Livros, lista (além do Brasil)

Hoje é dia primeiro de Maio, dia do trabalhador. É data mundial, aclamada, respeitada, sentida. É dia também da Literatura Brasileira, escolhida por conta do nascimento do primeiro grande contador de histórias que o Brasil produziu: o cearense José de Alencar, autor de textos em que índios heroicos, damas sensuais e regionalismos exagerados funcionavam como grandes patrimônios da brasilidade. Alencar não era fácil: foi o melhor em sua especialidade. Tivesse escrito em francês seria um Alexandre Dumas, fils. Mas não é sobre José de Alencar que quero falar – e sim sobre esse dia tão caro, e ao mesmo tempo ignorado, aos escritores, como eu. Homenageando o dia (e indo além da produção brasileira), resolvi, até como proposta lúdica, expor aquilo que alguns – apenas por curiosidade, creio – esperam de mim: uma lista dos melhores livros que li.

  1. Don Quixote, Miguel de Cervantes
  2. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
  3. Todos Os Fogos O Fogo, Julio Cortázar
  4. Fogo Pálido, Vladimir Nabokov
  5. Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll
  6. Havana para Um Infante Defunto, G. Cabrera Infante
  7. História Universal da Infâmia, J. L. Borges
  8. Pedro Páramo, Juan Rulfo
  9. Almoço dos Campeões, Kurt Vonnegut, Jr.
  10. Crime e Castigo, F. Dostoievski
  11. Retrato do Artista quando Jovem, James Joyce
  12. Os Nus e Os Mortos, Norman Mailer
  13. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
  14. A Harpa e A Sombra, Alejo Carpentier
  15. Nostromo, Joseph Conrad

Nenhum brasileiro?, perguntará o leitor mais ufanista, querendo fuzuê, afinal o dia é da Literatura Brasileira, com maiúsculas mesmo. Nenhum – nem Machado de Assis, que, entre os conterrâneos, é o melhor. Ao competir com os gringos de sua época, leva grande surra. Claro que é apenas uma opinião, sujeita a debates e a tabefes. A lista traz, como se pode observar, cinco autores de língua inglesa (deixei de fora Conrad e Nabokov, que escreveram suas obras-primas em inglês). Seis em língua espanhola (incluo aí o cubanês de Carpentier), um em língua alemã e outro russo – esse, sim, escrevendo como um eslavo. Como se pode perceber, deixei de fora a lírica e o drama. A lista se resume a narrativas – daí Shakespeare ter ficado no limbo.

Listas servem para divertir – principalmente para divertir aquele que as cria. Limitei-me a quinze títulos: o que me força a deixar de fora autores fundamentais que, num rol mais elástico, estariam presentes. É muita gente que não cabe na festa. Mas e quanto ao ufanista do parágrafo anterior? Pensando nele, e imaginando-o emburrado como uma criança contradita, crio um outro inventário, doméstico dessa vez, para amenizar a fúria alheia – sem contar que esse é, de fato, o propósito da postagem. Que não se imagine, por favor, uma lista que brote da autoridade de um professor da área. Pode esquecer isso: não sou nem nunca fui autoridade. Quem aqui fala é o leitor! Sim, isso serve como álibi.

  1. Quincas Borba, Machado de  Assis
  2. A Lua vem da Ásia, Campos de Carvalho
  3. Os Dragões, Murilo Rubião
  4. A Grande Arte, Rubem Fonseca
  5. O Casamento, Nelson Rodrigues
  6. Avalovara, Osman Lins
  7. Senhora, José de Alencar. 
  8. Tenda dos Milagres, Jorge Amado
  9. Os Doze Trabalhos de Hércules, Monteiro Lobato
  10. Transístor, Murilo Mendes
  11. Primeiras Estórias, Guimarães Rosa
  12. Sermões, Pe. Antonio Vieira
  13. Livro das Horas, Nélida Piñon
  14. João Ternura, Aníbal Machado
  15. São Bernardo, G. Ramos

E Oswald, Zé Lins, Clarice, Hilda Hilst, Cony, João do Rio? E Grande Sertão, Brás Cubas, Gabriela, Policarpo Quaresma?  E Os Sertões, considerado pelos críticos a obra mais importante? E tantos outros, esquecidos ou deixados para trás? Essas e outras perguntas não são respondidas tão facilmente – a não ser, claro, pela simples escolha de quem cria a lista. Eu, no caso. Sem contar que os  patrulheiros do politicamente correto vão me acusar – sei que injustamente! – de misoginia. Uma mulher, apenas? Bem, pelo menos o substantivo lista é feminino.

