A eternidade do ídolo

Retomando uma antiga demanda: aproveitando que estamos em tempos de Copa do Mundo, vou falar sobre algo que não seja cultura e arte. Bem, o esporte – especificamente o futebol – preenche a lacuna que alguns de meus 6 ou 7 leitores dizem existir. Talvez estejam certos. Pela terceira ou quarta vez, aqui neste blogue, falo de um de meus ídolos: Pelé, a quem vi jogar nos últimos 5 anos de carreira. Da carreira dele, bem entendido. A foto abaixo traz Pelé aos 18 anos, ao lado do maior jogador (ou um  dos maiores) que a Argentina produziu: Alfredo Di Stéfano.

Pelé e Di Stefano. Os reis se encontraram apenas uma vez, há 60 anos - UOL  Esporte

Num jogo em homenagem ao espanhol Miguel Muñoz – o primeiro capitão do Real Madri a levantar a taça da Liga dos Campeões -, o time espanhol levou a melhor: 5 a 3. Consta que o argentino não marcou gols, enquanto o ainda menino Pelé fez o dele. O que mais me chamou a atenção foi o fato de que, no ano anterior, Pelé havia-se tornado famoso por conta da Copa da Suécia, mas o time do Santos, uma máquina demolidora de gols, só se tornaria (re)conhecido mundialmente no início dos anos 1960 – e justamente por conta daquele que mais tarde seria eternizado como rei.

Leio que Pelé não está bem de saúde. Há, de parte de muitos, aquela sensação de que os ídolos são inatingíveis, que não se sujeitam àquilo que nós – os outros – temos como quotidiano, de comum e banal. Lembro-me de um amigo, fã de boxe como eu, que se recusava a reconhecer Muhammad Ali (ou Cassius Clay, como querem alguns) como alguém capaz de se ajoelhar diante da doença. Muhammad foi-se, mas ficou – e eternizado na memória como um homem saudável que destroçava seus oponentes.

Creio que com Pelé, e com alguns outros ídolos de qualquer esporte, acontecerá o mesmo. A imagem do menino ao lado de Di Stéfano ficará, memorial, para muitos. Para mim, que passei a apreciar o futebol por conta da Copa de 1970, Pelé era aquele que, na foto emblemática e conhecida em todo o mundo, representava a alegria da vitória, o prazer de jogar futebol e, como a cena retratada, tornar-se o ídolo eterno.

Curiosidades das Copas: fazer gol em duas finais, um feito de poucos |  LANCE!

AQUI o filme Isto é Pelé, de 1971. AQUI o filme oficial da FIFA – Copa do Mundo de 1970. AQUI o filme O Rei Pelé, de 1962. AQUI, Pelé Eterno, de 2004. AQUI, o documentário Um Rei desconhecido.

O melhor do Jazz #11: os quintetos

O quinteto é a formação clássica do jazz: saxofone, trompete, piano, baixo e bateria. Há quem prefira um grupo com apenas um sopro, concentrando as atenções nos fraseados enquanto o piano estabelece a harmonia e a dupla baixo-bateria cozinha o alimento que é servido. Quais os grandes quintetos do jazz? Mais uma vez uma lista que revela a gosto pessoal deste que vos escreve.

Charlie Chan (5) • Dizzy Gillespie • Bud Powell • Max Roach • Charlie  Mingus - Jazz At Massey Hall (Vinyl, LP, Album, STEREO - Amazon.com MusicNa verdade, este quinteto não deveria entrar na lista, afinal não foi uma reunião sistemática de cinco músicos, que tivessem feito vários discos etc. Mas é um quinteto e é o melhor disco de jazz que conheço. Eu já disse isso. Por que melhor? Bem, reuniu ninguém menos que Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Bud Powell, Charles Mingus e Max Roach. Ou seja: ao menos 4 desse grupo são os melhores em sua especialidade. Ouça o disco AQUI, para comprovar. Gravado no Massey Hall canadense, em maio de 1953.

