque, contidas na conhecidíssima parceria com Sivuca, João e Maria: “O meu cavalo só falava inglês.” Lembro-me dos meus 20 anos, quando, na universidade, conversávamos sobre política, ditadura e que tais, e alguém afirmar que o cavalo da canção representava a repressão dos militares. E a língua inglesa nada mais era que uma referência de Chico ao apoio dos EUA ao regime.

Músicas, vídeos, estatísticas e fotos de Chico Buarque | Last.fmEm outras palavras: houve um momento em que tudo o que o compositor carioca escrevia era interpretado como uma ação contrária ao repressivo momento político brasileiro. Isso soa tão resumitivo quanto injusto. Chico Buarque foi muito além da política, e essa atitude heroica – de baluarte da democracia – nunca esteve em seu radar, a despeito de canções como Apesar de você, Tanto Mar, Cálice, Acorda Amor (sob pseudônimo), Deus lhe pague e algumas poucas outras. Vale, entretanto, a interpretação do leitor/ouvinte, afinal ela diz muito mais sobre quem lê e ouve do que sobre a obra em si.

Eis aí uma das belezas da arte: a capacidade de ela nos fazer interpretá-la de acordo com o que somos, não de acordo com o que ela é. A carência de alguém que falasse por uma parcela significativa da juventude da época era tão grande que Chico Buarque se tornou essa voz, mesmo que muitas de suas canções não tivessem a intenção de dizer mais do que diziam. Não importa. Se um charuto, em algumas situações, é apenas um charuto realmente não faz diferença. Infeliz é o artista que quer ter a última palavra sobre sua criação.

Ave, Luiz Guilherme!

Luiz Guilherme Santos Neves não está mais entre nós. Ou continua conosco, sim, na memória – que é lugar de eternidade e devoção. Foi amigo de meu pai; depois, meu. Aprendi – ou penso que aprendi – a escrever lendo seus livros, tentando imitar a elegância que empunha às palavras, às frases, aos parágrafos. O ritmo, então, era algo natural e inimitável: tanto na fala quanto na escrita. Historiador de primeiríssima, criou histórias fundamentadas na História, com agá maiúsculo, misturando a ficção com aquilo que se pretendia verdadeiro e real. Fundiu os dois e deu nó em nossas cabeças de leitor.

Tive o privilégio não somente de ler seus livros, mas de estudá-los a fundo, lê-los e relê-los com o prazer de, na leitura seguinte, perceber o ineditismo que me fugira, anteriormente. O vestibular da UFES proporcionou-me esse trabalho. Li e reli A Nau Decapitada, As Chamas na Missa e O Capitão do Fim, três obras-primas – sendo esta última minha preferida. Coisa de gênio iluminado, que iluminava com as palavras. Trazer luz a quem lê é prerrogativa de poucos. Luiz era um deles. Li suas crônicas na extinta Revista Você, editada por seu irmão Reinaldo. Mantive-as sob mira quando foram destacadas para o site Tertúlia, de Pedro Nunes. AQUI, o conteúdo de A Certos Respeitos, sua coluna.

Aliás, acima estamos: Luiz, o citado (e também escritor) Pedro Nunes e eu, participando do extinto Café Literário, do Sesc. Bons tempos, 2007, Pedro Nunes mediando um debate sobre narrativas. Quando lancei Histórias Curtas para Mariana M, em 2009, pedi que Luiz Guilherme Santos Neves o lesse. Com a generosidade de sempre, não somente leu como me ligou, dois dias após ter iniciado a leitura, com uma enxurrada de elogios os quais eu deveria ter gravado, para mostrar a todos. Escreveu a orelha do livro que, numa segunda edição – recente, 2023 -, foi mantida. Fico imaginando: e se Luiz não tivesse apreciado a história, do romance? Não sei se eu publicaria. Palavra de honra.

Em 2019, assim que veio a lume meu romance Fama Volat, fui até sua casa. Lá, conversamos sobre livros policiais, sobre literatura em geral e, claro, sobre projetos literários que sempre estavam em seu radar. A cidade de Vitória e o estado do ES eram sua mira, seu grande amor histórico, a base para sua escritura. Luiz partiu mas não partiu. Seus livros estão aí, para quem quiser ler e aprender. Claro que ter podido privar com ele, ouvir o que dizia, testemunhar seu humor e suas opiniões foi muito melhor. Não esqueço. Abaixo, em nosso encontro, com sua esposa e minha ex-professora de Literatura Portuguesa Therezinha Santos Neves. Uma figura notável também.

Obrigado por tudo, meu amigo. Sei que agradeço por muitos. Ave, Luiz!

