Sim, meu voto é Haddad, claro!

Perguntaram-me hoje – como se não já soubessem! – em quem eu votarei no 2º turno. Num determinado momento, naquela fração de tempo mínima, que pode nos levar ao desespero ou ao paraíso, cheguei a me sentir ofendido por alguém me questionar isso. A ofensa passou tão rápido quanto veio. Eu sou um homem de ideias. Sou professor há 38 anos, sou escritor publicado desde 1987, com vários livros no currículo, estou secretário de Cultura da capital, sustento minha família com meu saber literário e gramatical, que levo a meus alunos de forma sempre honesta mas nem sempre mui bem recebida (por eles). Isso sem falar na gestão de políticas públicas para a cidade.

Sendo eu um homem de ideias, tenho de me identificar com quem as possui, mesmo que destoem do que penso e profiro. Em bom vernáculo: para que as ideias de outrem não combinem com as minhas, é necessário, primeiro, que esse outrem tenha ideias. Se não as tem, não admito, em minha humilde prática intelectual, sequer entabular diálogo. Sim, por isso voto em Fernando Haddad, mesmo que em alguns pontos não concordemos. Como aventar a possibilidade de votar em alguém que, sem condições de discutir ideias, puxa uma arma, saca um revólver? Como alguém afirma que vou pelo caminho errado se não ouve meus argumentos, não me permite expressão?

Minha arma sempre foi a linguagem, os códigos, as metáforas, a língua, a literatura, a arte. Aquele que possuir um mínimo de sensibilidade nessa área me é simpático, tem meu voto. Alguns amigos (nenhum deles atuando em minha área) disseram-me que eu, como professor, não deveria revelar meu voto. Em outras palavras: ser professor anula minha cidadania, meu direito à expressão. Posso falar de José de Alencar, de Euclides da Cunha e de orações subordinadas, mas não posso dizer, onde quer que eu esteja, que voto em Fernando Haddad. É isso mesmo? E aqui, no meu blogue, posso?

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Deus aos 78

Nunca escrevi sobre esporte neste blogue que, aliás, é destinado a expressões artísticas e culturais: livros, cinema, fotografia, música, quadrinhos, blablablá. A categoria Mulheres foge à regra – mas é uma boa causa, claro. Resolvi, hoje, falar de esporte e, nessa categoria, escolho o mais popular de todos (e do qual mais gosto, ao lado do boxe e do basquete): o futebol. E dentro do futebol, escolho o que esse esporte produziu de melhor: Pelé, que, amanhã, 23 de outubro, completa 78 anos. Se você não o conhece, aí vai uma foto sem rosto (apenas silhueta), para atiçar sua lembrança:

Fico imaginando, num exercício fantasioso, Pelé com 23 anos, hoje. Creio que não haveria uma combinação tão perfeita entre marketing e produto. Embora eu não seja especialista na coisa, acredito de verdade que, com todo esse aparato midiático (internet, tevês a cabo, aplicativos) e marqueteiro (empresas de material esportivo, principalmente), não haveria um produto, no futebol, que rendesse maior dividendo. Pelé seria mais lendário do que é hoje, um atleta que fica para sempre, incluindo aí o imaginário de pessoas que sequer se interessam por futebol. Um fenômeno absoluto.

Certo, certo: o brasileiro, grosso modo, cospe em seu ídolos. Nelson Rodrigues já vociferava essa verdade inequívoca. Pelé é adorado como um totem eterno na Europa (onde, nos anos 1970, era uma marca que só perdia em popularidade para a Coca Cola), na África, na Ásia e sofre no Brasil um certo ódio contido, quando não explícito. Muitos cobram que ele seja eficiente em outros aspectos como era entre as quatro linhas. Uma injustiça descomunal, já que a vida de Pelé girava em torno de um campo, de uma bola, de um time. Vi-o jogar em fim de carreira. Comecei a me interessar por futebol no início dos anos 1970, quando ele, já com mais de 30, iniciava a aposentadoria.

