As pin-ups de Mr. Elvgren

No último 15 de março Gil Elvgren fez 100 anos, embora, oficialmente, tenha sido enterrado há mais de 4 décadas. Deu para entender? Não? Eu explico o óbvio. A arte imortaliza seu criador, de modo que o extraordinário talento desse artista plástico – um desenhista e pintor de primeiríssima linha – faz dele uma figura que ainda vive. Se você não sabe de quem estou falando, vai saber agora. Gil Elvgren (nascido Gillette Alexander Elvgren) foi quem melhor nos apresentou as pin-ups. Se você também não sabe o que é uma pin-up é só olhar abaixo:

Mulheres com sex-appeal de fazer os machos babarem na gravata. Belas em cenas cotidianas, representadas por mulheres brancas porque seus consumidores eram wasps que escondiam a vergonha a sete chaves. Não sei como reagiriam se Mr. Elvgren resolvesse transformar mulheres pretas em símbolos sexuais desenhados. As dificuldades temporais eram claras: os norte-americanos anos 1940, quando suas mulheres ofuscaram a guerra, não combinavam com a beleza de uma minoria hostilizada e segregada. Lamentavelmente, porque seria uma grande festa de beleza e miscigenação.

Os cabelos castanhos – de preferência claros – eram uma marca frequente das mulheres de seu estado de origem, Minnesota. Ruivas e morenas também figuram no panteão vulgívago de um pintor que parecia limitado a um segmento específico de desenho – e que limitação! As pernas, quase sempre longas e firmes; o nariz simétrico, cabendo perfeita e adequadamente ao rosto levemente arredondado e cuja marca irresistível eram os lábios, avermelhados e fazendo “biquinho”. Pin-up é isso. É clichê, e levantemos as mãos ao céu por um clichê como esse existir.

Elvgren ficou rico. Fez trabalhos para a Coca-Cola e para a General Electric. Ilustrou histórias para o Saturday Evening Post e para a famosa e influente publicação Good Housekeeping. Sem contar as publicações esparsas pelas quais cobrava valores mais altos do que o mercado comumente cobrava. Bem, sendo ele o único com aquele traço, seu preço era diferenciado, mesmo sendo ele influenciado confesso por cobras como Charles Dana Gibson, Howard Chandler Christy e Andrew Loomis. São craques mesmo – é só clicar nos nomes para confirmar.

O processo criativo não era complexo. Após fotografar a modelo na posição desejada, transformava a fotografia numa pintura. As  modelos, instadas a protagonizar cenas quotidianas, eram transformadas em arte – e os homens, agradecidos (como eu), batiam palmas. Aparentemente fácil de fazer. Se você, sexto ou sétimo leitor, tiver talento, pode tentar. Acho que é melhor não.

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AQUI, um aperitivo.

A casa de Ahmet

Ahmet Ertegün foi patrão de Pelé, do Led Zepellin, de Ray Charles, de Aretha Franklin e dos Rolling Stones. Está bom para você? Foi chefão, junto com Herb Abramson, da Atlantic Records e do NY Cosmos, compôs várias canções, entre elas o clássico Mess Around, imortalizado pelo citado Ray Charles. Apaixonado por arte moderna, era um colecionador de marca – aquele que consegue, com seu prestígio, embutir valor em obras pouco conhecidas para, mais tarde, ganhar mais dinheiro ainda. Já era rico quando chegou aos EUA. O pai, embaixador da Turquia naquele país, amava a música – assim como a mãe, que levou os filhos a ouvir o que valia a pena.

Sua primeira paixão foi o jazz – que o levou ao ao rhythm and blues e, depois, ao rock, cujo apogeu presenciou e, de certa forma, colaborou para que existisse. O documentário mostra isso. Entrevistas com Mick Jagger, Keith Richards e Robert Plant – que se tornaram amigos pessoais dele – expressam, através do bom humor e com doses cavalares de gratidão, o que Ahmet Ertegun foi capaz de fazer. Não só por eles, mas pela música e por sua difusão.

A gravadora Atlantic é um braço da Warner Music Group, um colosso de produção musical. O jazz, especificamente, ficava sob o guarda-chuva de Nesuhi, irmão mais velho de Ahmet, e também alucinado por música. Foi ele o responsável por virem à superfície discos fundamentais de Charles Mingus, Ornette Coleman e John Coltrane. O dedo de Midas, entretanto, era de Ahmet, cujos olhos viam que o futuro pertencia à juventude e, portanto, ao rock.