Molino & o desespero

Esta postagem é dirigida, principalmente, a quem não conhece Walter Molino. Para mim, um dos maiores ilustradores de todos os tempos, um gênio absoluto do risco, um maestro do movimento. Italiano, produziu boa parte de sua extraordinária obra para o semanário La Domenica del Corriere, o qual, aliás, por conta de seu talento, foi salvo da falência. Conheci o trabalho de Molino há dois anos, quando um amigo, muitíssimo interessado em desenhos e pintura, apresentou-me algumas ilustrações dessa fera. Não, não são tão fáceis de encarar, até porque o desespero, a dor e o desassossego são a fonte primeira de seu trabalho. É só conferir:

A percepção de sua temática é imediata. A bem da verdade, é justamente isso que admiro em seu trabalho: direcionada a quem observa, a ilustração é tão direta quanto possível, impactante na medida extrema, como se o observador desejasse, alucinadamente, saber o que acontece no instante imediatamente seguinte.

Quando vi pela primeira vez, o paradoxo se instaurou: desagradou-me o assunto enquanto admirei profundamente a forma. Aos poucos, acostumei-me ao propósito de Walter Molino: expressar o quotidiano que não imaginamos possível, mas que, de fato, mostra-se diante de nossos olhos, mesmo que não tenhamos testemunhado nenhuma das ações por ele concebidas – mas sabemos que são quase rotineiras.

Walter Molino começou a trabalhar profissionalmente em 1935. Desenhou para revistas infantis e para jornais, mas não se sentia, verdadeiramente, à vontade nesses veículos. Seu traço mordaz precisava de um espaço mais adulto – e foi aí que apareceu o La Domenica del Corriere, do qual se tornou o ilustrador titular e conquistou os leitores que, com frequência, enviavam-lhe cartas questionando a origem das imagens que ele expunha. Que histórias pessoais estavam por trás de tanto desespero e tanta urgência? Molino morreu aos 82 anos, sem responder. E nem havia necessidade disso.

Se houver interesse em saber mais, é só clicar AQUI. Eis o homem, abaixo:

Há 7 anos, uma crônica

Pois é. Fiquei um tempo sem aparecer. Problemas estruturais, que atingiram boa parte dos blogues do OPS! Estou de volta.

Hoje faz 7 anos que publiquei minha primeira crônica em A Gazeta, jornal local. Escrevi mais de 120, em 5 anos de atividade quinzenal, com interrupções. O título: Woody, Machado & as crianças francesas. Como uma homenagem a mim mesmo, uma espécie de cabotinismo improvisado, aí vai:

“Imagine que um determinado livro, ao ser lido, tenha impactado seu leitor de forma tão impressionante que esse mesmo leitor passe a citá-lo quando lhe perguntam quais as obras de sua preferência. Isso é plenamente possível – eu diria até corriqueiro. Woody Allen, o cineasta norte-americano, confessou ao jornal inglês Guardian que Memórias Póstumas de Brás Cubas, do autor carioca Machado de Assis, foi um dos cinco livros que mais influenciaram sua carreira. Isso também é plenamente possível, já que a obra – o título traduzido, Epitaph of a Small Winner, é muito melhor – é tremendamente bem escrita e, para os moldes da provinciana literatura brasileira da época, de uma inventividade sem precedentes. O que me causa espécie é o fato de Woody Allen, tão impressionado com o livro citado, não tenha buscado ler outras obras de Machado. Ou, por outra: não há registros de que ele tenha mencionado, por exemplo, Philosopher or Dog?, que é o título inglês do mais bem acabado livro de Machado de Assis, Quincas Borba.

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Eu me lembro de que, em meados dos anos 80, após ter lido Bem-vindo à Casa dos Macacos, de Kurt Vonnegut, Jr., numa daquelas edições mal traduzidas da Artenova, passei a garimpar, em sebos principalmente, livros desse autor com uma urgência que mal cabia no discurso, já que nem eu mesmo sabia exatamente por que se tornara necessário ler todos os seus livros. Hoje, compreendo que a busca por outros livros de um autor nada mais representa do que a manutenção de um diálogo que se estabeleceu na primeira leitura e que se deseja contínuo, arrastando-se por outras obras até que o leitor, por motivos que dizem respeito somente a ele, queira dar um fim a esse, digamos, bate-papo.