Workin with Miles Davis Quintet | Amazon.com.brO segundo lugar não poderia deixar de ser do quinteto de Miles Davis – aquele, nascido em 1955 e desfeito em 1959, com variações ao piano e a adição do sax alto. O time básico: Miles Davis (trompete), John Coltrane (sax tenor), Red Garland (piano), Paul Chambers (baixo) e Philly Joe Jones (bateria). A série de discos Relaxin’, Cookin‘, Workin‘ e Steamin’ é de fazer chorar. No bom sentido, claro. Eis o melhor: Workin with the Miles Davis Quintet: AQUI.

Charlie Parker foi o maior raciocínio do sax alto e, para muitos críticos e estudiosos do jazz, o maior de todos os saxofonistas. Genial em todos os estilos, fez-se acompanhar de um timaço de músicos no coração dos anos 1940: Duke Jordan ao piano; Tommy Potter no baixo; o sempre magnífico Max Roach na bateria. E quem, no trompete? Sim, Miles Davis que, segundo suas próprias palavras, aprendeu jazz com Bird. Ouça, AQUI, Bluebird, o disco na ilustração.

Serenade to a Bus Seat - WikipediaClark Terry não entrou na lista de trompetistas favoritos, mas entra aqui, com seu quinteto. Veja só: Johnny Griffin, no sax tenor; Wynton Kelly ao piano; Paul Chambers no baixo, e Philly Joe Jones nos couros. Onde vc já viu parte dessa sessão rítmica? Com Miles Davis em seus ótimos dias. Timaço. Um extraordinário quinteto. Esse disco, Serenade to a bus seat é de se ouvir agradecendo a Deus por seus tímpanos funcionarem. AQUI você inicia o agradecimento.

Moanin' (Art Blakey).jpgDe todas as formações que conheço do Art Blakey and the jazz messengers, esta é a melhor: Lee Morgan (trompete), Bobby Timmons (piano), Benny Golson (sax tenor), Jymie Merritt (contrabaixo) e, claro, o líder, Art Blakey, na bateria. Um disco sem erro protagonizado por um quinteto absolutamente perfeito. Uma atenção especialíssima ao som de Timmons, um dos grandes pianistas que o jazz produziu. Ouça tudo, AQUI.

FECHADO para BALANÇO

23 fotos antiguas que muestran cómo era la diversión de verano antes del  Internet | HuffPost Voices

Dando um tempo nas postagens: em NOVEMBRO voltaremos. Por enquanto, regozijem-se com postagens recentes e remotas. Há muito sobre música, literatura, cinema, quadrinhos, desenho, fotografia, arte em geral. É só clicar nas tags, na coluna da direita. Espero que aproveitem!!!

Carson McCullers revisitada

Gosta de ver Marlon Brando em ação?  E Elizabeth Taylor, tão bela que chega a doer os olhos? E os dois juntos, num filme dirigido por John Huston? Pois é: essa situação existe, e se chama – no Brasil – O Pecado de todos nós, um ótimo filme cuja temática gira entre homossexualidade reprimida, frustração no casamento e militarismo. No original, o título é Reflexo num olho dourado, e é baseado no romance homônimo de uma escritora pouco celebrada no Brasil, Carson McCullers. Uma cena congelada do filme:

Reflections in a Golden Eye: a “hothouse tale” of desire and simmering  violence | Library of America

Não é, entretanto, sobre a película que quero falar, mas sobre Carson McCullers, essa extraordinária escritora que morreu há exatos 55 anos, e que escreveu ao menos duas obras-primas: A Balada do Café Triste e O Coração é um caçador solitário, ambas lidas por este que vos fala no final dos anos 1980, quando eu ainda não tinha a certeza de se havia ou não melhor literatura, no século XX, do que a norte-americana. Hoje, tenho: não há, mas isso é apenas uma opinião. Ei-la:

Imagem

Livro: O Coração é um Caçador Solitário - Carson Mccullers | Estante VirtualSou fã da criatividade na estrutura textual – desde que não desprivilegie a história. Em O Coração…, cada capítulo traz o ponto de vista de um personagem diferente, embora o centro de tudo seja a personagem central: um homem surdo-mudo cujo nome é marcado pela ironia: John Singer. É visto como símbolo da beatitude numa cidade do interior, em que alguns selecionados moradores têm suas vidas expostas com habilidade ímpar pelo talento de McCullers. Um livro imenso, um texto que deveria ser obrigatório a todos aqueles que amam (ou dizem amar) a literatura. Há um filme – a que não assisti – baseado nele.