Estive em sua despedida: no Maracanã, em 1971, num jogo contra a Iugoslávia, num empate com dois gols para cada lado. Lembro-me bem: estádio cheio, e eu sentado na arquibancada cercado pela família de Marco Antônio, lateral direito do Fluminense. Coisas da vida. Enfim, não há nada para ser dito neste texto que outro não o tenha feito. Escreve-se sobre Pelé há 60 anos – desde quando, na Suécia, aos 17 anos, foi eleito lenda. De lá para cá, tornou-se parâmetro de comparação, referência para todo craque que desponta aos quatro cantos. Eu vi Cruijff, Maradona, Van Basten, Messi, Cristiano Ronaldo. Pelé supera todos, com folga, em todos os fundamentos do futebol. Enfim, o resto é história.

Quem ouve Jazz?

O jazz está quase virando clichê – e isso é bom ou ruim? Escrever sobre jazz é algo que sempre me trouxe uma inequívoca satisfação, comparável somente ao saborear auditivamente algo do gênero, de preferência o piano, o saxofone, o trompete, a grande orquestra. Em segundo lugar porque essa iniciativa seria impensável há trinta anos, já que poucos eram os estudantes que se interessavam por um solo de Sonny Rollins ou pelas acrobacias cerebrais de Earl Hines. Aliás, não havia muito interesse porque o desconhecimento grassava. Lembro-me de no início dos anos 1980, eu e alguns amigos às voltas com os bolachões e com os divertidíssimos blindfold tests, que consistiam em ouvir um determinado tema no jazz e tentar descobrir, sem qualquer informação adicional, quem o executava.

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Hoje qualquer garoto gosta de jazz – ou pelo menos diz que gosta. Há uma certa aura intelectual no apreciador do gênero. Rock, hip hop e samba são para os amadores e para os adolescentes, afirmam alguns. Música clássica é para os esnobes, dizem outros – que também chegam a afirmar que música gospel é para desinformados que acham que qualquer baladinha que louva a Deus tem o valor do que produzia Mahalia Jackson. Jazz – afirmam quase todos – é música para os inteligentes, para aqueles que se nutrem de harmonias complexas e melodias improváveis, para aqueles que não veem a música como passatempo, como entretenimento nem como tecido de fundo para o namorico ou para a balada.

Alguns de meus seis ou sete leitores provavelmente irão considerar o parágrafo acima preconceituoso. Talvez nem caiba nos dias de hoje, já que a internet, as propagandas de tevê, alguns (poucos, é verdade) programas de rádio e os diversos festivais de jazz pelo Ocidente transformaram a arte de John Coltrane, Charlie Parker e Bill Evans em ingredientes capazes de compor um balaio no qual cabem Odair José, Dietrich Fischer-Dieskau e John Lennon. Não sei se chega a ser lamentável, porque o jazz passa a ser ouvido por uma fatia da população que até então o ignorava.

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Eu fico feliz em saber que muitos de meus alunos conhecem Miles Davis e que curtem o som das orquestras mais afinadas – de Stan Kenton a Duke Ellington. Isso é bom, mas seria melhor ainda que o jazz tivesse mídia, que fosse popularizado, que virasse atração no fim do programa de Fátima Bernardes. Calma, puristas! O que estou dizendo é que se o jazz chegar a aparecer na grade curricular dos programas populares de tevê poderá ser um indício de que as coisas vão pelo caminho certo, e que a difusão do gênero reflete um avanço. Já imaginaram Carmen McRae ter tanto espaço na mídia quanto Anitta? Ou Thelonious Monk e Dizzy Gillespie serem tão conhecidos pelo grande público quanto Alexandre Pires e Xande de Pilares?

Há um problema nisso tudo, penso. Será que o ouvinte de jazz quer essa popularização? Imagina ele que tal condição pode prejudicar a qualidade do produto? Não creio. Acho mesmo é que o consumidor de jazz quer continuar periférico – e aprecia isso. Não quer ouvir o que o populacho ouve, considera-se habitante de outra esfera, consumindo caviar quando a maioria come pastéis na esquina. É ou não uma forma de sentir-se superior? Uma pena, porque quem perde é o jazz.

Vem dançar, Pierre Dulaine!

DIÁRIO BRASIL DIGITAL®: "Vem Dançar", com BanderasTenho trabalhado – por opção – mais do que mereço. Sobra-me pouco tempo para uma atividade absolutamente essencial a um escritor: escrever. Enquanto me aventuro na pesquisa para andamento de um novo romance, uso algumas pausas para assistir a filmes – de preferência na companhia familiar. Aliás, vou mencionar família neste texto. É só esperar. Antes, porém, falo de Antonio Banderas, o ator espanhol. Mas por que falo nele, se, até onde sei, ele não é meu parente?