E por falar em diálogo, e também em Machado de Assis, tenho-me incomodado com uma questão, que certamente se liga Mr. Allen. Simples: creio eu que o cineasta, já que afeito à palavra escrita, tenha-se relacionado com o texto machadiano de forma adulta – ou seja: leu-o com a maturidade necessária a uma compreensão que favorece não somente o leitor, mas também o texto. Em outras palavras: os livros do autor carioca – assim como acontece com vários outros autores – exigem daqueles que os leem um certo costume de boa leitura, uma apreensão criteriosa do texto literário, uma intimidade com textos que desafiem o leitor. Isso não retira, em absoluto, a possibilidade de ler tais textos como passatempo, hobby. Fiquei sabendo, há uns dois anos, que o texto machadiano Conto de Escola havia sido, numa tradução, adotado para crianças francesas de 8 a 10 anos de idade.

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Eis a questão: será que crianças nessa idade, mesmo que bem orientadas por professores tarimbados, têm condições de perceber o pessimismo irônico de Machado e, mais ainda, que a corrupção pode ser fruto circunstancial da infância? Refrescando a lembrança: o personagem central do conto – e também seu narrador – é um menino de nome Pilar, que aceita dinheiro de um colega para fazer-lhe um trabalho escolar, mas que, ao final, por circunstâncias alheias a sua vontade, acaba ficando sem o pagamento. Se possível fosse, o menino manteria consigo a quantia obtida com a venalidade. Não há esperanças para ele. O destino está traçado. Sem contar que a corrupção, no conto, tem um viés sensual que desafia qualquer professor a traduzi-lo para crianças – francesas ou não.

Ler Machado de forma superficial é um pecado de escala estratosférica. Por outro lado, é sempre bom saber que um escritor de sua envergadura aproxima-se de leitores infantis. Desmistifica-se, então, a ideia de que a literatura brasileira do século XIX é inacessível à garotada. Mas o que pergunto é se a coisa funciona. Aquele sutil questionamento sobre moralidade, as nuances que proporcionam breves confusões ao leitor, as obliquidades, o camuflado deboche às instituições – haverá uma tradução francesa capaz de captar essa atmosfera? Pode até ser, mas crianças de 10 anos serão capazes de perceber isso? Se não, quem perde, de fato nessa história, é o texto.”

 

Vilões do Celuloide

Gosto de conversar com intelectuais. Considero-os o topo da cadeia, algo sacrossanto, estão a um passo da iluminação. Não estou sozinho nisso porque eles também se consideram assim. Conheço vários deles, e ligados também a múltiplas áreas. Quando versam sobre algo de que já ouvi falar, limito-me a aprender mais porque assim devem se comportar aqueles que reconhecem o próprio limite – no caso, eu. Há um tipo de intelectual que todos apreciam ser, até porque, para isso, não há necessidade de uma formação específica, nem muitos anos de estudo ou dedicação. Essa rara criatura é o conhecedor de cinema. Não, não falo de estudantes, críticos ou teóricos do assunto. Não é tão simples assim. Refiro-me aos reais conhecedores, àqueles que se esparramam pelas mesas de bar, loquazes, usam sandálias, discursam trechos inteiros de Herr Nietzsche e defendem, com os olhos rútilos, a produção cinematografia paquistanesa. Geralmente, perto deles, sou todo ouvidos. Meia hora de papo e me sinto diante de uma respeitável Pauline Kael regional.

Ouço-os falar de cinema. Todos eles assistiram às películas cruciais à formação cerebral do homem civilizado. Têm conhecimento sobre tomadas, sobre fotografia, sobre linguagem, sabem como adequar a música ao movimento, reconhecem o bom e o mau desempenho deste ou daquele ator, palpitam sobre figurinos e opinam sobre edição. Eu, de minha parte, gosto de ouvir e, como já mencionei, de aprender. Algo, porém, foge à minha compreensão: por que o cinema norte-americano virou o vilão da história? Por que, em roda de intelectuais, é tomado como o resumo da estupidez, da lepra visual? É claro que se tornou moda – há muito – elogiar o cinema indiano, o iraniano, o neozelandês, o europeu. Também é claro que têm eles seu valor. Há quarenta e cinco anos a coisa era assim: a Nouvelle Vague, o Cinema Novo e o Neorrealismo italiano formavam a trindade intocável do celuloide. Fellini, Glauber e Godard eram populares como Mickey Mouse e Donald Duck. Aos cineastas norte-americanos sobrava o vácuo intelectual.