A Balada Do Cafe Triste - 9788525010261 - Livros na Amazon BrasilA Balada do Café Triste é um volume de contos. Na verdade, o conto-título é uma noveleta cujo tema é um triângulo amoroso composto por 3 figuras marginais: um anão, uma esposa abandonada e seu ex-marido, que retorna à cidadezinha para perturbar a vida de todos. Contos como Wunderkind, O Transeunte e Um Dilema Doméstico são pequenas obras-primas de leitura fácil, justamente porque deve ter dado um trabalho danado escrevê-las. Se puder, leia tudo – e de uma tacada. Para ficar, na memória, com o gosto de Carson McCullers durante um bom tempo. AQUI você lê a noveleta no original.

P.S. Há também um filme baseado nesse livro. Vanessa Redgrave brilha nele. Ao contrário do filme O Coração é um caçador solitário, esse eu vi.

Minha lista (devida)

Listas divertem – e somente isso. Divertem quem lê e quem a produz. Aquele que lê adora discordar, criticar, mandar às favas. Embora concorde com alguns pontos, prefere apontar, de fato, aquilo de que discorda. Comigo é assim. Deve ser assim com você também, prezado(a) leitor(a). Há algumas semanas, postei uma lista de discos escolhida por vários jornalistas espalhados pelo Brasil. Comentei-a, AQUI. Se quiser lê-la antes de ler a minha, fique à vontade.

Ressalto: não entraram na lista música instrumental ou clássica. Você perceberá também que nenhum dos discos envolvidos tem menos de 40 anos. Sim, é preferência minha. E não há somente MPB, como se pode observar. Canção do Amor demais é um disco de bossa nova, assim como Chega de Saudade. Entraram, contudo, na lista. Não sou tão purista quanto pareço. Ei-la:

ÓPERA DO MALANDRO – Teatro em Escala1. Ópera do Malandro, Chico Buarque. O disco duplo é a perfeição, da escolha dos intérpretes à confecção das canções. Algumas delas obras-primas, como Geni e o Zepelim, O Meu Amor, O Malandro e Uma Canção Desnaturada. E a ópera, que fecha o disco, é de fazer inveja a muitos escritores tarimbados. Arranjos do craque Francis Hime. Chico Buarque é o maior nome da MPB.

Alucinação de Belchior dialogando com a nossa época | LOID2. Alucinação, Belchior. Um disco em que brilham canções que ficarão para sempre – e olhe que nasceram entre 1973 e 1975! Exemplos? Como Nossos Pais, Apenas um rapaz latino-americano, A Palo Seco e Velha Roupa Colorida. Belchior é um dos melhores letristas do gênero, e este disco, em que quase todos os integrantes eram ligados ao rock, é seu apogeu.

Caetano Veloso – Bicho, 40 anos – linksonoro3. Bicho, Caetano Veloso. Todos os discos de Caetano entre 1969 e 1982 são ótimos, de modo que escolher este – de 1977 – não foi tarefa fácil. O que destaca? O Caetano absolutamente maduro e criativo. Canções como Tigresa, Gente, Um Índio, O Leãozinho e Alguém Cantando provam isso. Todas sensacionais: letra e música. Escolhi por conta delas.