Há quem torça o nariz – eu, por exemplo – para o cast da Atlantic, hoje. AQUI você entende o por quê. A questão mais importante é histórica, é o legado, a transformação. O que Ahmet Ertegun construiu não foi somente uma gravadora poderosa e fundamental – mas realmente uma casa, que abrigava filhos distintos, com visões tão distintas quanto. E que fizeram do século que passou, e ainda deste, o registro sonoro do que eles representaram. Só para constar: Ahmet não está mais entre os vivos. Morreu há 18 anos, após uma queda num show dos Stones, quando entrou em coma.

Morre Ahmet Ertegun, Midas da Atlantic Records

AQUI, o documentário na íntegra, sob a direção de Susan Steinberg. Caso queira saber mais.

Sammy Davis, Mike Curb

Já disse e repito: Laurindo de Almeida é um dos grandes artistas brasileiros. Os norte-americanos sabem disso melhor que nós, conterrâneos do violonista. Escrevi sobre ele AQUI, na mesma postagem em que mostrei minha predileção por Sammy Davis, Jr., um dos maiores cantores populares dos EUA. Ok, deu o azar de ter nascido no mesmo século de Sinatra e Bing Crosby, mas está no top 5, se é que um top 5 se faz necessário. Sammy é craque: seja no swing, no jazz, no blues, na Bossa Nova. Dividiu com Carmen McRae um dos melhores discos de pop jazz que conheço, e sobre o qual escrevi. Quer ler? Clique AQUI.

E quanto a Mike Curb? Já ouviu falar? Possivelmente sim, mas, por descargo de consciência, aí vai uma súmula: produtor musical, compositor de primeira, ex-vice governador da Califórnia, chefão de eventos esportivos automobilísticos, cristão até a medula e criador de um dos grupos vocais mais bacanas dos anos 1970, The Mike Curb Congregation. E daí? O que Sammy Davis, Jr. tem a ver com isso? Pois o distinto cantor se encontrou com o grupo vocal e produziu um disco/coletânea extraordinário, intitulado Best of Sammy Davis Jr. and The Mike Curb Congregation. Eis a capa:

A potência vocal de Sammy, limpa e precisa, combinada ao primor melodioso do grupo, resultam numa festa – na melhor acepção que essa palavra possa ter: alegria, diversão, qualidade musical, técnica, identificação, entusiasmo. Temas já consagrados como The Candy Man, That Old Black Magic, I Can Do That e Singing in the Rain estão lá – sem contar a deliciosa Keep Your Eye on the Sparrow, tema do seriado policial Baretta, que passava na Globo nos anos 1970. É também conhecida pelo título óbvio de Baretta’s Theme. O título, numa tradução livre, é algo como Fique esperto!

Sammy Davis, Jr. | Biography, Movies, & Facts | Britannica

Não é fácil – aliás, nunca foi – encontrar discos de Sammy Davis, Jr. no Brasil. Tenho alguns vinis e alguns cedês, mas, levando em conta a discografia desse enormíssimo cantor (47 discos oficiais), conheço pouco do que ele deixou registrado. O Spotify ajuda um bocado, embora esse disco da postagem não esteja lá. Em compensação, o disco dele com Buddy Rich, The Sounds of ’66, e o fabuloso encontro com Count Basie, Our Shining Hour, estão lá. Se você não conhece nenhum dos dois, está perdendo. Ganha quem ouve Sammy Davis, Jr., um dos maiores cantores populares do século passado. Não, não duvide dessa afirmação. Ouça e me diga se estou certo.

Blank & eu: pergunta e paradoxo

A Gazeta | Polícia prende homem que confessou assassinato do poeta Sérgio BlankNeste mês de abril, ano corrente, entrevistei – no meu podcast Vitrine Literária com Francisco Grijó – duas personagens por quem tenho imenso respeito: o poeta e romancista Caê Guimarães e o pesquisador e professor Vitor Cei. O assunto: a poesia de Sérgio Blank, esse senhor ao lado, artista maiúsculo, um dos grandes de sua geração. Sérgio teria feito 60 anos neste mês, caso não tivesse sido acometido de uma tragédia que o fez não estar mais entre nós. Faz falta, sim: em presença e em palavras.