Banderas estrelou um filme intitulado Vem Dançar (Take the Lead, no original), uma espécie de Ao Mestre com Amor – clássico dos anos 60, com Sidney Poitier – com as agruras do hip hop. Antonio Banderas é um  professor de dança de salão que quer ensinar a garotos de uma escola pública algo que para eles inexiste: vida inteligente fora do rap e da dança hip hop. Não é um grande filme, mas chamou-me a atenção uma das cenas iniciais, que revela o encontro do professor (a personagem chama-se Pierre Dulaine) com a alunada. Nela, Banderas liga um aparelho de som e dele sai a extraordinária voz de Sarah Vaughan cantando They Can’t Take That Away from Me, dos irmãos Gershwin, um clássico do jazz interpretado de forma grandiosa, sublime.

Os garotos protestam com a arrogância veemente da adolescência, como se a canção fosse, na verdade, um discurso de Joseph Goebbels. É uma cena grotesca: os alunos ameaçam deixar a sala de aula, e só se mantêm nela quando o professor desliga o aparelho. Não querem saber de Sarah Vaughan. Ignoram quem são Ella Fitzgerald, Carmen McRae, Rosemary Clooney, Dinah Washington, Julie London. Não se interessam por Harold Arlen, pelos irmãos Gershwin, por Cole Porter, Irving Berlin, grandes nomes da canção em qualquer época. Querem contato, de fato, com os rappers que, de forma contundente ou não, num discurso verdadeiro ou convenientemente ensaiado, falam sobre periferia, sobre diferenças raciais, sobre os dissabores da condição em que vivem. Isso não se discute. O que me incomoda – e incomodou também o professor dançarino – é  rejeitarem aquilo que não conhecem.

Ritmo e Sedução filme - Veja onde assistir

Qual a função, então, de um professor – de dança ou de qualquer outra disciplina? Criticar seu aluno por ele desconhecer o que tem qualidade e, assim, aumentar a distância entre ele e seu pupilo? Não creio que seja essa a saída. Sempre acreditei que a obrigação de um professor – de qualquer área, mas aqueles que ministram aulas na seara de Humanidades têm mais chances de realizar isso – é apresentar ao aluno alternativas que permitam as escolhas, que proporcionem a eles a oportunidade de conhecer as opções. Apresentar música, literatura, cinema, arte em geral, de boa qualidade, é tarefa obrigatória.

Sinceramente? Sempre cri que um professor precisa habitar um mundo diferente daquele que seu aluno frequenta, embora deva reconhecer os cacoetes, as características e as contradições desse mundo, que não lhe é – e nem deve ser – alheio. Um professor, penso eu, pode (e deve) saber que existem, por exemplo, Thaíde, Ludmilla, Emicida e outras criaturas, mas é fundamental que conheça (e reconheça) a importância de Villa-Lobos, de Pixinguinha, de Lamartine Babo, de Chico Buarque. E apresentar esses artistas, de forma honesta e bem fundamentada, é seu ofício. E a família, onde entra? Bem, é ela que vai dar o primeiro passo. Sem ela, sem seu aval e cumplicidade, não há professor que possa, verdadeiramente, efetivar qualquer mudança. Vá em frente, Pierre Dulaine!

A melhor noite de 67

Nos últimos dias tenho falado a meus alunos sobre Tropicalismo, o movimento musical cujas características e personagens já foram abordados em questões do ENEM. Há pouco mais de um ano, aqui mesmo, neste blogue, escrevi sobre o assunto. Retomo-o, afirmando – e digo isso a meus alunos – que não se chega ao Tropicalismo sem passar pela Bossa Nova, pelo samba, pela Jovem Guarda, pelo rock e pela Antropofagia de Oswald de Andrade. E, claro, pelos festivais da canção, que apresentaram, em fins dos anos 1960, o que de melhor se produzia (e produziu) em termos de canção. Foram os festivais que nos proporcionaram conhecer Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil – e um sem-número de outros compositores que, hoje, habitam o panteão da música popular nacional. Abaixo, Caetano canta Alegria Alegria, acompanhado pelos Beat Boys.