Edu & Tom - Tom & Edu4. Tom & Edu, Edu Lobo/Tom Jobim. Junte Beckenbauer e Cruyff no mesmo time. Mal comparando, é mais ou menos isso. Dois maestros juntos, divertindo-se, cantando e tocando canções que eles mesmos eternizaram. Destaque para Vento Bravo, Chovendo na roseira, Pra dizer adeus e Luíza. Aliás, destaque para tudo, porque o disco é antológico!

Canção do Amor Demais – Wikipédia, a enciclopédia livre5. Canção do Amor Demais, Elizete Cardoso. Os fãs de Elis que me perdoem, mas Elizete é a maior cantora brasileira. Opinião particular – é óbvio. Agora imagine essa senhora sendo acompanhada por Tom Jobim e João Gilberto, pais da Bossa Nova! E imagine-a cantando canções de Tom & Vinicius! Se você aprecia o gênero, vais achar esse disco a obra-prima entre as obras-primas. Arranjado por Tom, todas as faixas são excepcionais. Bem, afinal é Elizete cantando.

Chega de Saudade - João Gilberto - LETRAS.MUS.BR6. Chega de Saudade, João Gilberto. Pois é: disco icônico, fundamental, do qual – confesso! – só fui realmente gostar após tê-lo ouvido na vida madura, nos meus quarenta e poucos. Sim, é revolucionário, criou um outro modo de se cantar samba, e gerou uma filharada que se mantém até hoje. Claro que algumas letras são bobinhas, infantis, mas o que conta é como se canta e como se toca. É um mundo que se abre, em 1959. Se você pensa que esse mundo fechou, erra.

Há 45 anos, Jards Macalé reunia | Podcast | Rádio Brasil de Fato7. Banquete dos Mendigos, Jards Macalé. Um disco-manifesto, comemorando os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Emblemático, representou a reunião de vários nomes: Chico Buarque, Gal Costa, Johnny Alf, Paulinho da Viola, Edu Lobo, Jorge Mautner, Raul Seixas, Gonzaguinha, Milton Nascimento, Toninho Horta e, claro, Jards Macalé. Muita gente boa junta: difícil não sair algo fenomenal.

Refavela: como o álbum de Gil revolucionou a MPB nos anos 708. Refavela, Gilberto Gil. Por que não discos extraordinários como Refazenda, Um Banda Um, Nightingale ou Dia Dorim Noite Neon? Bem, primeiro porque Refavela também é extraordinário. Em segundo lugar, porque foi o primeiro disco de Gil que comprei, em 1979, dois anos depois de ele ter sido lançado. A relação é pessoalíssima. Não precisaria nem citar que Balafon, Sandra, No Norte da Saudade e a faixa-título são primores textuais.

Antologia - MPB 4 - Álbum - VAGALUME9. Antologia, MPB4. Gosto de todos os discos do MPB4, sem exceção. Nunca fizeram nada que me desagradasse. Os fãs do quarteto – se é que lerão esta postagem – vão torcer o nariz, afinal, como uma antologia pode ser o melhor disco? Pois é. Mas juntar pot-pourri de Ismael Silva, Ataulfo Alves, Chico Buarque, Tom Jobim, Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Monsueto, Dorival Caymmi e Baden Powell não é pouca coisa. E a afinação do quarteto é coisa de outro mundo. Discaço!

Milton Nascimento, LP Duplo Clube Da Esquina 2- Série Clássicos Em Vinil  [Disco de Vinil]: Amazon.com.br: CD e Vinil10. Clube da Esquina 2, Milton Nascimento. Sim: acho o número 2 melhor. Gosto daquele que ficou em primeirão, no juízo dos jornalistas. Prefiro este porque Canção Amiga, Casamiento de Negros, Credo, Paixão e Fé, Maria Maria Tanto estão nele. E, claro: Canción por la unidad de Latino America, em companhia de Chico Buarque, com um show de Wagner Tiso. Política e arte nas alturas.

Se quiser enviar a sua lista, sinta-se convidado(a) a fazê-lo.