A infância de Jesus

Hector Berlioz é o maior nome do romantismo francês. Na música, evidentemente. É o que Victor Hugo representa para a literatura: o gênio puro, o artista máximo de uma época. Ouvi, durante a manhã de sábado, o oratório L’Enfance du Christ, obra superlativa de todo o romantismo europeu. Charles Munch, maestro linha-dura, foi diretor musical da Boston Symphony por 13 anos, e em 1956, gravou essa peça musical de pouco mais de 90 minutos. Obra-prima, levada às alturas por Cesar Valletti – narrador e centurião romano -, Maria (Florence Kopleff), José (Gérard Sousay) e Giorgio Tozzi, que acumula as funções de Herodes, Polydorus e um anônimo pai de família.

Berlioz não era grande coisa como instrumentista. Mal sabia tocar violino, piano ou cello. Seu instrumento, de fato, era a orquestra, como um todo. Ninguém o superou, em qualquer época: é o pai orquestral de Wagner e de Strauss, que, pode-se afirmar, não foram além dele. Em L’Enfance du Christ, porém, está comedido, afinal é um ofertório, e arroubos orquestrais não são bem vindos. Sua influência é inegável, embora – e isso é realmente curioso – não tenha deixado discípulos. Não há registro de alunos de Berlioz.

Abordar a infância de Jesus não é algo corriqueiro. Preferem-se, claro, a vida milagreira, as peregrinações, a crucificação e, lógico, o que o distingue dos outros seres humanos: a ressureição. O que chama a atenção é a narração: direta, sem floreios. Cesar Valletti, tenor que brilhou como Don Otavio, na mozartiana Don Giovanni, abrilhanta o oratório com uma clareza de fazer inveja a um professor de francês. E olhe que Valletti era romano! A estrela, porém, é Giorgio Tozzi, que interpreta Herodes, em sua angústia cheia de terror e urgência. Hector Berlioz, um autêntico antirreligião, sentiu-se à vontade com o tema.

A novaiorquina Florence Kopleff faz uma Maria um tanto tímida, mas nem por isso distante da beleza e do gozo que essa figura gera nos católicos. Vale ouvi-la com cuidado, observando o frescor de sua voz límpida. Fui buscar no YouTube as imagens dessa gravação. Não há, após quase 70 anos. Há, entretanto, esta AQUI, com o Coral Monteverdi e John Eliot Gardiner mandando ver. Dizem que há uma gravação estupenda com o belga Philippe Herreweghe, mas eu não conheço. Certamente é coisa fina, mas eu gostaria mesmo era de ter testemunhado o trabalho de Munch.

A propósito: o disco em questão é duplo, e traz as obra Les nuits d’eté – que ficará para uma postagem futura.

Os ratos de Dyonélio

Os Ratos - Dyonélio Machado - Traça Livraria e SeboDyonélio Machado é autor de dois livros: o divertido e estranho O Louco do Cati, o qual li durante os tempos de faculdade – sugestão de um professor de Direito Penal -, e um outro, que se tornou clássico, Os Ratos. O grande Érico Verissimo, amigo pessoal de Dyonélio, era famoso pelas opiniões tão rigorosas quanto honestas sobre a literatura dos outros – principalmente da literatura produzida pelos amigos. Derreteu-se em elogios a Os Ratos, e, claro, havia justiça nisso, porque é um livro tão bom quanto necessário: daqueles que merecem e precisam ser relidos.

Por falar nisso, li, reli e reli, já que consta da lista de obras impostas pela USP. Imagine um romance que se passa em apenas 1 dia na vida de seu protagonista. Você pensou em Ulysses, de Joyce, certo? Claro. Mas pode pensar também em Os Ratos, porque Naziazeno é nosso Leopold Bloom, angustiado, desesperado por conta de uma dívida com o leiteiro. Eis a banalidade que, por meio da talentosa pena do escritor, gera um romance  que ilustra a época em que foi escrito.

Dyonélio Machado era comuna. Era também psiquiatra e jornalista – ou seja: juntou esses três elementos e dessa junção saiu uma história de um barnabé oprimido social e economicamente que, na agonia da dívida, vagueia como um rato pela cidade de Porto Alegre, em busca de dinheiro para comprar leite para o filho pequeno. A via crucis em busca das migalhas mostra a periferia de uma cidade e de uma sociedade que é implacável com os menos favorecidos. Ratos alimentam-se de migalhas. Os amigos do protagonista são também roedores em busca de uma oportunidade.

Os 80 anos de O louco do Cati, obra polêmica e elogiada de Dyonelio Machado

Não há um subterrâneo no qual o rato se enfurna. A superfície, compartilhada por todos, é a verdadeira opressora. Os amigos de Naziazeno, dispostos a ajudá-lo no desafio de obter a quantia, mostram-se soterrados num nicho social feito de agiotas, pilantras, aproveitadores, gente que humilha e gente que é humilhada. Tudo feito sob a ótica de um narrador afeito à psicologia profunda, capaz de analisar gestos e desejos. É uma boa amostra do que é o romance urbano que brotou no Modernismo. Vale a leitura, principalmente se você, sexto ou sétimo leitor, vai prestar vestibular em Sampa.