Caso meus seis ou sete leitores queiram saber o que se disse sobre Sérgio Blank e sobre sua produção literária, basta acessar o conteúdo, seja no Spotify, seja no Youtube. Não é, contudo, sobre isso que quero falar, mas sim sobre um livro organizado por esse poeta, intitulado por que você escreve? Sim, com minúsculas. Por uma coincidência, eu e Caê estamos no livro, expondo depoimentos dos motivos que nos levaram a esse triste porém irresistível destino.

O livro, metalinguístico em sua gênese, quer uma resposta – e essa resposta é dada pelos inquiridos da vez, cujos nomes é possível ler (com lupa) na capa, à esquerda. Eis a questão: por que se escreve? Minha resposta foi tão lacônica quanto honesta (e paradoxal): escrevo porque gosto, porque me diverte. E – verdade seja dita – imaginei que minha relação com as mulheres fosse ser facilitada. Engano. As garotas da minha geração, ao menos na época em que comecei a escrever, gostavam de músicos. Escritores eram gente esquisita.

É uma pergunta que não faço a quem eu entrevisto em meu podcast. Não sei se haverá resposta que mereça ser ouvida, ser partilhada. É algo, penso eu, pessoal e intransferível. É a angústia e o prazer, ambas subjetivos, intrínsecos, que só dizem respeito a quem produz literatura. Respostas de jornalistas e de todos os pensadores que lidam com a palavra escrita têm um objetivo: informar, e ainda bem que existe a palavra destinada a isso. Quanto a nós, romancistas, poetas, cronistas, contistas, dramaturgos, bem, digo que, de fato, não interessa por que se escreve – mas o que se produz. Isso, sim, vale a leitura.

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*Copie e cole os links no seu navegador para assistir às duas partes do bate-papo:

PARTE 1

https://www.folhavitoria.com.br/videos/folha-vitoria/vitrine-literaria/lTQbYrPG6Zo

PARTE 2

https://www.folhavitoria.com.br/videos/folha-vitoria/vitrine-literaria/5mQtBCIkXWU

3 loiras e o afrodisíaco perverso

O diretor norte-americano Jay Roach ganhou dinheiro fazendo comédias que agradaram adolescentes e adultos. Exemplos? Os três filmes da série Austin Powers e aqueles em que o genro Ben Stiller é obrigado a enfrentar o sogro Robert De Niro. São bons para rir, mesmo abusando do pastelão em alguns momentos. Jay Roach fez, também, filmes que adultos podem consumir sem medo de não se divertir: o ótimo Trumbo, de 2015, e O Escândalo, de 2019. É justamente nesse último que aparecem as 3 loiras do título.

Bombshell (2019) - IMDb

As três belezuras acima são as peças centrais de Bombshell, que significa, em termos gerais, bombástica. No Brasil, O Escândalo. Bombshell também foi um termo criado por Hollywood para definir mulher muito atraente – e geralmente loira. Da esquerda para a direita: Charlize Theron, Nicole Kidman e Margot Robbie. É claro que você conhece as três. Assim como conhece o tema da película: o assédio sexual que, ao fim e ao cabo, tem a ver com poder. É obra biográfica, quase documental, já que é baseadíssima num fato ocorrido.

O macho opressor, em questão, é Roger Alies, CEO da Fox News, interpretado pelo sempre ótimo John Lithgow. É o canalha que usa o poder para abusar das mulheres, objetificando-as independentemente de serem ou não competentes, de manterem a audiência e de trabalharem mais do que deviam. O cinema precisa disto: tocar numa ferida que, mesmo exposta, em muitos casos torna-se invisível porque, também em muitas situações, o trabalho feminino não é observado. Intoxicadas, as mulheres reagem, e a reação, claro, gera uma boa grana. Mais do que merecidíssima.

Atores de O Escândalo: elenco completo do filme

Hollywood já havia experimentado o assédio inverso. Muita gente se lembra dos maus bocados que Michael Douglas passou nas mãos de Demi Moore, em Assédio Sexual, filme de Barry Levinson, feito há 30 anos. Jay Roach optou por contar uma história sobre o poder na mídia, principalmente na tevê, ambiente que seduz os americanos. O exercício do poder pode ser perverso e corrompido – mas há um preço para isso, embora nem sempre seja pago. O recém-falecido secretário de estado norte-americano Henry Kissinger dizia que o poder era o afrodisíaco definitivo. Talvez tenha razão, mas esse filme – ainda bem! – o contradiz.