Clarice entrevista

Clarice Lispector é um quindim na boca da crítica. Um pastel de Belém, um yoku moku, um baklava. É querida – não sem justiça – por um sem-número de acadêmicos que consomem suas palavras como se elas tivessem brotado do Evangelho. Enfim, há quem discorde. Eu, por exemplo. Reconheço que essa senhora sabia escrever, respeito-a como criadora, mas, para mim, é chatinha. Faltam-lhe bom humor, sarcasmo, ironia. É séria demais, atendo-se a emaranhados psicológicos e fluxos de consciência um tanto gratuitos. Claro que é apenas uma opinião. Como diz uma amiga evangélica, ao saber que será repreendida: “Lá vem cajado!”

Apesar de tudo, aprecio bastante um de seus livros (na verdade não é seu, mas organizado para que fosse) que, distante da ficção, mostram uma outra Clarice: a jornalista, a entrevistadora, a sensível e certeira inquiridora. Ao dizer sensível, quero afirmar, e afirmo, que a célebre escritora conseguiu, em conversas pouco protocolares, obter de seu entrevistado(a) aquilo que existe de mais interior, de mais suavemente escondido, aquilo de que jornalistas do senso comum passam longe. As entrevistas, publicadas pela antiga revista Manchete, foram feitas em pouco menos de 1 ano e meio.

Entrevistas | Amazon.com.brSão 42 entrevistados: gente da literatura, da música, das artes (cênicas e plásticas) e do esporte. Engana-se quem imagina que ela se sinta mais à vontade com seus pares – escritores, poetas e dramaturgos. As melhores entrevistas, a meu ver, foram feitas com o escultor Mário Cravo, com a atriz Tônia Carrero e com o pintor Iberê Camargo. Claro que isso é apenas opinião. Há pérolas proferidas por Antônio Callado, por Jece Valadão (num breve papo), pelo sempre ótimo cronista José Carlos de Oliveira. E por aí vai.

Há um certo romantismo nas questões levantadas por Clarice. Algo de quase ingênuo, de quase simplório, mas que obtém respostas singulares: algumas delas surpreendentes, como quando pergunta ao escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues sobre sentir-se realizado como escritor. A resposta: “Eu me considero inversamente um fracassado. Não me realizei e nem acho que alguém se realize. O único sujeito realizado é o Napoleão de hospício, que não tem Waterloo nem Santa Helena.” É isso aí, Nelson! Obrigado, Mme. Lispector!

Guy, o cara

Guy Ritchie | Moviepilot.deGuy Ritchie fará 53 anos amanhã, dia 10 de setembro. Não, não é só ex-marido de Madonna, como muita gente acha. É um cineasta de primeira, que dirigiu três filmaços dignos de entrar em qualquer lista em que o sarcasmo, o deboche e a iconoclastia sejam prerrogativas. Quais são eles? Pela cronologia, Jogos, trapaças e dois canos fumegantes, de 1998; Snacth – Porcos e diamantes, de 2000; e Rocknrolla, de 2008. Sem trocadilhos, Guy é “o cara”, que parece divertir-se ao contar histórias – afinal, em dois desses três filmes ele foi o roteirista. Pois é: sabe escrever.

Como a maioria das pessoas, assisti aos três filmes separadamente, em épocas distintas. Já tomei providências para assistir a eles, em sequência. Comprei os blu-rays, os quais devem chegar em poucos dias, para o deleite solitário de quem quer ver rock and roll em forma de película. Sim, o que Guy Ritchie faz, em minha humilde opinião, é música em forma de cinema. E música veloz, com mudanças de andamento, de vocalização grave, com a marcação paquidérmica da bateria, com guitarras gritando alto.

Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes | Uma Dose de Cinema

Meu preferido é justamente o primeiro: o arrebatador Jogos, Trapaças e dois canos fumegantes. Carregado de humor – um dos pontos fortes de Guy Ritchie -, o filme é uma homenagem às tramas norte-americanas que aliam gangsterismo a marginais um tanto ingênuos, mas ambiciosos porque a contravenção pode compensar, desde que bem pensada. Os dois ex-atletas Jason Stathan e Vinnie jones estão nele, assim como também se fazem presentes em Snatch – Porcos e diamantes. Bem, mas nesse quem brilha é Brad Pitt, boxeador cigano de um soco só. Ah, claro: Dennis Farina e Alan Ford fazem parte da grande festa.