Recomendo a eles que assistam ao documentário Uma Noite em 67. É possível assistir a ele, na íntegra, AQUI. Dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, esse doc, de 2010, traz imagens inéditas não somente de cenas de palco, mas há algumas pérolas brotando dos bastidores do evento. Isso sem contar nos comentários, quase 50 anos depois, de gente que, de uma forma ou de outra, esteve envolvido no processo. Jurados, maestros, críticos e, claro, os compositores e cantores que se apresentaram nessa noite tão absolutamente singular. E ainda há a cena completa de Sérgio Ricardo quebrando o violão e arremessando-o para a plateia.

O livro é ainda melhor: traz as entrevistas completas com aqueles que estiveram no Teatro Paramount, local do Festival da Record, capitaneado por Paulo Machado de Carvalho (um dos entrevistados do livro). Aliás, é ele quem revela ter ido buscar Gilberto Gil no hotel, já que o compositor baiano recusava-se, dominado pelo pavor de um palco de festival, a apresentar sua obra-prima Domingo no Parque, que abocanhou o segundo prêmio e ainda serviu de embrião para o movimento tropicalista. Outro embrião é Alegria Alegria, de Caetano Veloso. Também revelou que Roberto Carlos (que não é entrevistado no livro) pediu para nunca mais participar de festivais.

O livro é tão saboroso quanto necessário. É um relatório, uma súmula do que foi o maior dos festivais. Depoimentos de Nelson Motta, Júlio Medaglia, Chico de Assis e Ferreira Gullar abrilhantam as páginas. É o documento de uma época em que os compositores tinham realmente que possuir talento para eternizar-se, e os 5 primeiros colocados (Edu Lobo, Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso e Roberto Carlos, em ordem decrescente) tinham isso de sobra. Eram os melhores naquele tempo e continuam os melhores atualmente, 51 anos depois. Quem pode lhes substituir?

Dirceu, que era baterista, toca berimbau. Gilberto Gil canta Domingo no Parque.

Roberto Carlos canta o samba Maria, Carnaval e Cinzas

Chico Buarque e sua Roda-Viva, acompanhado pelo MPB4

Marília Medalha, ao microfone, acompanhando Edu Lobo, ao violão. A campeã Ponteio é aclamada.

Paulo, Henry

Em épocas de juvenismo político, quando autores de direita me ameaçavam tanto quanto a gripe que escorria de minhas narinas, cheguei a imaginar que Paulo Francis era um idiota, um pascácio de ideias curtas. Eram os anos 1980, quando ele aparecia no quase fechamento do último telejornal noturno da Globo, comentando sobre costumes, arte, comportamento, jornalismo, música clássica, exposições, livros, teatro – tudo, evidentemente, do e no país em que vivia, os Estados Unidos. A voz era inconfundível, carregada de desprezo por aqueles que discordavam dele e uma certa arrogância com quem o admirava. Blasé ao extremo.

Resultado de imagem para o livro dos insultosEu disse, há algumas postagens, que Diogo Mainardi queria ser Paulo Francis. Digo e repito. E falo mais: Paulo Francis queria ser Henry Louis Mencken, o temido jornalista norte-americano cujas observações – tão lúcidas quanto ácidas – de natureza cultural, política, religiosa, econômica, pautaram o quotidiano norte-americano durante 60 anos. Era uma fera indomável, marcado por um profundo conhecimento sobre o assunto que dissertava. Batia em quem considerava medíocre ou desprezível: padres, pseudointelectuais, políticos aproveitadores, escritores de segunda linha, artistas pretensiosos. Não poupou ninguém – a não ser quem merecia.

Cada um a seu modo, tanto Paulo Francis quanto H. L. Mencken são necessários. Precisamos de figuras assim, capazes de encarar a realidade sem as indulgências advindas da política, da grana, do aconchego da estabilidade no ofício, do mercado que dita as regras. Tanto um quanto o outro adquiriram o status do intelectual cáustico, capaz de enfrentar o establishment de maneira nem sempre elegante. Tinham muito a dizer sobre vários assuntos, marcando o território com a polêmica tão necessária a qualquer discussão entre indivíduos ou grupos inteligentes. O Livro dos Insultos de Mencken, publicado em 1988, é uma coletânea, selecionada por Ruy Castro. São textos extraídos de A Mencken Chrestomathy. Um iconoclasta de primeiríssima linha. Merece a leitura.