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Acredito, com todo o respeito que os intelectuais merecem, que há um certo equívoco ao considerar o cinema lá de cima um cinema menor. Penso justamente o oposto. Não consigo vislumbrar nada melhor do que os filmes de Billy Wilder – que era austríaco mas fazia cinema americano como poucos. Alguém viu Farrapo Humano? Crepúsculo dos Deuses? A Montanha dos Sete Abutres? Pacto de Sangue? (Descartei as comédias porque sei o que a intelligentsia pensa delas). Quem, dentre os europeus, filmou melhor que Howard Hawks e John Ford? Falem a verdade. E quanto a Frank Capra, Robert Wise, George Cuckor, John Huston, Orson Welles, Elia Kazan, Stanley Kubrick, Sidney Lumet, Mervin Leroy, Otto Preminger, Raoul Walsh, Samuel Fuller, Fred Zinneman? Isso só citando o primeiro time, porque os reservas também goleavam. E mais: muitos estrangeiros, ainda que despidos do american way, fizeram filmes norte-americaníssimos, como Fritz Lang, Alfred Hitchcock, Jaques Tourneur e Douglas Sirk.

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Ok, tinham os melhores diretores. Tinham tudo, então? Não. Como qualquer intelectual sabe, se não há uma boa história sendo contada, não há um bom filme. Martin Scorsese – que bem poderia vestir a camisa de titular, assim como Francis Coppola, também itálico – já dizia isso. Tinham também os melhores roteiristas, muitos deles os melhores escritores na época: do sisudo William Faulkner ao obsessivo Dalton Trumbo, passando por Leon Uris, Gore Vidal e Tenessee Williams. Junte um bom barco e um bom timoneiro e não haverá oceano intransponível. E possuíam os melhores fotógrafos, os melhores cinegrafistas, os músicos de excelência, os figurinistas de primeira linha. Tudo isso porque tinham dinheiro? Bem, souberam aproveitar a grana criando uma fábrica de sonhos, que, para muitos – pelo menos para alguns atores e algumas atrizes –, tornou-se uma fábrica de pesadelos, mas isso fica pra depois.

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Penso – e isso é apenas uma opinião – que não se deve tomar como base o cinemão industrial cujo objetivo é produzir entretenimento e que serve para enriquecer ainda mais os chefões judeus dos grandes estúdios. Há setenta anos também era assim, mas com mais estilo e glamour e mais histórias bem contadas – e com menos propaganda. Mas o que dizer de Woody Allen, David Mamet, Robert Altman, John Landis, Lawrence Kasdan, Ridley Scott, James Ivory, Spike Lee, George Lucas, Steven Spielberg? Muitos desses estão vivos e produzindo, cada um a seu modo, um grande cinema. Muitos chegam a fazer suspirar os estudantes de comunicação, mesmo quando ninguém está olhando. Não entro na seara da animação ou dos documentários, nem na dos talentos revelados pelo Sundance de Mr. Redford, no cinema independente, no underground, nem nessa nova safra de diretores que tentam – com êxito, a meu ver – expor um novo caminho para a ficção do écran, como Tarantino, Sam Mendes e Richard Kelly. Demonizar o cinema norte-americano tornou-se a ordem do dia, mas uma ordem que se estende por pelo menos cinco décadas. E olhe que os verdadeiros demônios dessa história – os produtores, os doughmen – nem entraram neste texto.

Gil, o roqueiro

O rock, como se sabe, instaura-se em nossa vida durante a adolescência. Poucos são os casos em que um indivíduo maduro, após ter experimentado gêneros musicais variados, tenha desembocado no rock como descoberta e como predileção. Não conheço alguém que tenha feito esse caminho. Deve haver alguém neste mundo, mas ignoro-o. Embora não seja meu gênero preferido – já disse isso em alguma postagem -, tenho apreço por algumas bandas e por alguns intérpretes. Elvis, Joe Cocker e Roger Daltrey moram em meu coração. The Who, Stones, Allman Brothers, Pink Floyd e Lynyrd Skynyrd estarão no meu funeral – metonimicamente falando. Hendrix e Rick Wakeman também. Sim, Rick Wakeman. Pode caçoar. Sou fã.