Rocknrolla é o rock per si. Da trilha sonora à trama, envolvendo um cantor punk e drogadíssimo cujo pai adotivo é um gângster envolvido com bandidagem russa e com políticos corruptos. É outra festa, da qual fazem parte escroques, parasitas, mafiosos e, claro, advogados. A velocidade narrativa, os recursos fílmicos e as personagens cínicas fazem do filme um clássico recente, mesmo sendo o tema algo tão batido quanto um solo dos Ramones. E Mark Strong, Gerard Butler, Idris Elba, Tom Hardy e Toby Kebbell ainda não tinham sucesso mundial. Vale ver e rever, tenha certeza!

Músicos pintores #1: Miles Davis

Não é incomum um artista, já sacralizado em seu ofício, aventurar-se numa outra arte, nunca antes visitada por ele. E menos incomum ainda é ver gente ligada à música conectar-se à pintura, como se essa conexão fosse visível e compreendida por gente comum, desligada da criação artística. Ron Wood, dos Stones; Dee Dee Ramone, dos Ramones, Joni Mitchell e Bob Dylan deram pinceladas que foram celebradas, ora por seus fãs, ora por gente especializada no assunto. O primeiro desses aventureiros merece destaque, a meu ver: Miles Davis. Veja só o que o jazzista produziu:

Miles já havia transformado uma de suas telas em capas de disco. Amandla é um exemplo. Não consigo, e isso pode ser uma falha minha, conectar seus quadros ao jazz, como se audição e visão se misturassem numa sinestesia óbvia. Nos quadros de Miles Davis, há alguma coisa de Basquiat, e não somente algo que se conecte à negritude ou à marginalidade. O exercício da abstração, aliado ao senso de expressão subjetiva, sugere influências de Kandinsky e da arte tribal africana. AQUI você fica sabendo mais.

Miles Davis levava a pintura a sério. Ele mesmo dizia que a pintura era a música que podia ser vista, enquanto a música era a pintura absorvida pela audição. Essa ideia não é de fácil percepção, até porque o próprio músico dedicou-se à pintura por considerar sua carreira como músico terminada. Ou seja: é possível que seus quadros exprimam justamente essa angústia – mas isso, a meu ver, nada significa para quem se depara com eles. O que interessa é o que vemos; não o que o pintor quer exprimir. Estou falando o óbvio.

Jo Gelbard, pintora e professora, orientou Miles, aceitando o desafio de fazê-lo libertar-se de fantasmas que habitavam seu passado. Chegaram a criar juntos, de forma colaborativa. Ela mesma afirmava que “tentava fazer Miles ocupar a mente com elementos positivos quando não estava produzindo música.” AQUI está uma entrevista interessantíssima com ela. Tiveram um envolvimento amoroso que foi bom para ambos, tendo a pintura como leitmotiv e como consequência. Bom para os dois; bom para nós.

Discursos de formatura, by KV

Escrevi, há cinco anos, sobre Kurt Vonnegut ser um humanista. Clique AQUI e você poderá ler. Mantenho minha obsessão por seus livros, e acabo de ler uma edição em português de 15 discursos de formatura proferidos por ele entre 1978 e 2004. Não é para menos: o sucesso estrondoso de Matadouro 5, publicado em 1969, tornou Vonnegut um herói para a juventude. É um livro humanista, pleno de sarcasmo e crítica à opressão, travestido de ficção científica. Quem assim o classifica não compreendeu nada. Pois o humanismo de Kurt Vonnegut se mantém em quase todas as suas obras – e nesses discursos nada muda.