O livro de Francis é organizado pelo jornalista Nelson de Sá – e ao que parece, seu fã. Selecionou bem. Há artigos de toda sorte: da hipocondria de Woody Allen ao populismo de Jorge Amado; da burocracia de Gorbachev ao cinema de Coppola, passando por Freud, Truman Capote, Cacilda Becker, políticos como Lula, Collor, Brizolla e…Henry Louis Mencken, a quem admirava por motivos óbvios. É divertido ouvi-lo desancar alguns ícones, debochar da boçalidade e da jequice de alguns artistas, sejam brasileiros ou estrangeiros. O livro também merece uma checada. São 386 páginas de puro deleite, se você aprecia ataques à mediocridade.

Para ler frases de Mencken, clique AQUI.

Se quiser ler alguns aforismo de Francis, clique AQUI.

O quase cinquentão Abbey Road

George Martin, produtor e orquestrador que gozou da intimidade dos Beatles, dizia aos quatro cantos que Abbey Road, disco de 1969, era a obra-prima do quarteto que revolucionou a música pop. Quase sempre se usa a expressão pop com certo desprezo hipócrita, como se o termo impusesse à música – como um todo, melodia e texto – depreciações inevitáveis. Besteira. Abbey Road, gozando sua ideologia pop-rock, é um disco de primeira, dos melhores já feitos e, no meu caso, concordo com George Martin: é o melhor dos Beatles. Aliás, há umas poucas postagens, afirmei que é um dos melhores discos de rock que conheço.

Sei que há quem afirme que Sgt. Pepper’s é melhor. É avaliação subjetiva, claro, assim como a minha e de George, mas, mesmo as subjetividades são (ou devem ser) justificadas. Primeiro: Harrison mostra os dedos (e a voz) afiados em dois temas que se tornaram clássicos: Something e Here Comes the Sun estão na ponta da língua de qualquer cinquentão de bom-gosto. Eu, por exemplo. A musicalidade de Something é algo fora do comum – e repare que os recursos para se chegar a ela são simples, quase primários. Mas tente fazer para ver se você consegue.

E por falar em riqueza melódica, que tal ouvir Golden Slumbers, Oh! Darling, Come Together e o tema do serial killer Maxwell’s Silver Hammer? Quer uma execução progressiva? Há também. Experimente I Want You (She’s So Heavy), mas não exija dos rapazes que eles antecipem o virtuosismo de um Robert Fripp ou as sinuosas reviravoltas de Greg Lake. O negócio deles era outro: entreter com arte. Ou seja: preocupando-se com a própria produção e um olho cravado na aceitação popular. Fizeram, sim, a melhor música popular.

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Eis os rapazes após a foto famosa, em que marcham na faixa de pedestre – em Londres. Mas aí você quer saber por que escolhi justamente esse disco para uma postagem. Simples. Abbey Road veio ao mundo em 26 de setembro de 1969. Claro, claro. Alguma coisa tinha de fazer dessa quarta-feira, o dia mais insosso da semana, uma data especial.

Merquior, o necessário

Diogo Mainardi, ex-colunista da Veja, falastrão do Manhattan Connection e membro fundador de O Antagonista, tem dois grandes desejos. Na verdade, três. O primeiro deles é ser levado a sério. O segundo é abrir seu corpo para que o fantasma de Paulo Francis entre e dele nunca mais saia. E o terceiro – mais recôndito e bem guardado – é ser considerado o novo José Guilherme Merquior. É mais ou menos como Arnaldo Antunes querer ser Cummings ou Carla Perez querer ser Isadora Duncan. Não é possível: não neste mundo. Mas citei José Guilherme Merquior por um motivo pessoal. Procurando material sobre a modernidade literária, assunto que tem me interessado nos últimos tempos, fiquei diante de um artigo seu, publicado no livro Elixir do Apocalipse, de 1983, em que ele discorre sobre o assunto com propriedade impressionante, além de ser didático como um avô que se preocupa com o neto preferido que começa a compreender o mundo.