Jorge, Oswaldo & minha sogra

Ganhei de minha sogra, boa professora aposentada de literatura e, portanto, apreciadora das belles lettres, os três livros que compõem os diálogos entre Jorge Luis Borges, o enormíssimo ensaísta, contista e poeta argentino, e o jornalista (e também afeito à poesia) Oswaldo Ferrari. Leitura fluente, para quem já é iniciado nas obsessões borgeanas – tempo, labirintos, escrita antiga, literatura inglesa, Buenos Aires, mitologia escandinava, filosofia, o ato de escrever – e para aquele brasileiro curioso e ignorante que não entende como um cegueta manco (e argentino) pode ser um ícone literário de todos os tempos. 

Se completa la trilogía de los diálogos de Borges y Osvaldo Ferrari traducidos al chino

Imagine um programa de rádio em que se fale de literatura, de filosofia, de história, de sonhos, de lendas. Um bate-papo entre dois homens cujo interesse intelectual transgride as preferências superficiais da maioria dos viventes. Pois é. Esses três livros que me foram presenteados pela sogra tratam justamente disso. São conversas que foram, mais tarde, transcritas para o jornal Tiempo Argentino, um espaço dedicado a quem se interessa por aquilo que a maioria dos brasileiros despreza: a leitura. Os argentinos, por sua vez, levam a coisa a sério.

Livro: Sobre a Amizade e Outros Diálogos - Borges / Osvaldo Ferrari | Estante VirtualEstou terminando o volume cuja capa ilustra esta postagem. Altamente recomendável pela beleza linear da conversa, pela versatilidade dos conteúdos e, principalmente, porque figuras como Edgar Alan Poe, Spinoza, Virgílio, Shakespeare, Bertrand Russel, Swedemborg, Francisco de Quevedo e G. K. Chesterton planarem como aves rarae no céu pintado pelo extraordinário argentino. É ler para crer – e se regozijar. Sim, o prazer dessa específica leitura é potencializado. Aposte nisso.

Jorge L. Borges foi um erudito – e dos bons. Um bom erudito é aquele que traduz o saber grandioso, estimulando quem o lê. Não rechaça o ignorante; ao contrário: consegue seduzi-lo a ponto de torná-lo fiel, mas crítico. Os diálogos, para Borges, são a grande descoberta intelectual, legado dos gregos, a partir da amizade entre Sócrates e Platão, o assunto do título. Daí para Holmes e Watson, ou para Sancho e Quixote, é um pulo, um salto olímpico cuja distância não se mede. Conversar, sei disso, é descobrir.

Beleza, mercado, Sabrina Sato*

Sou fã da sitcom Seinfeld, extinta em 1999, e reprisada em veículo streamin’. Tão fã que possuo os devedês com as temporadas completas, sem pôr nem tirar. Num dos episódios, revisitado para que esta crônica ganhasse vida, o personagem central envolve-se com uma mulher cuja beleza permite que todas as regras sejam burladas. Por exemplo, ao ser multado por excesso de velocidade, o protagonista Jerry, após desdenhar do vigilante rodoviário que o repreende, sugere que a bela namorada vá pedir a ele que cancele a multa – e é prontamente atendida. Por ser bonita, ela consegue lugares em restaurantes concorridos e ingressos em cinemas cuja lotação está esgotada. Tudo se torna possível para ela. A beleza, mais que um cartão de visitas, é uma gazua que viola todas as fechaduras.

As 10 melhores namoradas de Seinfeld na série (que não são Elaine)

Dia desses comentei com alguns amigos sobre as bond girls, aquelas deliciosas coadjuvantes de filmes de James Bond. Citei Barbara Bach e Ursula Andress como minhas preferidas. Ambas belíssimas, embora a suíça Andress não possua, no quesito beleza, rivais à altura. Um de meus amigos, um eficientíssimo professor de Matemática, desconhecendo-as por inteiro, ousou afirmar que, hoje, por estarem envelhecidas, a beleza desfez-se a ponto de apagar, também, a memória daqueles que as admiravam. Nesse ponto ele errou, mas acertou no vaticínio: a beleza ajusta-se, com certa obviedade, à juventude. Não à toa os emplastros antirrugas e as cirurgias plásticas estejam na ordem do dia, trazendo felicidade – mesmo que momentânea – a sofridas senhoras cinquentonas.