Sou fã também de Gilberto Gil, que em meados dos anos 1960, nutriu-se de rock a ponto de nos proporcionar um movimento que muito tinha do citado gênero: o Tropicalismo. Fã confesso de Jimi Hendrix, Gil percebeu que as poucas saídas – ou entradas – para a música brasileira era o rock. Foi entusiasta dOs Mutantes, a grande banda progressiva brasileira. Não conheço nada melhor, ao menos não entre brasileiros. Dia desses, conversando com um amigo, um autêntico detrator do rock, ouvi-o afirmar que não reconhece qualidade nas letras das canções roqueiras. Para ele é um festival de bobagens que acaba corroborando a ideia de que rock é coisa para adolescentes. Citou Titãs, Paralamas, Cazuza, Ultraje a Rigor, Blitz, Plebe Rude, Legião Urbana, Lobão, Camisa de Vênus. Desafiou-me a encontrar algo que se pudesse classificar, em termos textuais, como satisfatoriamente adulto. A expressão foi dele.

De imediato, não encontrei. Lembrei-me, então, de Roque Santeiro, o rock, tema de Gil que compõe o magistral disco Dia Dorim Noite Neon, de 1985. É uma aula de como se faz uma canção em homenagem a um gênero. É um rock para o rock, metalinguístico, positivo, questionador. Além das escancaradas referências ao BRock, que ganhava força e se estabelecia na cena musical brasileira, Gil explica por que se deve abrir o coração para o rock, símbolo da juventude, do questionamento, da insatisfação, do desejo incontido, da força poderosa. E com uma letra absolutamente bem armada, carregada de ironias, jogos de palavras, metáforas precisas. Sim, é uma beleza. Ouça e veja, AQUI. Dê um desconto, claro, para os costumes vestuários de 33 anos atrás. Mas ouça!

Resultado de imagem para brock rock brasileiroLi o livro BRock – o rock brasileiro dos anos 80, de Arthur Dapieve. Vale a leitura, embora eu o tenha considerado, quando li, indulgente demais. É um panorama, tão vasto quanto possível, de um movimento que devolveu à juventude o vigor que, num certo sentido, ela havia perdido. Resolvi, antes de escrever este texto, passar os olhos no livro, que li há 18 anos. Realmente meu amigo tem razão: textualmente falando, o mundo adulto passa longe. Mas isso o desmerece? E quanto a Gil? Bem, creio que o papo é outro. Gil homenageou, como eu disse, todo o movimento. Acreditou nele. Claro que não podia prever os desastres que se tornariam Roger, do Ultraje a Rigor, e Lobão, mas isso é outra história. O rock não merece que se discuta esse pormenor.

Seinfeld versus Friends

Rendi-me à Netflix. Vale menos do que se propaga, mas, ainda assim, merece uma checada. A parte boa: além de algumas boas séries (a maioria sugerida por meus alunos), há Seinfeld.  Sim, ele mesmo, com os deliciosos microcapítulos de Comedians in Cars Getting Coffee e Jerry Before Seinfeld. Só isso já valeria ficar em frente à tevê. Vasculhando mais, encontrei a série Friends, completinha, sem pôr nem tirar. Mas por que falo isso? Eu explico.

Não sei quem disse que, daqui a 100 anos, os americanos serão reconhecidos por 3 elementos básicos: a sua Constituição, sintética e eficaz, o jazz e os filmes de faroeste. Eu diria 4: as sitcoms, as comédias de costumes de 25 minutos que, de uma forma inequívoca, demonstram o que os ianques pensam e como agem. É claro que todo o mundo conhece Friends, que a cada episódio fazia um balanço do dia-a-dia de seis amigos – homens e mulheres, em igual número – na atribulada New York dos anos 90. Das piadas de Chandler à beleza refulgente de Rachel, os amigos faziam rir – ainda fazem, em reprises – com seu humor ligeiro e em alguns momentos piegas.

