Mulheres #9: Sônia Braga

Eu tenho 60 anos, de modo que o programa Vila Sésamo, que estreou em 1972, pegou-me já interessado em jogar futebol com os amigos e ir à escola – para jogar futebol também. Lembro-me, entretanto, de assistir a alguns episódios, e a imagem luminosa de Sônia Braga – que ainda não habitava meus assuntos – era eclipsada por uma ave gigante e desengonçada chamada Garibaldo. Um tempo depois, em 1975, já com 13 anos, Vi Sônia em Gabriela – e aí eu já a via com outros olhos. Abaixo, como Ana Maria, da citada vila:

Bem melhor como Gabriela, a sensual criatura de Jorge Amado. Não me recordo de, em telenovelas, nenhuma outra personagem feminina que tenha chacoalhado a libido da juventude com tanta potência. Pele, cabelos, sorriso, anatomia – tudo isso aliado à ideia de uma ingenuidade regionalista que, confundida com ignorância e submissão, expressa a exploração sexual de uma mulher. À parte análises mais complexas, observa-se a beleza de Sônia Braga, no esplendor dos seus 25 anos. Bem, há Dona Flor também, não é, seu Jorge?

Sônia Braga

E quem há de esquecer Solange, a esposa aventureira de A Dama do Lotação? Ou a prostituta Maria, de Eu te Amo? Ou ainda a virginal Marcina, da telenovela Saramandaia, que, excitada sexualmente, pegava fogo. Não, não é metáfora. Pegava fogo mesmo, e provocava queimaduras no sortudo que estivesse por perto.

Em 1984 Sônia Braga foi o combustível de que a Playboy precisava para decolar. Já havia aparecido na revista 6 anos antes, num suplemento especial que, infelizmente, não conheço. Mas posso imaginar. As fotos abaixo, da edição de quase 40 anos atrás, mostram a beleza mestiça de uma mulher que se tornou símbolo de uma época.

Sônia Braga - Gatas Peladas - Mulheres Gatas Peladas e Nuas

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Sônia foi clicada por Antônio Guerreiro, fotógrafo com quem esteve casada por 9 anos. Em breve, uma postagem sobre as fotografias deste que soube viver bem: entre mulheres bonitas, fotografando-as, privando com elas. Mas isso é papo para outra oportunidade. Fique com o clique do ex-marido:

Sônia Braga envelheceu da melhor maneira: mantém o sorriso refulgente, o olhar luminoso, que parece expressar a sabedoria acumulada. Num país em que mulheres se recusam a envelhecer – nenhuma censura nisso! -, ela assumiu os cabelos brancos, as rugas, o tempo que passou. Continua bela, como antes – e como sempre.

Sônia Braga vê sociedade carente de empatia na pandemia: 'O mundo está  louco'

Os autonautas Julio e Carol

O argentino Julio Cortázar escreveu inúmeras obras-primas, sejam em formato de contos, ensaios, crônicas ou romances. Poderia ter-se aposentado após a publicação do extraordinário romance O Jogo da Amarelinha, em 1963. Ou do excepcional volume de contos Todos os Fogos o Fogo, três anos depois. É um símbolo da alta literatura feita na América do Sul, embora tenha se naturalizado francês e escrito boa parte de sua obra em solo europeu. Há quem prefira Jorge Luís Borges – outro argentino – insistindo numa equivocada rivalidade. Esqueça isso!

Estou relendo Os Autonautas da Cosmopista, livro publicado – em espanhol e em francês – em 1983, mas que chegou à versão brasileira em 1991, pela editora Brasiliense. Está na foto em minha companhia. O livro, um diário literário e humorístico de viagem, é escrito a 4 mãos: duas de Cortázar e duas de sua mulher, a escritora canadense Carol Dunlop, que criou o subtítulo uma viagem atemporal Paris-Marselha. A propósito: a distância entre as duas cidades é de 774km. De carro, leva-se pouco mais de 9h; a viagem, contudo, durou um mês, a bordo de uma Kombi equipada para abrigar dois escritores. A Kombi, por sinal, tinha um nome: Fafner.