Merquior era de direita, mas se dizia um liberal social. Atacou Freud, Marx, Lênin e outros ícones ocidentais. Em âmbito doméstico, chamou Caetano Veloso de sub-intelectual de miolo mole, afirmou – e isso dá uma boa discussão – que os compositores de MPB estão a léguas da nobreza criativa literária. Não eram (e não são) artistas da palavra, mas entretenimento puro. Era um polemista de mão cheia – e de cérebro mais cheio ainda. Era temido e respeitado, mas, sendo um intelectual incompatível com as esquerdas, era destratado pelos socialistas e afins, ou seja, seus méritos intelectuais – enormíssimos em erudição e conhecimento – tornavam-se infelizmente secundários.

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Se sabia escrever? Magnificamente bem, embora sempre me pareceu ter um certo desprezo pelo leitor comum. A cada página, parecia dizer que o leitor precisava preparar-se mais, ler alguns determinados autores e livros que pudessem facilitar um encontro com o livro que se lia. Escrevia para aqueles leitores que tinham o fôlego necessário para mergulhos profundos. Em muitos casos tive dificuldade em compreender claramente o que ele dizia, ao menos de imediato. Forcei-me a reler e reler, buscando uma interpretação que melhor conviesse a minhas convicções, a meu modo de enfrentar a realidade. Escreveu variado: de literatura a política, passando por filosofia, antropologia, história, economia. Numa entrevista para a Folha, há 31 anos, decretou a morte do Marxismo. Deveria ser lido por todos – em qualquer lado que esteja.

Um dos melhores livros de história da Literatura Brasileira que conheço é De Anchieta a Euclides, publicado em 1977. Foi esse livro que me ensinou a enxergar a grandiosidade dos narradores machadianos. Foi o primeiro a me apresentar Os Sertões como um clássico do ensaio de ciências humanas no Brasil. Mostrou-me que os artifícios retóricos de Pe. Antonio Vieira são sua contradição porque baseados numa razão crítica. E por aí vai. Houve uma época em que eu, militante de esquerda, abandonei José Guilherme Merquior. Ou melhor dizendo: imaginei que o abandonara. Engano. Ele continuava expondo os problemas e me ajudando a solucioná-los. Sou grato. E se você, leitor, não o conhece, está perdendo de ouvir a voz de um mestre. Abandone Diogo Mainardi. Esse não faz falta.

 

Bem vivo aos 76

Dia desses me perguntaram sobre qual o melhor disco que rock que conheço. A pergunta é fácil; difícil é a resposta, já que o rock, abrangente em suas modalidades e em número de bandas e gravações, dificulta qualquer tipo de julgamento. Isso, claro, é uma visão pessoal. Creio que alguns de meus 6 ou 7 leitores tenham suas preferências já fossilizadas, trazidas da adolescência – que é quando o rock nos encanta, nos toma por inteiro. Creio que já ter dito isso numa outra postagem. Mas não fujo do desafio: para mim, Abbey Road, dos Beatles, e Electric Ladyland, de Jimi Hendrix, são o que há de melhor. Sei que alguns vão torcer o nariz: Abbey Road, disco de rock? Não é?

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Nunca fui íntimo do heavy metal. Alguma coisa do hard rock me agrada, em especial Led Zeppelin, Queen e Aerosmith. O disco ao vivo do Deep Purple no Japão também. Coisa séria, que um adulto pode consumir sem correr o risco de voltar no tempo e sentir-se com 14 anos. O rock progressivo, ao contrário, sempre me foi caro: Pink Floyd, King Crimsom, Yes, Jethro Tull e Frank Zappa, cujo disco One Size Fits All, de 1975, foi-me apresentado no meu aniversário de 16 anos, em 1978. Comecei a jornada pelo progressivo a partir daí. Um caminho feito de paradas, retornos, atalhos. E, por último, o mais importante: minha banda preferida é o The Who. Já mencionei isso.

Mas por que falo de rock e de lembranças, referências? E por que somente o nome de Jimi Hendrix aparece em negrito? Se vivo, o senhor da foto teria 76 anos, mas morreu num dia 18 de setembro, há 48 anos. Para mim, é o maior de todos os guitarristas – e olhe que sou fã de Clapton, que muitos consideram um deus das cordas, e de Jimmy Page, outro monstro -, embora haja uma justa ressalta a ser feita: será que Jimi manteria o pique? Essa é uma questão tão absolutamente desnecessária quanto divertida, embora muita gente leve isso a sério. Para seus detratores, ou para os fãs de outros guitarristas menores, Jimi Hendrix não teve tempo de mostrar que seria eterno. Para mim, este post mostra o contrário.