O título da reunião de discursos é O que tem de mais lindo do que isso? Bem, não quero ser pedante, mas o título em inglês é bem mais interessante: Is this isn’t nice, what is? Enfim, traduções à parte, Vonnegut viveu e morreu um humanista, e esses discursos provam isso. Um humanista é o sujeito que se preocupa com o próximo, com a vida humana, espalha a generosidade, busca a dignidade, compadece-se com o sofrimento alheio e tenta, ao máximo, tornar este mundo melhor. Parece piegas? Não, não é.

Claro que a veia irônica, por vezes (inúmeras) bem-humorada, está presente. Não há como abandonar a própria característica, principalmente quando ela define quem dela faz uso. Em geral, essa verve cheia de humor é tão cáustica quanto necessária, afinal é justamente este mundo e seus habitantes que tornam a existência algo insuportável. Vonnegut tem uma mensagem aos formandos: mudem este planeta, ou seremos vítimas de nós mesmos.

Apesar de humanista, não crê muito no ser humano. Lá pelas tantas, falando aos formandos da Eastern Washington University, na cidade de Spokane, em Washington, Vonnegut diz: “Querem saber pelo que rezo todas as noites? Eu me ponho sobre meus velhos joelhos, no meu catre perto do quartinho do carvão, e rezo com todo o meu coração: ‘A quem interessar possa: poderia, por favor, botar minha alma dentro de uma lontra-marinha ou de uma coruja-das-torres?’ Eu preferiria ser uma lontra-marinha a ser um ser humano, mesmo que houvesse mais um vazamento de óleo.” O itálico é por minha conta. Valeu, Kurt Vonnegut, mais uma vez.

A angústia de Graciliano

Angústia é um grande livro. Dos maiores de Graciliano Ramos, autor modernista que se tornou famoso pelo talento extraordinário, pela economia verbal e por apresentar um estranho mundo ao leitor extranordeste. Sem ele, estaríamos privados do Fabiano de Vidas Secas, do Paulo Honório de São Bernardo – e, claro, de Luís da Silva, personagem de Angústia, o tal grande livro da primeira frase. Luís da Silva, como já muito se disse, é nosso Rodion Românovitch Raskólnikov, nosso angustiado criminoso, sofrido porque não se ajusta a si mesmo. Sofrido porque se culpa.

O vestibular da Fuvest é o mais prestigiado exame de acesso à universidade brasileira. É uma prova que exige maturidade, raciocínio, sensibilidade e rapidez daquele que pretende obter sucesso – ou seja, ingressar na USP. Não é fácil, como se sabe. Para muitos, é a elite universitária de um país que, aos poucos, vai descredibilizando o 3º grau, como se ele não fosse necessário ao mercado de trabalho. Uma tolice alimentada por aqueles que consideram a universidade um antro de cannabis, uma pocilga pornográfica da qual brotam vagabundos, belzebus e gente esquisita.

Sinceramente? É uma ousadia, a meu ver, selecionar Angústia no universo criado por Graciliano Ramos. Eu explico. O autor alagoano, célebre por representar o romance regionalista nascido a partir de 1930, dedicou boa parte de duas narrativas a expor o homem que vivia numa determinada condição – rústica, pobre, interiorana, provinciana, opressora -, apresentando seu modo de vida, as dificuldades oriundas de uma existência limitada, os desejos reprimidos e a inexorabilidade de um ambiente que deseja oprimi-lo. É assim em Caetés, em Vidas Secas e em São Bernardo, seus clássicos já citados.

Angústia acompanha os contos de Insônia (que não chega a ser um grande livro, a meu ver). É na cidade que a coisa se desenrola – a paixão, o crime, a criação literária, a frustração, o medo, as limitações. E, claro, a angústia, marcada justamente pela culpa e pela possibilidade de ser encarcerado, já que a personagem central – Luís da Silva – torna-se um assassino. É nesse ambiente, feito de pedra, concreto, repartições públicas, habitações suburbanas e cultura machista que Angústia dá os passos para se tornar uma obra-prima. Vale a leitura, caso você, leitor, não já a tenha realizado. Duvido.

Page 7 of 28