Summarizing All Seasons of 'Friends': The Hit Sitcom that Has Made Us Laugh  for Decades - Hollywood Insider

O sucesso de Friends não residia somente no seu timaço de vistosos atores/competentes humoristas, mas principalmente nas resoluções alto-astral de cada episódio. Assistindo a Friends, aprende-se sobre solidariedade, sobre lealdade, carinho, confraternização e amizade – tão caros nos dias de hoje, e mais raros ainda em cidades grandes, onde reina o pessimismo e onde o egoísmo é carta marcada. É algo cristão. O título é apropriadíssimo: nada é tão importante quanto os laços que nos unem a pessoas de origens distintas que invadem nossa vida e fazem dela algo mais fácil de suportar. Eram doces, todos eles – cada um a seu modo. Muitas vezes a taxa de glicose superava o limite tolerável, mas a desmiolada Phoebe e o medíocre ator Joey (com sua charmosa burrice) seguravam o barco – e não deixavam que ele afundasse. Seinfeld, a meu ver, trabalhava na contramão, e talvez esse seja seu mais precioso segredo.

Jerry Seinfeld fazia o papel de si mesmo, um judeu com cara de passarinho. Nem bonito nem atlético, o meia-idade Jerome era o exemplo do politicamente incorreto. Daí seu charme transgressor e sua empatia com um público que desejava muito silenciosamente que o mundo acabasse. Vivia num cubículo e frequentava um coffee-shop decadente, ponto de encontro de um grupo tão heterogêneo quanto engraçado. Jerry era um humorista bem-resolvido, mas não tão bem-sucedido, seus pais eram neuróticos, muitas vezes chatos, e ele os amava mais quando estavam na Flórida, a milhares de quilômetros. Tinha 3 amigos tão politicamente incorretos quanto ele: o baixo, calvo e complexado George Costanza; a pequena, inquieta e interesseira Elaine Benes, e o incompreensivelmente alucinado Cosmo Kramer.

Quem lhes cruzasse o caminho era invariavelmente chicoteado pela mordacidade das piadas cáusticas, pela falta de solidariedade, pelo desprezo por aquilo a que nós chamamos raça humana. Ninguém era poupado, nem eles mesmos. Com frequência, George sentia-se satisfeito por ver Jerry em apuros. Os deboches direcionados a Elaine eram constantes. Kramer não era levado a sério: suas idéias mirabolantes e sua capacidade de raciocínio confundiam a todos – os espectadores inclusos. Mas a incorreção política desses 4 cavaleiros do fim-do-mundo constituía seu patrimônio maior porque nos fazia rir daquilo que estávamos – e sempre estaremos – impossibilitados de fazer: não obedecer a essa neurose carregada de regras – muitas delas idiotas – que invade o Ocidente e faz de nossa sociedade um grupo de caretas. Infelizmente – ao menos por enquanto -, os capítulos de Seinfeld não estão disponíveis na Netflix.

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Muita gente vai dizer que não se pode comparar Friends com Seinfeld. Pode ser. Mas convém lembrar que ambos conheceram a estratosfera do sucesso nas comédias de costumes, e fizeram o mundo rir. Têm, portanto, algo em comum, inclusive o fato de que sobrevivem apenas na memória e nos revivals. E, no caso de Friends, na Netflix. E como se diz por aí, se há algo em comum, a comparação é inevitável. Ok, evitemos. Então fale você. Se você tem canal por assinatura, dê uma checada nos 2 sitcoms e diga a verdade: em qual você preferiria estar?

 

Blue Note, capas

Em janeiro de 1956, Francis Wolff, executivo da mitológica gravadora Blue Note, conheceu Reid Miles, um artista comercial fã de música clássica. A empatia foi imediata e, após uns drinques e uma proposta financeira bastante razoável, Reid se tornou o designer das capas da gravadora – algo que durou 11 longos anos. Alfred Lion, fundador da Blue Note, e Francis Wolff , fotógrafo, diziam o que queriam numa capa e deixavam que Miles desse vida visual ao que imaginavam (incluindo aí as fotografias do próprio Wolff). O resultado foi um sem-número de magníficas capas que se tornaram, além da excelente música que ilustravam, um caso à parte. Se você tem uns dólares para gastar, pode comprar The Cover Art of Blue Note, uma coleção, em dois volumes, do que Reid Miles produziu.  São quase 400 capas. Se você não tem esses dólares, aproveite esta postagem e estes exemplos abaixo:

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Reid Miles tinha pedigree: passou pelo Chouinard Art Institute de Los Angeles., onde desenvolveu técnicas de design tão inovadoras quanto ricas em significado. No começo dos anos 1950, foi contratado pela revista Esquire, e a partir de então Francis Wolff resolveu contratá-lo pára desenvolver as capas dos lps de 12 polegadas. Deu no que deu: as capas da Blue Note são o que de melhor existe na cover art jazzística. Eu arriscaria dizer que são as melhores capas de qualquer gênero, mas há quem discorde disso.