E por falar em tevê – e em beleza –, assisti, num canal fechado, ao documentário About Face: Supermodelos Antes e Agora, que trata de um assunto no mínimo curioso: o que é feito de uma modelo quando ela envelhece e a mercadoria que ela comercializa vai desvalorizando até que o mercado – inclemente em suas leis – transforma-a em inutilidade? Algumas delas, segundo se narra no documentário, encontraram refúgio no cinema ou se tornaram mulheres de negócios, mas guardam, ao menos aparentemente, a melancolia de um tempo presente no qual são consideradas produtos secundários dispostos em prateleiras pouco visitadas.

Sabrina Sato aparece com biquíni fio-dental em balançoÉ claro que esse assunto pode ser estendido à mulher comum – e, nesses tempos atualíssimos, ao homem também. A beleza, essa commodity que cria a própria urgência em seu comércio, é uma senhora tão tirana quanto traiçoeira, e sem qualquer vestígio de compaixão. É uma Lucrecia Borgia, uma Ilse Koch. Dia desses, folheando despreocupadamente uma revista de variedades, dessas que habitam consultórios dentários, li que a bela comediante Sabrina Sato prefere ser chamada de burra a ser chamada de gorda.

Não é de se estranhar: a inteligência, algo descartável quando comparada à beleza, não é tão fundamental. Ao menos num país – ou estaria todo o mundo envolvido nessa aceitável perversão? – que rotula os feios, gordos, banguelas, calvos e baixotes de amaldiçoados e condenam ao Tártaro os mal vestidos, os cafonas, os démodés. Não há Paraíso para quem não possa olhar-se no espelho e admirar a si mesmo, para quem não possa orgulhar-se dos bíceps, dos lábios, dos olhos claros, do porte atlético, do traseiro torneado, das coxas malhadas. Talvez eu esteja exagerando, afinal há um grupo – não muito populoso – que ainda privilegia o que se diz e o que se pensa, mas qual sua função e sua serventia?

Enfim, há quem diga que a beleza tem caráter subjetivo – e que, por isso, não pode ser enquadrada em parâmetros ou rotulada como um produto. Quase todos discordam disso – incluindo eu e meu amigo matemático, citado lá no primeiro parágrafo. Segundo ele, um racional discípulo da simetria, a beleza pode ser equacionada. Afirmou que Sabrina Sato é tão valiosa quanto um teorema, e quase tão sedutora quanto o Binômio de Newton.

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*Crônica incluída Doxa – volume 2, em breve nas livrarias.

Jean, Ava & o possível sexismo*

Jean Cocteau, o poeta, romancista e dramaturgo francês, disse que a atriz Ava Gardner era “o mais belo animal do mundo”. Referia-se, claro, ao conjunto da obra, o qual nunca viu, por inteiro. Não se pode dizer o mesmo do baixinho ator Mickey Rooney, do clarinetista Artie Shaw, do meu xará Frank Sinatra e de alguns toureiros, sendo um deles o famoso Luis Miguel Dominguín, que dizia abater mulheres e bovinos com a mesma competência. Esses tiveram a sorte que Cocteau não teve – até porque o francês não apreciava as mulheres. A frase, no entanto, é boa, e traz em seu núcleo uma ideia charmosamente machista. Talvez eu seja criticado pelo advérbio, mas vou correr o risco.

Jean Cocteau: The Juggler's Revenge | Exhibition | Peggy Guggenheim Collection

A afirmação de Cocteau, nos dias de hoje, causaria fúria – e não somente de mulheres, mas de todos aqueles que, munidos de um justificado patrulhamento, tornam réu aquele que transgride regras do bem-viver. A bem-viver leia-se respeito. Há algo de tão grave quanto qualquer patrulhamento: o outro lado, travestido de democrático baluarte da liberdade de expressão, chamar a isso mimimi. Não, não é mimimi, não é reclamação barata nem chatice repetitiva. Vestir a pele do outro não é fácil, mas parece-me a melhor maneira de frear os arroubos arbitrários dirigidos a quem, numa situação específica, está vulnerável.