A lentidão para se chegar ao destino é proposital: observar a realidade, com olhar literário, e transpô-la para o papel é o objetivo desses dois autonautas. Natureza, homem, velocidade, estrada, parkings, alimento, poesia, leitura, amigos, escritura, hotéis, gasolina e tudo o mais que possa compor uma viagem de 30 dias. A linguagem de Cortázar, com seus períodos longos e marcada por conectivos e vírgulas magistralmente bem postos, é o ponto alto da narrativa. Há, claro, a narrativa de Carol – chamada carinhosamente de Ursinha -, mas não tem, evidentemente, a marca do gênio. Nem tem de ter.

O livro traz dezenas de fotografias, desenhos, observações acerca de lugares, flores, comida. É o registro sofisticado – bastante informal, contudo – não somente da viagem física per si, mas da viagem interior, carinhosa e cúmplice. Carol Dunlop tinha leucemia e, protegida por um Cortázar dedicado e atento, pôde usufruir de momentos de rara felicidade e humor refinado. Sem contar a aventura de viajar lentamente por uma estrada de sua escolha: sem pressa, como na vida. Cortázar morreria menos de um ano e meio depois. Juntos, continuariam autonautas.

Genialidade mutilada #2

Cover of the album Caetano e Chico - juntos e ao vivo.jpgEscrevi sobre o disco Caetano e Chico – juntos e ao vivo, lançado pela Polygram em 1972. Você pode ler a postagem AQUI. Repito: a capa do disco, agora numa repetição mais tímida, está ao lado. O elepê em questão – destaque do mês -, um dos shows mais emblemáticos do período brabo do regime militar, foi miserável, grotesca e truculentamente mutilado. Um encontro entre dois dos maiores artistas da música brasileira, num show, durou menos de 36 minutos. Vou repetir: um show com pouco mais de meia hora. E pior: mal gravado.

Tenho buscado na web informações sobre o disco. Busquei também na biografia de Caetano, sobre a qual também escrevi. Pouca coisa se fala sobre esse show, até porque sua temporada fora abalada pela morte suicida do jornalista, poeta e compositor Torquato Neto, amigo chegado de Caetano. A Polygram imaginou que o disco, lançado no início de 1973 – mas registrado como se fosse de 1972 -, fosse fracassar. Errou feio. O disco vendeu bem, e dinamitou a ideia de que os dois artistas eram inconciliáveis. Não encontrei detalhes sobre o assunto nem em Verdade Tropical, do próprio Caetano.

Consegui, entretanto, algumas informações sobre o que os dois compositores propuseram para o show. Caetano, vestido intencionalmente de forma espalhafatosa, de batom e brilhos, escandalizava os censores. Chico, comedido por conta da timidez, deu seu recado. O que interessa, entretanto, é que as canções propostas praticamente não foram gravadas. Ou, se foram, não constam do disco. Daí a pergunta (a qual repito): que diabos de show é esse que dura menos de 40 minutos? Veja a lista das canções num documento da época:

O trabalho da censura foi um sucesso. Das canções propostas, apenas algumas foram selecionadas. Os originais dessa gravação certamente estão em poder da Polygram, que poderia – e deveria, em minha opinião! – corrigir esse erro. Imagine, nos 50 anos de vida desse disco, ele realmente vir à tona, sem cortes! Para os fãs, o tesouro absoluto. Resta saber se haverá disposição para resgatar o passado. Um passado de valor absolutamente necessário. Um resgate essencial.

Genialidade mutilada #1

Em 1972 , Chico Buarque (que aniversaria hoje) e Caetano Veloso resolveram estapear a mídia, que insistia em rivalizá-los, afinal um era tropicalista e outro, herdeiro do samba e artífice da MPB. Para muita gente, eram opostos, um querendo comer a jugular do outro. Coisa de jornalista que nada tinha a fazer. O tapa de luvas (de boxe) deu-se em forma de show no Teatro Castro Alves, em Salvador. O resultado desse show – cuja duração desconheço – foi um disco gravado e distribuído pela Polygram. É o disco do mês do blogue, como se pode ver, à sua direita. A capa está abaixo:

CD - Caetano e Chico - Juntos e Ao Vivo - Beco do Disco

Agora pasme: as canções, juntas, adicionadas às manifestações efusivas do público (sobre as quais falarei daqui a pouco) somam 35 minutos e 48 segundos. Você leu direito. O show, a contar pelo disco, não chega a 36 minutos. Qualquer pessoa minimamente inteligente percebe que há coisa errada aí. E essa coisa errada tem um nome: censura. Imposta, evidentemente, pelos militares e aplaudida pelos papalvos que a apoiavam. O governo Médici, sanguinário e truculento, mostrava sua força contra os artistas.