Jimi fez tudo o que era possível – e o que era considerado impossível, ele deu um jeito. Fez das distorções música para todos os ouvidos. Usou a tecnologia para expressar o som que não se imaginava existir. Foi um inovador, arriscou-se ao máximo em busca do som que queria apresentar – e acabou por influenciar todos (ou quase todos) que vieram depois dele. Poucos fizeram isso na música, e quando afirmo isso levo em conta todos os gêneros. Eu disse todos. Fez blues-rock, rock and roll, hard rock, baladas, country, jazz. Lá no início da postagem falei em Electric Ladyland. Claro que você conhece, mas, se ainda não teve oportunidade, ouça. É o derradeiro álbum de estúdio do The Jimi Hendrix Experience, trio que comportava também Noel Redding (baixo) e Mitch Mitchell (bateria). É ouvir para crer. E rezar pela música de Jimi Hendrix, que durará para sempre,

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Bobby Short aos 94

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Esse senhor aí de cima é Bobby Short. Não sei se você conhece, porque não é um músico muito popular: ao menos não por aqui. Eu também não o conhecia quando, em meados do anos 1990, ganhei um disco no qual a estupenda cantora Mabel Mercer dividia as honras com ele, ao vivo, formato vinil da Atlantic, cujo título é Mabel Mercer & Bobby Short at Town Hall. Um discaço em que pude, pela primeira vez, ouvir o som produzido por esse extraordinário cantor e pianista de cabaré. Não, não espere um vozeirão. Bobby Short não é Sinatra, Johnny Hartman ou Sammy Davis. Ele é Bobby Short e isso basta! Ou seja: é tão único quanto arrebatador. É fino, sofisticado, nunca banal. Você pode vê-lo e ouvi-lo executando I’m in Love Again, de Cole Porter, canção incluída em Hannah e suas Irmãs, de Woody Allen.

E por falar em Cole Porter, para muitos, Bobby Short é seu intérprete definitivo. Ouça a pouco conhecida Miss Otis Regrets, gravação no programa de Larry King. Um dos mais antigos hotéis de Nova Iorque se chama Hotel Carlyle, em cujo night club, o Café Carlyle, nosso herói se apresentava regularmente. Há um programa de tevê, feito há quase 40 anos, no qual ele se apresenta no ambiente que tornou seu. AQUI você pode constatar, se estiver disposto a encarar mais de 1 hora documental sem legendas. Aliás, para as canções – a parte principal do programa -, não há necessidade delas.

Bobby Short esteve no Brasil quando eu tinha 20 anos – e eu não só não tinha muita intimidade com a música norte-americana, com os crooners e as grandes cantoras, como ouvia algo que, hoje, é um tanto quanto incompatível com a música ultrafina de Bobby Short – o rock. Não que eu desgoste desse gênero. Aprecio o rock, mas não vejo qualquer dificuldade em compreender que a música de Bobby é executada com um zelo e ao mesmo tempo com tal charmoso desleixo que as vozes de Roger Daltrey e de Freddy Mercury parecem coisa de adolescente. E não são? Enfim, para que comparar?

Para alguns, a música de Bobby Short é coisa de velho. Tenho certeza de que dirão isso. Se você tem menos de 30 anos, precisa ouvir de coração aberto, sem preconceitos, apreciando – ou tentando apreciar – o bom humor, a harmonia, a sutileza e sofisticação no toque, a finesse no modo de cantar e assim por diante. Se você se animou com o texto e quiser uma dica para um disco deste cantor/pianista, recomendo este, abaixo, com título enorme: Bobby Short – How’s Your Romance? (Music for Lovers From The Master Of Cabaret). É nele que você poderá ouvir Tea for Two, Night and Day, I Can’t Get Started (com orquestra), Easy to Love, Body and Soul (com orquestra) e muito mais. Aproveite! Bobby Short morreu em 2005, aos 81 anos, vítima de leucemia. Se vivo, teria 94 anos, nascido num 15 de setembro – e provavelmente ainda estaria abrilhantando ambientes, como o Café Carlyle.

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