Tenho um programa – podcast e vídeo – intitulado Vitrine Literária. É um programa semanal em que entrevisto atores ligados à arte das letras, sejam eles poetas, escritores, editores, bibliotecários, leitores, críticos etc. Alguns consumidores assíduos já me questionaram por que há mais homens sendo convidados do que mulheres. Respondi, com a honestidade costumeira, que a matemática é simples: há mais homens expondo o trabalho (livros, no caso) do que mulheres, de modo que é mais frequente a participação masculina do que a feminina. Digo isso com certa angústia, porque, em minha modestíssima opinião, mulheres têm mais sensibilidade para a arte do que os homens. São capazes de enxergar nuances da realidade que os homens, por não terem sido treinados para tal tarefa, têm dificuldades para notar. Não, não estou sendo sexista, embora possa parecer. É apenas uma opinião, e sujeita a apedrejamentos de ambos os lados.

A desastrosa vida íntima de Ava Gardner

E qual o motivo? Provavelmente porque – a História mostra isso – as mulheres foram relegadas a um plano secundário. Repelidas, não puderam protagonizar na pintura, na música, na literatura, na escultura etc. Claro que há exceções – ainda bem! Ava Gardner foi uma dessas exceções. Escolhia os próprios filmes, assim como dizia com que diretor preferia trabalhar. Trocava de marido quando enjoava deles, tinha opiniões polêmicas sobre vários temas e era a mulher mais bonita do cinema de sua época. Provavelmente de qualquer época. Se para você, um filme feito antes de 2000 é tão antigo quanto o teorema de Thales, não fará ideia de quem seja Ava Gardner. O Gúgol revolve isso para você (eu também, é só olhar a foto) – e quando resolver, prepare-se: é possível que você assine embaixo da frase de Jean Cocteau.

*Este texto faz parte do novo volume de crônicas, intitulado DOXA, volume 2. Em breve!

Músicos pintores #3: Bob Dylan

Bob Dylan é o grande trovador norte-americano. Ganhou Nobel, fez um punhado de discos, escreveu letras longas que diziam verdades para a juventude, mudou de gênero uma ou duas vezes, fez rock, fez folk, influenciou gerações e escreveu canções imortais. E ainda por cima usou sua música para aventurar-se numa outra área: a pintura. É o nítido caso da Teoria das Correspondências, de Baudelaire. Bob Dylan assumiu essa ideia, e fez a audição conectar-se à visão numa sinestesia mais-que-perfeita. Observe o quadro Closing Time, de 2020.

See Bob Dylan's Cinematic Paintings, Welded Sculptures and More | Smart News| Smithsonian Magazine

Olho para o quadro e vejo a desolação do blues, o after hours decadente, do submundo, a tristeza exposta como se fosse uma obrigação para a arte. Ouço a música sublinhando significativamente a cena: a melancolia da guitarra, o som da bateria espaçado e simples, cheio de lacunas. Uma possível Marilyn, ao alto, observando, de sua cama, a derrocada de um homem enquanto o ambiente vai-se fechando. Abaixo, Manhattan Bridge, Downtown New York, de 2016, a visão pessoal (e de um ângulo improvável) de um dos pontos mais icônicos de Nova Iorque.

Limited edition Bob Dylan painting collection set to go on display in Bath | Bath Echo

Há algo de Edward Hopper nos trabalhos de Bob Dylan. A solidão das personagens é explícita, tendo a degradação do ambiente como testemunha e consequência. Dylan volta no tempo: opta por retratar uma época extemporânea – anos 1950 e a década seguinte -, como forma de expor parte da cultura norte-americana urbana, desolada, sem perspectivas. Álcool, cigarros, tristeza, blues. Hopper foi o primeiro a ir por esse caminho, compreendendo que, para alguma parcela social, não há saída. Apenas desapontamento. O quadro abaixo tem o título de Florida Keys.

Bob Dylan - Art Works - 2021 Retrospectrum - NSF - Magazine

O trovador não se restringe, entretanto, ao universo da consternação. O trabalho Abandoned Drive-In, Yucca Valley é um exemplo de como se pode observar o abandono de forma positiva: cores variadas sob um céu azulado. Dylan pinta desde 1968. É dele a capa do primeiro álbum do grupo The Band, além de Self Portrait, dele próprio. Em 1973 veio a glória pictórica: a editora Knopf publicou Writings and Drawings, contendo as letras das canções de Dylan + várias ilustrações feitas por ele. Eis aí a correspondência: Baudelaire confirmado por Bob Dylan.