Se você já ouviu esse disco – creio que sim! -, percebeu que, em algumas canções, a efusão do público (assobios, palmas) foi grotescamente enxertada, com o objetivo de não permitir ao ouvinte uma audição plena do que se cantava. Sem contar que algumas canções – Bárbara, de Chico, e Tropicália, de Caetano – tivessem parte de sua letra simplesmente riscada do mapa. A isso chamo vilipêndio. Abaixo, ambos, nas areias da praia, em Salvador. Há 50 anos.

Caetano Veloso ...en detalle.: 1972 - CAETANO E CHICO juntos e ao vivo

Não conheço ninguém que tenha ido a esse show. Gostaria de conhecer, para que algumas perguntas pudessem ser respondidas. Duas delas: o que Chico e Caetano conversavam com o público, entre uma e outra canção? Outra: qual foi, mais ou menos, a verdadeira duração do show? Durante anos quis saber qual o repertório que foi apresentado à censura. Chico havia lançado, um ano antes, o discaço Construção, e nenhuma canção do disco foi executada – com exceção de Cotidiano. E apenas duas canções da trilha sonora de Quando o Carnaval chegar, filme de Cacá Diegues: Partido Alto e Bom Conselho.

E quanto a Caetano? Nenhuma canção dos seus discos de 1971 – composto no exílio londrino, intitulado Caetano Veloso – e de 1972, Transa. Enfim, a mutilação foi longe, exemplo da truculência de uma época que ninguém (ou quase ninguém) quer que volte. Na sequência – outra postagem – você saberá quais as canções propostas pelos artistas para o show.

Basquetebol & encontrões

Trailer mostra Adam Sandler em drama esportivo - Pipoca ModernaFilmes sobre esporte são especialidade dos americanos. Ninguém faz como eles, principalmente quando eles mostram a si mesmos como figuras heroicas cujos esforços desembocam na fama, no sucesso e, claro, naquilo que eles mais prezam: a grana. Assisti a Arremessando Alto, filme da Netflix em que Adam Sandler brilha como um olheiro de basquete que odeia futebol. O futebol inventando pelos ingleses e praticado em toda a superfície terrestre, aquele que eles chamam de soccer.

Não chega a ser um grande filme, já que há certa previsibilidade no desfecho, mas vale pelas cenas em que o esporte mostra-se tão vibrante quanto as vidas dos personagens que a ele se dedicam. É um espetáculo visual: voos, enterradas, jumps, passes, acrobacias, competição. Sim, sim: há um vilão no filme, em contraposição ao herói judeu Sandler. O embate entre eles se dá por meio da contratação – ou não – de um espetacular jogador espanhol de basquete de rua, descoberto por nosso herói. Nosso, não, deles. E do Philadelphia 76ers, o orgulho da Pensilvânia.

HUSTLE (2022) Movie Trailer 2: Down-on-his-luck Basketball Scout Adam Sandler Discovers a Star in Jeremiah Zagar's Film | FilmBook

Se você aprecia o esporte, se gosta de basquetebol – como eu, que joguei, mas sem muitas pretensões -, e assina Netflix, não deixe de ver. Adam Sandler não consegue (ainda bem!) destituir-se por completo da aura humorística que o tornou famoso, mas bem que tentou. Está bem no papel de olheiro humilhado por um chefão babaca-filhote-de-papai. O craque espanhol não é ator – é jogador profissional. Joga no Utah jazz e seu nome é Juancho Hernangómez. Sim, se você acompanha basquete, deve se lembrar dele jogando no Denver Nuggets.

Muitas informações sobre os bastidores do basquete são veiculadas de forma direta, sem qualquer maquiagem. Vários astros da NBA (jogadores e técnicos) aparecem no filme, interpretando a si mesmos. É uma festa, patrocinada pelos produtores Adam Sandler e LeBron James. Se você nunca ouviu falar neste último, certamente não gosta de bola ao cesto. A propósito: o título, em inglês, é Hustle – algo como choque, encontrão. Mas pode designar também alguém que seja obstinado. Bem, o resto você verá, se quiser.