Joukery-pawkery: uma antecipação

Um bilionário capixaba é encontrado morto no banco do motorista de seu carro de luxo. A causa mortis, segundo o legista, é infarto do miocárdio, mas o delegado Anselmo Rosa-Torres suspeita de que a fratellanza Fama Volat esteja envolvida. Qual a conexão entre essa morte e o Joukery-pawkery? E, afinal, o que significa essa expressão?

Joukery-pawkery é um jogo de tabuleiro criado por Agatha Christie, a famosa escritora inglesa de livros policiais, de suspense e de mistério. Consta que no dia 21 de abril, dia em que a rainha Elizabeth II, a monarca inglesa, comemorava aniversário, Dame Christie ia até o palácio de Buckingham, devidamente escoltada pelo nobre motorista, e lá as duas mais famosas mulheres da Inglaterra jogavam essa maravilha lúdica, o Joukery-pawkery.  Também segundo consta, foi o encontro anual por 15 anos. Após a morte da escritora, em 1976, esse jogo de tabuleiro desapareceu.

Reaparece em 2019, por força e poder da Fama Volat, a centenária e mundial organização clandestina que comercializa objetos raros e, principalmente, obras de arte (pintura e escultura). Sua exposição gera a trama que inclui crimes contra a vida, vilipêndios, corrupção, canalhices. Há também advogados, uma viúva poderosa, um filho ambicioso, um armênio falsificador, uma jornalista sensual. E polícia e bandido, claro. É ler para crer.

Fama Volat é o título de meu romance de 2019, cuja capa está ao lado, e que você encontra AQUI. A editora, Cândida, lançou também meu livro de crônicas, Doxa. Pois é: voltei ao tema, voltei ao cenário doméstico (Vitória), a Anselmo Rosa-Torres – antes investigador; agora delegado. Joukery-pawkery é, sim, uma continuação de Fama Volat, mas pode ser lido de forma independente. Esse novo livro, de cunho policial, será lançado em agosto, 2024, mas fica aí a palinha, e fica também a esperança de que o leitor aproveite da melhor forma.

O melhor Woody (para quem?)

Conversava eu com alguns amigos sobre cinema. Nada técnico: apenas preferências, lembranças, bons e maus momentos em filmes, canastrice de atores e atrizes, diretores competentes etc. Tudo baseado em opiniões que, na maioria das vezes, não precisavam de justificativa. Sim, assim que é bom. Pois na conversa veio a pergunta, direta, a meus ouvidos: qual o melhor filme de Woody Allen? E a pergunta se fez seguir de um desafio ainda maior: dentre tantos, precisaria escolher três – nem menos, nem mais.

Bem, eu escolho, logo de cara, Zelig, filme de 1983. Obra-prima, sem tirar nem pôr. É ousadia demais produzir, no início dos anos 1980, um filme (em formato documental) em preto & branco sobre um homem cuja única característica interessante é ser um camaleão humano – ou seja: ao aproximar-se de alguém, ele passa a se parecer com essa pessoa a quem acompanha. A esposa à época, Mia Farrow, faz uma psicanalista que se apaixona por seu paciente. Comédia? Não é exatamente uma comédia, e não sei bem sei a que gênero pertence. A película, contudo, é ótima, principalmente para se rever.

Tour Filme Meia Noite em Paris (2011) - Simplesmente ParisOutro: Meia-noite em Paris, de 2011. É a homenagem à literatura, ao cinema, à música e à pintura e, claro, àquela tal geração perdida, gente que se refugiou em Paris porque havia espaço para a criação, para o desbunde (da época), para a liberdade. É a conexão absolutamente perfeita entre humor e surrealismo – sem falar, claro, que surrealistas como Buñuel e Dali privavam com Zelda Fitzgerald e seu marido, Cole Porter, e Gertrude Stein. Aliás, a breve conversa entre Gertrude e Picasso é ótima. Quem não apreciaria, sabe-se lá por quê e como, voltar no tempo e contracenar com seus ídolos? Uma beleza de filme.

O terceiro filme: Poucas e boas, de 1999: Woody Allen e o jazz, gênero o qual tanto ama. Sean Penn, sempre excelente, é um músico de jazz (Emmet Ray) cujo passatempo é matar ratos a tiros. Melhor que ele, no instrumento – guitarra -, somente o cigano Django Reinhardt (em cuja presença Emmet sempre desmaia). Engana-se, entretanto, quem acha que seja um filme sobre música. É, de fato, um filme sobre afeto, sobre como o artista lida com as pessoas a quem ama e, mais ainda, como o artista vê o mundo. E de como perde a pessoa amada justamente por ser artista – ou seja: um egoísta por princípio. Vale ver, se não viu. Rever, então, nem se fala.

Poucas e Boas | Isabela Boscov

Deixar de fora Annie Hall, Maridos e Esposas, Manhattan e Interiores é pedir para ser internado. Coisa de hospício mesmo. Vamos em frente, todavia.

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