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Eis aí um problema que o cedê não resolve. Pode até purificar a música, mas não consegue fazer justiça às capas. As dimensões reduzidas impedem que se vislumbre a genialidade de Reid Miles em sua amplitude. Nem tudo, todavia, está perdido: nos últimos anos, muito desse material foi reeditado em vinil – em seu formato clássico e original, o que permite à garotada interessada em jazz aproveitar toda a beleza da arte produzida por Reid Miles e por seus seguidores. Sim, eles existem. Mas isso é papo para depois.

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Filmes (re)vistos #2: Clube dos Cafajestes, 1978

Críticos de cinema não gostam muito de comédias, embora reconheçam que Quanto mais Quente Melhor, de Billy Wilder, seja um dos grandes filmes já feitos. Como não sou crítico, eu gosto – e muito. E mais ainda dos filmes de John Landis, quando este se propõe fazer rir sem sequer passar perto dos recursos do slapstick, ou pastelão. John Landis fez, só para início de conversa, Os Irmãos Cara-de-Pau (The Blues Brothers, 1980) e Clube dos Cafajestes (National Lampoon’s Animal House, 1978). Poderia se aposentar com a certeza de dever cumprido. Ambos são protagonizados por John Belushi, o ator iconoclasta e anárquico que aporrinhava todo diretor com quem trabalhava. Com Landis, John Belushi comportou-se porque tinha um rival: o próprio Landis.

Escolho um para rever e comentar: Clube dos Cafajestes parece ser uma comédia para adolescentes – e é. Mas não para adolescentes que ouvem Jota Quest e passam horas e horas nas academias e de joelhos rezando para Youtubers sem graça e sem cérebro. Se você é um deles, esqueça. Tem de ouvir o Velvet Underground e gostar de dormir até tarde.

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O filme é sacana, despudorado, politicamente incorreto, debochado e esmaga sob o chinelo a própria adolescência que se preocupa em ser exemplo para a família. Daí se perceber que no filme ninguém presta – nem os estudantes certinhos que, em sua maioria, são rancorosos e egoístas. Belushi fala pouco – suas gags são físicas, seja no corpo, seja no rosto de sobrancelhas móveis como lagartixas. Donald Sutherland – um professor de literatura chatíssimo que fuma baseados diários – está impagável. A Festa da Toga – no fim da postagem, como aperitivo –, em que ninguém é de ninguém, é um dos grandes pontos altos de um filme feito para as alturas. Mas o bacana na película é o clima de guerra entre as fraternidades – o que já é uma contradição em termos. De um lado, os ajustados Ômegas; de outro, aqueles para quem eu torço: os Deltas. É o fraque contra o farrapo, e, no final, o farrapo sai ganhando – e, para sedimentar a vitória, destrói o desfile oficial da cidade.

Clube dos Cafajestes não pode passar na Sessão da Tarde. Há cenas consideradas desaconselháveis para menores – por isso ele é reprisado, de vez em quando, nesses corujões da Globo, durante as madrugadas insones. Não está na Netflix. Se estiver, não consegui achar. Se você dorme até tarde, é porque fica acordado durante toda a noite. Ou faça como eu: tenha o filme em casa, em blu-ray, recém comprado – é muito melhor. A propósito: se você não sabe quem é John Belushi, apresento-lhe:

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AQUI, um aperitivo.

Fala! #5: Juan Carlos Onetti

Assim que eu contar a elas que estamos chegando vão começar a conversar, a pintar-se, lembram do seu ofício, estão ficando mais feias e velhas, fazem cara de mocinha, baixam os olhos para examinar as mãos. São três e não demorei quinze dias. Barthé tem mais do que merece, ele e toda a cidade, embora talvez riam ao vê-las e continuem rindo durante dias ou semanas. Já não têm quinze anos e estão vestidas de jeito a esfriar o ânimo de um fauno. Mas são gente, são boas, são alegres e sabem trabalhar.

Junta-Cadáveres

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