Duas vezes Rosinha

Amanhã é dia 10 de junho e a morte de Rosinha de Valença atingirá a maioridade. Em 1992, após ter sofrido uma parada cardíaca que lhe corrompeu o cérebro, entrou em coma e de lá não saiu mais: morreu em 2004, após 12 anos de estado vegetativo. O Brasil perdera sua melhor violonista, uma virtuose que havia batalhado imensamente pela valorização da música instrumental no Brasil. Genial ao violão, rivalizava com Baden Powell, o grão-vizir do instrumento e, justamente com ele, iniciou um movimento que deu origem a vários grupos musicais que fundiram jazz e bossa.

Gosto muitíssimo de Ipanema Beat, seu disco de 1970. É obra-prima pouco (re)conhecida neste país que valoriza gente que não mereceria respirar o ar que ela respirou. Um timaço de músicos divertindo-se tocando temas estrangeiros – pérolas de Joe Zawinul, Jimmy Smith, Serge Gainsburg, Keith Reid e outros – e uma gema de próprio punho: Rosinhas’s Mood. Se você quer ouvir o disco inteiro, AQUI está. Preste atenção ao organista Duncan Makay. E, claro – e principalmente -, a Rosinha de Valença.

Outro disco que aprecio bastante é um show ao vivo ao lado do acordeonista Sivuca. Gravação do projeto Seis e Meia, os dois artistas se apresentaram no Teatro João Caetano, em 1977. Com produção de Sérgio Cabral, ainda contava com a participação especialíssima do saxofonista Raul Mascarenhas – que também tocou flauta. Lamentos, de Pixinguinha, e Asa Branca, de Gonzaga e H. Teixeira, são os pontos altíssimos de um encontro de pontos altos. Ouça AQUI o disco na íntegra.

Rosinha de Valença foi reconhecida internacionalmente: Henry Mancini, Bud Shank, Stan Getz e Sarah Vaughan (só para citar alguns) admiravam sua habilidade com as cordas. Apresentou-se em vários países de pelo menos 4 continentes, explorando a brasilidade e ao mesmo tempo o cosmopolitismo de sua música, repleta de ousadias, inventividades e, claro, perfeição instrumental. Não me recordo de nenhuma mulher que, ao violão, encantasse mais. Homem, talvez – mas ainda prefiro Rosinha. Que esteja sempre em paz, como ficamos nós – ao ouvi-la.

As parcerias do Lobo

Este rapazola abaixo chama-se Edu de Góes Lobo, mas você deve conhecê-lo sem o “de Góes”. Na foto, ele tem 24 anos e já não era mais uma promessa na música. Amadurecido (apesar da pouca idade), tinha composto ao menos dois grandes discos – um deles em companhia de uma cantora baiana que se tornaria, para muitos, a maior cantora brasileira: Maria Bethânia. O outro disco, feito quando ele tinha apenas 22 anos, chama-se A Música de Edu Lobo por Edu Lobo, seu primeiro LP, com a participação do Tamba Trio, grupo capitaneado pelo genial pianista Luiz Eça. Estou, neste momento em que escrevo – um sábado chuvoso -, ouvindo Reza, a faixa número 7. AQUI você ouve o disco inteiro.

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Dia desses ouvi – não me lembro exatamente quem falou – que o melhor parceiro de Chico Buarque era Francis Hime. É algo a se discutir, afinal o compositor carioca criou obras-primas com Vinícius de Moraes, com Ruy Guerra, com Tom Jobim. Tem canções esparsas com Toquinho, com Gilberto Gil e com Milton Nascimento. Fico eu, no entanto, na dúvida: e quanto a Edu Lobo? Com ele, Chico fez três discos antológicos: Dança da Meia Lua, O Grande Circo Místico e O Corsário do Rei. Há também Cambaio, sobre o qual tenho algumas reservas. Com nenhum desses outros parceiros citados Chico Buarque fez um disco inteiro, temático, absoluto.