In '*Abandoned Drive-In, Yucca Valley,' a sign points to a swap meet; above it, against a backdrop of blue sky, a sign for the 'Sky Drive-in Theater' by the Forward

Vale a pena checar os trabalhos dele na Halcyon Gallery. é só clicar AQUI.

O universo de Sagan

Li e reli, nestes dias pré-Carnaval, para um absoluto deleite, alguns contos de Philip K. Dick, o volume 5 da Caixinha Preta, que contém, inclusive, a pequena obra-prima Nós Recordamos para você por atacado, que rendeu, há algumas décadas, o excelente longa de aventura O Vingador do Futuro. Entretenimento e ciência, numa linguagem compreensível a qualquer pessoa com um mínimo de senso. Imaginei-me tentando escrever ficção científica e, claro, concluo que tropeçaria num item fundamental: o referencial científico, o qual ignoro como um cego ignora as cores. Não se iludam os meus 6 ou 7 leitores: se algum dia vier à superfície algum texto – curto que seja –, de minha autoria, contendo elementos ficcionais e científicos, podem apostar: é plágio, e merecerei tanto o cárcere quanto o desprezo daqueles que, ao menos por enquanto, têm-me em conta. Estamos conversados.

Não sou íntimo do cientificismo, mas reconheço seu absoluto valor – incluindo aí sua capacidade de ilustrar a arte, de reforçá-la, de torná-la veículo para a comunicação e para a educação. Assisti, quase trinta anos após sua exibição de estreia no Brasil, a todos os episódios de Cosmos, o extraordinário documentário estrelado e coproduzido pelo astrofísico norte-americano Carl Sagan. É acachapante, para dizer o mínimo. Como tentar resumir quase 800 minutos de imagens e texto que transformam a inacessível – ao menos teoricamente – ciência em algo quotidiano? Repito: é difícil, pelo menos para mim. Carl Sagan fez um trabalho social. Mandou às favas a mística de que ciência é coisa para iniciados, cheia de códigos e vocabulários específicos que apenas físicos, astrônomos, biólogos e bioquímicos são capazes de compreender.

Clube de Astronomia exibe episódio de “Cosmos” nesta sexta (12/5) | Instituto de Física

O que me impressionou no documentário foi sua assombrosa atemporalidade, principalmente no que diz respeito à relação homem/planeta, seja ela direcionada ao âmbito ecológico-ambiental, seja ela fincada na questão científica de que é preciso compreender o processo histórico para se chegar a conclusões que hoje facilitam a vida de todos. Embora todo o documentário seja uma apologia à informação, é interessante perceber que Carl Sagan não dedicou capítulos – um só que fosse – à inevitabilidade da internet. Talvez nem ele mesmo pudesse imaginar o que aconteceria dez anos depois. Está tudo lá: desde a história dos grandes homens que fizeram a ciência até as probabilidades quanto à inteligência extraterrestre; dos microrganismos até a mitologia hindu, da biblioteca de Alexandria aos limites da eternidade, passando por teorias e conceitos herméticos como quarta dimensão, anos-luz, velocidades inimagináveis, questões sobre espaço-tempo e diálogos entre cetáceos. Até o Google, muito antes de ser criado, está lá.

Amazon.com.br eBooks Kindle: Cosmos, Sagan, Carl, Druyan, Ann, Geiger, PauloFalo por mim: a ciência seduz quando é bem traduzida, quando se torna comum (nunca banal), quando suas portas e janelas estão tão escancaradas que é possível vislumbrar o que há em seu interior. E qual o óbvio papel dos professores nessa empreitada? Penso que eles existem para tornar a ciência viável, para expor sua sedução e ajudar na sua compreensão. Não há por que distanciá-la do indivíduo ordinário – no bom sentido –, que não domina conceitos e, por triste consequência, ignora conteúdos essenciais. Essa é sua tarefa e – talvez – seu martírio. Quem, a não ser aqueles poucos, interessa-se pela compreensão de funcionamentos, ligações, movimentos, temperaturas, moléculas, vácuo? E quando mostram interesse? São chamados nerds, habitantes de uma outra dimensão. Mas isso é outro papo.

Carl Sagan foi pelo caminho oposto. Cosmos é uma aula saborosa e dinâmica que, mesmo atrasado 30 anos, usufruo como se tudo fosse uma grande novidade. E é provável que seja mesmo.

 

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