Mas nem só de Chico vive Edu Lobo. Capinam e Vinicius de Moraes entram no rol de grandes parceiros. Com o poetinha, compôs Arrastão, canção que catapultou a carreira de Elis Regina, há quase 60 anos. Não precisaria fazer mais nada, mas fez, entre outras, Canção do Amanhecer, Zambi e Samblues do Dinheiro. Com o poeta e letrista baiano José Carlos Capinam fez o clássico Ponteio, que venceu o maior de todos os festivais da canção: o de 1967. Podia, então, aposentar-se, mas, juntos, fizeram mais: Cirandeiro, a magnífica Viola Fora de Moda, e ainda Limite das Águas e Rosinha.

Edu Lobo é um artista genial. Para mim, está entre os 5 grandes: ao lado de Gil, Chico, Caetano e Tom Jobim. É um arranjador de primeira, um violonista hábil, um harmonista tarimbado, um cantor afinadíssimo e praticamente não tem rivais quando o assunto é melodia. Lamentavelmente é pouco conhecido pelo público mais jovem, que faz escolhas – a meu ver! – duvidosas. Enfim, se alguém com menos de 30 anos ler esta postagem, que fique registrado: fiz minha parte, minha obrigação. Essa é minha parceria com você, Edu!

As duas mulheres de Murilo

Amanhã será o primeiro dia de junho, e há 106 anos nascia um dos melhores e menos reconhecidos escritores brasileiros: Murilo Rubião. Se você não conhece seus livros – que não são muitos! -, corra e busque o seu, porque ler suas histórias absurdas, seus contos fantásticos, suas personagens inesquecíveis é um prazer que você somente encontrará, se tiver sorte, entre brasileiros, em José J. Veiga. Mas ele vai além disso – muito além. É um craque a serviço da boa literatura, com uma forma de narrar aparentemente simples, sem floreios, sem barroquismos. Aí está a dificuldade.

O livro que mostro na foto é a reunião de todos os seus contos: apenas 33. Bem, uso o advérbio apenas para me referir à quantidade. A qualidade, inequívoca, é encontrada em todas as histórias. Sim, eu disse todas, porque em nenhuma delas o vigor literário – seja nas narrações, nas descrições, nos diálogos ou na composição das personagens – deixa de ser a marca que mantém o leitor aceso, apegado ao texto. Quando se chega ao fim, a impressão que se tem é de que qualquer elemento a mais poderia macular a perfeição da narrativa.

Para escrever esta postagem, reli, de imediato, Bárbara, uma das mais impressionantes histórias curtas da literatura deste país. Sim, sem exagero. Depois reli um conto que flerta com o terror chamado Aglaia. Ambas as histórias, tendo mulheres como fundamento, expõem a fragilidade da figura masculina. Pode parecer um clichê, mas, sob a batuta de Rubião, essa relação de poder parece algo inédito. Bárbara pede tudo o que vê, e engorda tornando-se algo monstruoso. Aglaia torna-se uma parideira sem controle sobre as múltiplas gestações – e abominando cada uma delas.

O marido de Bárbara é o narrador. Mostra o próprio desassossego, o desespero de amar uma mulher que deseja tudo o que se mostra diante dela. Ele ama e concede, faz-lhe as vontades. Colebra, marido de Aglaia, é pai de dezenas de crianças que nascem, muitas vezes em pencas, com apenas semanas de gestação. Tem ímpetos de esmagá-los com os pés, mas consola-se com a dor ainda maior da esposa. Duas mulheres, dois títulos. Murilo, 106 anos, continua essencial. Repito: se não conhece, corra para conhecer.

O disco de Miles, por Khan

Já ouviu falar em Ashley Kahn? É um jornalista especializado em música, é produtor de rádio, professor, foi editor da Rolling Stone e escreveu um livro interessantíssimo sobre a gravadora Impulse!: The House of Trane Built: The Story of Impulse Records. Vou escrever sobre esse livro também, em breve. Ashley Khan, entretanto, está neste blogue por outro livro: Kind of Blue – a história da obra-prima de Miles Davis. Para quem não sabe – há alguém que não? -, Miles Davis é um dos maiores nomes do jazz. Para muita gente, é o maior. E Kind of Blue é seu disco de excelência, sua obra máxima.

O prefácio é do extraordinário baterista Jimmy Cobb, o único membro do sexteto que, à época em que o livro veio à superfície – ano 2000 -, estava vivo. Usei o termo extraordinário para Cobb, e uso também para todos os outros componentes da banda: Coltrane, Cannonball Adderley, Bill Evans, Paul Chambers e, evidentemente, o chefão: Miles. Ah, claro: Wynton Kelly, pianista, toca em uma faixa: Freddie Freeloader. Esses senhores, em perfeitíssima sintonia, criaram uma obra-prima, e Ashley Kahn detalha como, quando e por quais motivos esse disco se tornou icônico e vendeu milhões de cópias.

Há passagens saborosíssimas no livro: desde a forma como Miles Davis arregimentou Cannonball para seu time até as dificuldades estéticas da primeira sessão de gravação, em 2 de março de 1959. Aliás, a segunda sessão só teve início 50 dias depois, quase em final de abril. O que mais chama a atenção é que o material do disco é simples. Não há grandes complexidades musicais, grandes novidades harmônicas ou rítmicas. É um disco de beleza extrema, de sensibilidade aguçada. A revista Down Beat, especializada em jazz, afirmou que “o que é fora do comum é que esses homens tenham feito tanto com material tão esquálido e elementar.”

Muita gente diz que Kind of Blue inaugurou o jazz modal. Ashley Khan também, embora não se preocupe em explicar detalhadamente o que vem a ser esse subgênero. Preferiu mostrar todo o universo – político, financeiro, social, artístico – que cercou o final dos anos 1950 para expor seu resultado: Miles Davis e sua música. Mostrou pormenores de todos os músicos envolvidos, bem como dos produtores e dos chefões da estúdio. Apresentou-nos o papel dos críticos e do público. Todos marcados profundamente por uma guinada que o jazz deu a partir de Kind of Blue. Vale a leitura.

A propósito: se você não conhece o disco em questão, AQUI está, inteirinho.

O padre de Chesterton

Há uma anedota – se é que é anedota – que se conta sobre Gilbert Keith Chesterton, o escritor inglês. Chesterton era um homem grande e gordo, de humor ácido e frequente, e de uma sagacidade que rivalizava com a do popular Winston Churchill e a de Henry Louis Mencken, o temido jornalista norte-americano. Bem, eis a anedota: Chesterton encontrou o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw, magro como o mapa do Chile, e lhe disse: “George, olho para você e vejo que há fome no mundo!” Shaw, devolveu, em moeda semelhante: “E olho para você e vejo quem a provoca!”

Entenda quem é G. K. Chesterton, o autor que faz a cabeça da Cultura do  governo Bolsonaro - Jornal O Globo

 

Bem, se esse episódio é verdadeiro ou fake, não importa. Vale pela engenhosidade do diálogo e, claro, pelo encontro de dois grandes da literatura inglesa. Não vou falar sobre Shaw, porque muito já se escreveu sobre ele. Mas sobre Chesterton nem tanto. Claro que falo sobre brasileiros escrevendo sobre esse gigante da poesia, da ensaística e das histórias de mistério. Falando nisso, já ouviram falar em Father Brown, o padre-detetive? Caso não, estão perdendo a chance de ler histórias tão saborosas quanto inteligentes, bem armadas, divertidas.

O livro em minha mão, na foto, é uma antologia: as melhores histórias desse detetive, distribuídas em 5 livros: The Innocence of Father Brown, The Wisdon of Father Brown, The Incredulity of Father Brown, The Secret of Father Brown e The Scandal of Father Brown. Agora imagine um padre católico, guarda-chuva na mão, inglês até a medula, resolvendo enigmas e denunciando criminosos a partir de uma observação tão arguta quanto improvável. Gorducho e mal-vestido, um tanto mal-humorado, relaciona-se bem com a comunidade a que pertence – mas sempre considerando-a capaz de hipocrisias e malefícios.

Diferentemente de Hercule Poirot – de Dame Christie – ou Sherlock Holmes, de Doyle, o padre de Chesterton é intuitivo. As deduções ficam em segundo plano, afinal o trabalho de um padre não se prende a regras cartesianas de dedução, fundamentadas. Sem contar algo que diverte: Padre Brown debocha dos protestantes, dos anglicanos, e, portanto, de Sherlock Holmes. Vale a pena a leitura absolutamente espirituosa de uma personagem que – fiquei sabendo há pouco – tornou-se televisiva. Parece que há uma série em que Father Brown é a estrela. Preciso ver, mas, por enquanto, vou apenas lendo.

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